Festejar a morte foi marca distintiva de alguns povos africanos que constituíram o Brasil e para cá trouxeram diferentes ritos fúnebres e concepções diversas sobre o além. E por aqui incorporaram também tradições católicas. Entre elas, destaca-se o catolicismo negro da Irmandade da Boa Morte, associação formada por mulheres, que completa 203 anos de existência e resistência. Aqui começa um mergulho nesta festividade e na ancestralidade negra do Brasil
Por Antônio Reis Junior* (texto e fotos)
Dia 1: Sábado, 12 de agosto de 2023, Cachoeira, Bahia
A preocupação com uma boa morte e o cuidado com o momento que a precede e, sobretudo, com a hora fatídica, sempre foi motivo de atenção de diferentes povos e culturas. As atitudes diante da morte e dos mortos, o destino da alma, a preparação para uma boa viagem ao outro mundo e a importância dos ritos que a antecedem, estão presentes na formação do povo brasileiro.Nesse sentido, festejar a morte foi marca distintiva de alguns povos africanos que constituíram o Brasil e para cá trouxeram diferentes ritos fúnebres e concepções diversas sobre o além. E por aqui incorporaram também tradições católicas.
Entre essas diferentes tradições, destaca-se o catolicismo negro da Irmandade da Boa Morte, uma associação formada por mulheres negras devotas de Nossa Senhora da Boa Morte, que completa 203 anos de existência e resistência, neste de ano de 2023.
De 13 a 17 de agosto na histórica e “heroica” cidade de Cachoeira – assim chamada por ter protagonizado a luta pela independência na Bahia em 1823 – a secular irmandade realizou sua festa. Desejo antigo, fui à cidade no Recôncavo baiano para uma imersão nos festejos, na pretensão, como historiador, de decifrar códigos e saber dos mistérios, nem sempre revelados, que envolvem essa associação de devoção negra feminina. Difícil tarefa.
Cheguei em Cachoeira no sábado no dia 12 de agosto, véspera da festa, e 27 anos depois da última visita, partindo de Salvador de carro. A ideia inicial era navegar seguindo o caminho marítimo e fluvial que atravessa a Baía de Todos os Santos e entrar pela foz do Rio Paraguaçu até o desembarcar no porto de Cachoeira. Nada feito. Esse caminho pelas águas, que desde o início da colonização serviu como acesso aos interiores da então capitania, formada em território indígena, foi abandonado. Era por ele que Salvador, principal porto da América portuguesa por mais de 300 anos, conectava-se com o Recôncavo até Cachoeira, ponto de confluência de toda a região.
Por meio dele, milhares de africanos escravizados e deportados de sua terra natal, foram transportados nos porões dos navios e, os sobreviventes, desembarcados em Salvador e Cachoeira, e transladados para os inúmeros engenhos de açúcar do Recôncavo – a parte côncava que desenha o entorno da Baía de Todos os Santos. Posteriormente, o fumo adocicado de altíssima qualidade, ali produzido e carregado também nos porões para exportação, foi utilizado como moeda de troca na costa africana por escravizados.
A consequência imprevista de todo esse processo – a diáspora africana – marcou definitivamente a identidade étnica e cultural do recôncavo por meio da recriação de comunidades de africanos e seus descendentes, que se reinventaram dentro e fora do sistema escravista. Particularmente em Cachoeira, que é conhecida como a cidade mais jeje do Brasil, embora também de matriz iorubá, chamada de nagô na Bahia, com seus inúmeros terreiros de candomblé, a maioria no alto dos morros que a circundam.
Com essas questões na cabeça, cheguei pela BR-324, passando rapidamente por Santo Amaro da Purificação e entrando em Cachoeira pelo subúrbio. É uma cidade sempre orgulhosa de seu passado de luta pela independência, perceptível nos monumentos, inscrições nas paredes das igrejas e nas placas comemorativas de metal que evocam os conflitos que culminaram com a expulsão das tropas portuguesas e suas canhoneiras no Rio Paraguaçu que ainda insistiam em manter o domínio colonial.
Fui à sede da irmandade e o burburinho de gente só aumentava. Rojões explodiam no céu anunciando a proximidade da festa muito esperada. As irmãs, eventualmente, apareciam e despertavam olhares atentos e curiosos.
No largo da igreja Nossa Senhora da Ajuda, a capela D’Ajuda, na parte detrás da sede, já estava preparada para receber os devotos e toda a gente do Brasil e do exterior, incluindo muitos ativistas do movimento negro, já instalados em casas e pousadas. Acompanhado de amigos, fui dormir na expectativa de conhecer no dia seguinte um pouco mais do Recôncavo, para além de Cachoeira. O início dos festejos estava marcado para as seis da tarde, no pôr do sol do domingo.
(A seguir, o segundo dia.)
*Antônio Reis Junior é historiador e professor