Vimos Washington Novaes ganhar uma alma indígena na cerimônia fúnebre do Kuarup e o fim do luto coletivo celebrado por toda a comunidade. E nós, brancos, enlaçados por infinita generosidade desses povos do Alto Xingu, tão próximos e distantes. Agora mais próximos. Quando abriremos os olhos, como país, para a riqueza dessa humanidade?
Por Antônio Reis Jr.*
Dias 14 (domingo), 15 e 16 de agosto, retorno a São Paulo
Ainda profundamente tocado pela cerimônia na aldeia, iniciada no sábado a noite e embalada pelo choro ritualizado, o canto e a dança durante a madrugada, em torno dos troncos e com a presença de inúmeras etnias indígenas, descansei poucas horas e levantei atento no domingo pela manhã quando se encerraria o Kuarup.
Os guerreiros pintados estão prontos para o início dos combates após longa preparação física e espiritual. Os grupos se distribuem na praça central: os Kamaiurá de um lado, os Kalapalo de outro, os Iawalapiti noutro canto e os Kuikuro (anfitriões) presentes em todos os lugares. E ainda os Mehinaco, os Waurá e tantos outros. Um festival multiétnico.
O clima é festivo. Pequenos guerreiros aguardam seu momento de entrar na arena. Risos, provocações e corpos suados no calor intenso do Xingu. Apesar disso, as belíssimas pinturas permanecem irretocáveis.
As lutas ocupam todo o período da manhã e, no início da tarde, o grande terreiro começa a se esvaziar. Os grupos indígenas, convidados de outras aldeias, levantam os acampamentos provisórios no entorno da Ipatse e partem a pé, com suas bicicletas e algumas motos. Na semana seguinte, um novo Kuarup ocorrer na aldeia dos Mehinaco e, certamente, todos estão lá prontos para a nova cerimônia fúnebre.
Nós nos recolhemos em nosso acampamento abrigados do Sol e o restante do dia transcorre calmo. No crepúsculo, o último banho na esplêndida lagoa dos buritis. Na segunda-feira, dia 15 de agosto, acordamos às 5 horas da manhã para levantar acampamento e deixar a aldeia Ipatse.
Vivenciamos nosso último momento de escambo e compra com a família de Tabata e outros moradores da aldeia, que trouxeram mais artesanato Kuikuro. Para nós, que compramos esses objetos de arte, utilitários e decorativos, significa levar um pouco daquela comunidade que nos acolhia tão bem. Para eles, é importante fonte de dinheiro para a compra de alimentos (óleo, arroz, açúcar, sal), material para a pesca, combustível para as motocicletas – que vem se tornando cada vez mais comuns – e para os geradores a diesel da aldeia, utilizado também pelos barcos, embora a energia solar, como já comentei, venha sendo introduzida e a aldeia já conte com placas fotovoltaicas que acendem os postes de iluminação próximos a escola e a UBS.
Para os Kuikuro, especialistas na feitura dos colares de caramujo, cestos e uma variedade de arte plumária – e que cada vez dedicam mais tempo em sua produção para atender demandas nas cidades vizinhas e entre os que chegam para visitar a aldeia – os objetos são utilizados no cotidiano para fins cerimoniais, pagamento de pajelanças, nas trocas ritualizadas com outras etnias e para selar alianças de casamento, como nos lembra os estudos do Instituto Socioambiental (ISA), em suas pesquisas sobre os povos indígenas no Brasil.
Tento estabelecer uma conversa com uma moradora que, no entanto, fala apenas a sua língua, o Karib, pronunciando apenas algumas palavras em português. Durante nossa estada na aldeia descobrimos que, embora a língua dos Kuikuro se mantenha viva, o português é dominante na conversa com brancos e também com indígenas de outras etnias.
A tradição oral indígena é fundamental para a manutenção da memória e da cultura desses povos, guardam narrativas seculares, são um importante patrimônio imaterial. Com a escolarização das crianças e a circulação dos moradores por cidades circunvizinhas ao Parque Indígena do Xingu, e a presença dos smartphones e da televisão, o português foi se tornando uma língua corrente.
Antes de partir, conversamos com Daniel Kuikuro, jovem presidente da Associação Terra Indígena do Xingu, que representa os 16 povos que vivem no território xinguano. Em pé, ao lado de sua nova motocicleta, vestido com um impecável agasalho do São Paulo Futebol Clube, e que participa dos jogos que ocorrem regularmente no centro da aldeia, entre mulheres e homens separadamente, ouvimos novamente as mensagens de boas-vindas e um convite para voltar no próximo Kuarup em 2023. Nos despedimos.
Embarcados nas caminhonetes, deixamos a aldeia com o coração na garganta e voltamos, cruzando o Cerrado dominante nos caminhos arenosos dentro do Parque. No retorno, enfrentamos variados problemas: pane mecânica; pneus furados; vazamento de diesel de um galão que, perigosamente, encharca toda a bagagem na caçamba de um dos carros; um grupo temporariamente perdido no labirinto das bifurcações, crianças nauseadas, não é fácil.
Saímos do Parque por volta do meio dia e novamente atravessamos a soja observando as bandeiras do Brasil tremulando nas entradas das fazendas e usinas, sinalização inequívoca de apoio de parte importante do agronegócio do nordeste de Mato Grosso ao governo federal e sua política antindigenista que vê o território do Parque como um entrave à expansão da monocultura e da pecuária extensiva. E que domina o entorno do Parque contaminando as nascentes dos rios que formam a bacia hidrográfica do Rio Xingu, lançando o chamado “abraço da morte” daquele território. De volta à devastadora realidade.
Tomamos conhecimento que havia sido descoberta uma estrada clandestina de 43 km que está cortando perigosamente o Xingu no sudoeste do Pará, atravessando duas Unidades de Conservação, e que fatalmente, se não for contida, aumentará as atividades ilegais dentro do Parque. É mais uma forte ameaça.
Chegamos a Barra do Garças à noite, cidade referência no interior do estado e com turismo intenso nas praias do Rio Araguaia, nas inúmeras cachoeiras e cânions das serras, inclusive a já citada Serra do Roncador. Estamos com os pés rachados pela secura e inchados das 13 horas de viagem no carro.
A família Novaes ainda iria aproveitar as praias do Araguaia. Eu, minha companheira, Ligia Rocha, e João Pedro Novaes – o intrépido adolescente que encarou essa aventura pelo Xingu conosco e que, naquele momento, ainda está com seu corpo lindamente pintado pelos Kuikuro – embarcamos em um ônibus na rodoviária que viajaria a madrugada inteira para chegar a Goiânia na manhã do dia 16 de agosto, terça-feira.
Abraçamos, em agradecimento, a família Novaes: não há como retribuir um convite como esse. Vimos Washington Novaes ganhar uma alma indígena na cerimônia fúnebre do Kuarup e o fim do luto coletivo celebrado por toda a comunidade. E nós, brancos, enlaçados por infinita generosidade desses povos do Alto Xingu, tão próximos e distantes. Agora mais próximos. Quando abriremos os olhos, como país, para a riqueza dessa humanidade indígena?
No aeroporto de Goiânia, embarcamos com destino a São Paulo. O que essa experiência de alteridade nos dizia? Pensei na urgência de mudança do nosso modelo de desenvolvimento, tão predatório, que amplifica os riscos de mudança climática agravada pela destruição da floresta, e a nefasta ação política que ameaça os povos indígenas com um novo marco temporal. Tudo isso me pareceu pertencer a um passado (muito presente) que precisamos acabar de enterrar.
Recordo do encontro, ainda estudante universitário, com Orlando Villas Bôas em um sábado de 1992, quando nos recebeu em sua casa no bairro do Alto da Lapa em São Paulo e nos contou, durante toda uma tarde, um pouco da epopeia da criação do Xingu. Ele que, nove anos depois, também seria homenageado no Kuarup após a sua morte.
Importante lembrar de seu papel histórico na proteção desse território. E também de Raoni Metuktire (Kayapó), Mário Juruna (Xavante), primeiro deputado federal indígena do Brasil, e tantas outras lideranças como Aritana Iawalapiti, um dos principais líderes do Alto Xingu vitimado pela Covid-19 em 2020. Como diz Sônia Guajajara, é preciso aldear a política.
Agora o Xingu assumiria outra importância para mim, como se uma substância tomasse parte do que penso e sinto sobre esse Brasil indígena. Sem idealizações, pensando nas contradições e estranhamentos que vivenciamos em qualquer experiência de alteridade, mas que não me tiram a certeza de que o nosso futuro é indígena.
Leia aqui o dia anterior da jornada.
*Antônio Reis Jr. é historiador, doutor em Educação e professor universitário na área de História e Comunicação Social. Neste diário de viagem, ele e sua companheira imergem no ritual do Kuarup, no Parque Indígena do Xingu, que neste ano tem entre os homenageados o jornalista e ambientalista Washington Novaes, morto em 2020.