A expectativa para este sábado é imensa. Ponto alto da cerimônia do Kuarup, os mortos ilustres serão, enfim, homenageados. Alinhados e separados por uma distância de poucos metros, ali estão representados Washington Novaes, Tabata e uma mulher Kuikuro que, ainda que perguntássemos, misteriosamente, não descobrimos seu nome
Por Antônio Reis Jr.*
Sábado, 13 de agosto de 2022
Logo cedo, a partir das cinco da manhã, um grupo de moradores da Aldeia Ipatse leva os troncos cortados para frente da Casa dos Homens, onde são encaixados em covas redondas abertas no terreiro. Os troncos são descascados ao meio, ficando uma superfície lisa de madeira sob a casca que receberia a pintura com o símbolo vermelho e preto do Kuarup.
Alinhados e separados por uma distância de dois a três metros, ali estão representados Washington Novaes, Tabata e uma mulher Kuikuro que, ainda que perguntássemos, misteriosamente, não descobrimos seu nome. Quando indago, curioso, a um senhor Kuikuro, sentado ao meu lado e que acompanha a cerimônia, quem era ela, ele me responde que se trata de sua tia. Mas, como parente, naquele momento da preparação da cerimônia, não poderia pronunciar seu nome, sob o risco de ela não partir.
Representação talvez não exprima verdadeiramente o significado que os troncos têm para os povos alto-xinguanos nessa “festa dos mortos”. A mim parece ir muito além de qualquer ideia de representação, talvez mais uma encarnação (no sentido de uma corporificação ou consubstanciação) dos espíritos daqueles que foram merecedores de grande reverência. Olhar de branco.
Em diferentes lugares da aldeia, peixes moqueados – colocados sobre o moquém e defumados – são saboreados pelos participantes, acompanhando o beiju e um creme de pequi, plantado ao lado das roças da Ipatse. Além de alimento importante, do pequi se extrai um óleo para proteção e embelezamento da pele.
Assim, a proteína é garantida pelos peixes e o carboidrato pela mandioca, base da alimentação de várias etnias do Parque Indígena do Xingu. Até onde pude apurar, para os Kuikuro, a caça não é importante, eles não comem nenhum “bicho de terra ou de pelo”, com exceção dos macacos e dos tracajás – como lembram os estudos do Instituto Socioambiental (ISA), que reúne em seu portal rico conteúdo sobre a cultura alto-xinguana, além de importante trabalho realizado há anos no Parque.
Sobre os troncos, é erguida uma cobertura com toras de madeira, bambus e uma lona para abrigar os participantes e os proteger do Sol. Depois de pintados – o grafismo da mulher difere dos homens – os troncos são decorados da mesma maneira que as pessoas ali enfeitadas para a cerimônia: uma base vermelha de urucum (equivalente aos pés e canelas), cordões brancos e vermelhos amarrados ao meio (como se estivessem em joelhos e cintura), e também na parte superior dos troncos, (equivalentes aos braços e ombros). Presos aos tecidos dos ombros, longas penas coloridas. Em cima dos troncos, um lindo cocar.
No fim da tarde, a família Novaes é chamada para a pintura corporal. Virgínia Novaes, a ex-mulher de Washington, filhos e sobrinhos, são conduzidos a uma casa. Depois de pintados, são levados para a frente dos troncos, ganham um banho de água com panelas de alumínio – que me parece um deleite sob aquele Sol – e depois retornam à casa de onde saíram. Os cabelos são cortados com “corte de cuia” e, somente nas mulheres, é pintada uma faixa vermelha sobre os olhos e têmporas, cruzando todo o rosto. A beleza das pinturas sempre impressiona.
Nesta tarde, várias pessoas de nosso grupo têm momentos de vertigem, indisposição e uma certa prostração. Penso que o Sol escaldante, o calor intenso, os odores das tintas sobre a pele e, sobretudo, o envolvimento com a cerimônia, resulta em um embevecimento que nos envolve completamente.
A família Novaes, quando retorna à tenda que cobria os troncos, vive um forte momento de emoção: agachada em torno deles, com as mãos encostadas em sua base, passam a reverenciar Washington Novaes iniciando – juntamente com as famílias dos Kuikuro em torno de Tabata e da mulher indígena – um choro coletivo e ritualizado que segue até a nascente do dia seguinte.
O choro cerimonial, que se ouve à distância, expressa o luto coletivo que “vela” (em uma maneira ocidental de descrever) seus antepassados. Emociona ver e ouvir a comunidade, para além das famílias implicadas, homenagear coletivamente aqueles que foram importantes em vida.
O “mantra” me faz lembrar das carpideiras, que, no passado, velavam os mortos cantando ladainhas em torno dos caixões. Vi em alguns lugares no interior de São Paulo e no litoral, entre caiçaras. Nesse caso, me parece que a origem é ibérica, portanto, não guardando nenhuma relação com as tradições indígenas. Aproveito para dizer que nesse diário o que descrevo são impressões do Kuarup, sujeitas a imprecisões e subjetividades de um homem branco arrebatado pela cerimônia.
Enquanto choram por seus mortos, grupos de várias etnias – para mim um pouco indiferenciadas – chegam de diversas partes, correndo perfilados, cantando, dançando e abrindo uma grande roda. Uma algazarra maravilhosa toma conta do lugar, onde crianças correm, brincam e convergem à tenda onde estão os troncos.
O clima festivo contrasta com o triste choro dos parentes e amigos em um ambiente de intensa emoção, especialmente das famílias enlutadas. Isso se repete diversas vezes, com grupos chegando com tochas, bandeiras e gritos que parecem celebrar a vida e a morte.
Depois de algumas horas, entram os cantadores em duplas, com os corpos inclinados para a frente tocando seus maracás com a mão esquerda, e apoiados em uma vara com a mão direita. Sucessivamente, cantadores de várias etnias, assumem seu papel na cerimônia e, enquanto cantam, o choro cessa. Quando encerram o canto, tiram seus cocares e recebem peixes moqueados e embrulhados como presentes.
A noite de sábado avança, a temperatura cai e a lua cheia ilumina toda a aldeia. Emocionante ver Maricá, filho de Tabata, permanecer durante todo o tempo sentado à frente do tronco de Washington, ao lado de seus filhos. Para mim, um ato de extrema generosidade e reconhecimento de um Kuikuro a um homem branco que manteve relações afetivas importantes com a família indígena, que agora o reverencia. Fortes vínculos se consolidam ali, de confiança e de cuidado com a memória de seus pais.
Tenho o privilégio de estar, enquanto domino meu cansaço já na madrugada de domingo, com o antropólogo Cássio Inglês de Souza, amigo de Pedro Novaes, que me esclarece os significados daqueles ritos cerimoniais, os gestos cifrados, e me ajuda a reconhecer cantadores Waurá, Kamaiurá e Mehinaco, além dos Kuikuro, que, a partir de determinada hora, passam exclusivamente a cantar.
Por volta das quatro horas da madrugada, não resisto e me recolho à barraca para dormir um sono breve pois, algumas horas depois, no domingo pela manhã, os maiores confrontos de Huka Huka vão encerrar esse Kuarup Kuikuro de 2022. E eu não poderia perder.
Leia aqui o dia anterior da jornada. A seguir, os últimos dias.
*Antônio Reis Jr. é historiador, doutor em Educação e professor universitário na área de História e Comunicação Social. Neste diário de viagem, ele e sua companheira imergem no ritual do Kuarup, no Parque Indígena do Xingu, que neste ano tem entre os homenageados o jornalista e ambientalista Washington Novaes, morto em 2020.