A diáspora e a escravização de pessoas de diferentes povos africanos separaram inúmeras famílias e dissolveram seus laços. Buscando uma vida melhor, escravizados e alforriados convertidos ao catolicismo criaram as irmandades, construindo relações de “irmãos de compromisso”. As irmandades negras foram fundamentais ao criar uma rede de assistência a seus associados e agregados, comprando alforrias e cuidando da vida e da morte de seus irmãos
Por Antônio Reis Junior*
Dia 3: Segunda feira, dia 14 de agosto de 2023.
Cachoeira amanheceu úmida e enevoada. Desde cedo, fogos pipocavam no céu da cidade anunciando a continuidade dos festejos sagrados. O quarto da casa onde estou hospedado, acolhido por excelentes anfitriões, fica no alto de uma colina e tem uma varanda-mirante que permite ver toda a cidade, o Rio Paraguaçu e, na outra margem, a cidade de São Félix.
Pela manhã, a paisagem se transformava na medida em que a densa névoa que cobria a cidade se dissipava. Após o café, desci o morro pela Ladeira da Cadeia, passando pelo terreiro Ogodô Dey, de nação Nagô-Ketu, um templo de Xangô, e vi a cidade se aproximar aos poucos.
Cachoeira é uma cidade visitada por inúmeros arcos-íris neste agosto invernal. A alternância de chuva e sol deixa a temperatura amena e fresca, diferente do sol inclemente da Bahia no verão, proporcionando ao visitante uma experiência agradável.
Eles apareceram à tarde, após uma rápida chuva, quando voltava de São Félix, cidade onde visitei a fábrica de charutos Dannemann. A empresa alemã passou a explorar o fumo na região depois dele servir durante séculos ao comércio negreiro. Mais uma vez, há uma presença exclusiva de mulheres. Neste caso, na produção artesanal dos charutos feitos inteiramente por mãos femininas, muito habilidosas.
É o segundo dia da festa, e a celebração da morte com seus rituais fúnebres e suas missas, rezas e cantos a Nossa Senhora da Glória, ocupariam o dia e a noite das irmãs, dos devotos e outros tantos interessados que afluíam a Cachoeira. Às 19 horas teria início à missa da “dormição” de Nossa Senhora, na capela de Nossa Senhora da Boa Morte. Após a missa, sairia o cortejo da procissão.
A africanização da tradição católica nas irmandades negras do Recôncavo baiano é perceptível nas indumentárias, nos instrumentos musicais e nas comidas que ainda serão servidas a todos os participantes da festa. Com seu passado repleto de engenhos de açúcar e fazendas de fumo, para o Recôncavo foram levados milhares africanos escravizados deportados de sua terra natal. E foi aqui que o povo negro, para além do cativeiro, expressou-se nos batuques e calundus que se faziam ouvir por todos os cantos, espaços e momentos de liberdade.
Os inúmeros terreiros de candomblé – não por acaso, em terrenos espalhados pelos morros que enlaçam a cidade, mais afastados – são parte desse processo. Além dos quilombos, como o da Vila de São Francisco do Paraguaçu, as margens do rio de mesmo nome, visitado no primeiro dia dessa jornada.
Buscando uma vida melhor, escravizados e alforriados convertidos ao catolicismo criaram as irmandades, associando-se e construindo relações de “irmãos de compromisso”. Assim, firmaram-se vínculos afetivos e sociais, recriados por pessoas com um passado comum, e seus integrantes passaram a se tratar como “parentes”. As irmandades negras foram fundamentais ao criar uma rede de assistência a seus associados e agregados, comprando alforrias e cuidando da vida e da morte de seus irmãos.
A diáspora e a escravização de pessoas de diferentes povos africanos dissolveram laços de inúmeras famílias que foram separadas pelo tráfico transatlântico. Por esta razão, diferentes formas de associativismo no Brasil iriam refazer esses laços promovendo a reconquista de um sentimento de pertencimento dos negros do Brasil – e, nesta irmandade, exclusivamente das mulheres.
Neste sentido, integrar uma irmandade negra como a da Nossa Senhora da Boa Morte significava também uma ascensão social das mulheres que constituíram uma elite africana na cidade, assumindo lugares de destaque e cumprindo também um papel político, inclusive nas campanhas abolicionistas. E uma morte sob cuidados e ritos que garantiriam uma boa passagem para o além.
O dia transcorreu tranquilo e, no início da noite, ouvi fogos que foram disparados do Largo D’Ajuda para onde me dirigi. A pequena multidão começa a se aglomerar na frente da capela da Boa Morte, uma casa centenária em terreno contíguo à sede, onde os padres incensam o ambiente.
Acompanhei, no meio da rua tomada pelas pessoas, quase todas vestido de branco – recomendação da comissão organizadora da festa – a missa de dormição de Maria que, na tradição católica, é o momento de celebrar a sua morte (um enterro simbólico) e a ressureição da virgem, antes de sua elevação ao céu.
Ao meu lado, estão perfilados os músicos da orquestra, alguns muito jovens e até crianças. Estão todos de calça azul escuro e camisa de mangas compridas azul clara. Tocam suas caixas, pratos, tubas, clarinetes, trombones e trompetes. Curiosamente, as partituras estão penduradas nas costas dos instrumentistas para que, aqueles que vem atrás, possam lê-la.
Na saída do cortejo, nova comoção. A santa, representada como uma mulher branca, com seu manto de cor púrpura, ganha as ruas, ainda deitada sobre o andor. A orquestra embala a procissão com sua marcha fúnebre e acompanha o canto entoado pelas irmãs. A ladainha, agora conhecida por todos, cresce e toma todo o entorno por onde circula o cortejo. As janelas e varandas das casas seculares de Cachoeira estão apinhadas de pessoas que acenam, cantam e choram.
“Com a sua proteção, senhora da Boa Morte, abençoe essa missão, virgem mãe, senhora nossa”
As irmãs mais velhas saem de preto e vermelho com sua saia preta plissada, a blusa branca de manga, lenço branco na cintura e o pano da costa sobre um dos ombros. A postura altiva, os colares e anéis, alguns símbolos associados a orixás, os balangandãs, tudo isso dá uma certa realeza as mulheres, sobretudo as mais velhas, algumas já com certa dificuldade de andar e, por isso, amparadas por ajudantes.
Segui silencioso no cortejo, caminhando ora ao lado das irmãs, ora ao lado da orquestra. Em rápida conversa, para não interferir no andamento da procissão, fui informado por uma irmã que o branco representa a morte serena, uma passagem tranquila e harmônica para o além. Já o preto é o luto, e o vermelho, a glória de Nossa Senhora.
A procissão se encerra retornando à capela onde a santa entra de frente para os devotos e de costas para a porta. Aplausos. Nesse momento, está encerrado seu enterro simbólico e a dormição de Nossa Senhora.
A irmandade anuncia que amanhã, dia 15 de agosto, às seis horas da manhã, haverá uma alvorada festiva com foguetório que dará início a um novo momento da festa, com toda uma simbologia ligada a assunção da virgem, sua elevação aos céus e, portanto, mais alegre, festivo e profano, com comida, bebida e samba de roda.
Caminhando sozinho sob uma chuva fina que começou no fim do cortejo, subi a íngreme Ladeira da Cadeia com seu calçamento de pedra e a cidade foi ficando para trás. Assim voltei, já no início da madrugada, a minha hospedagem, com grande expectativa para o dia seguinte.
*Antônio Reis Junior é historiador e professor
(Acesse aqui o segundo dia e o quarto)