Encontro da rede Uma Concertação pela Amazônia debate os desafios e as oportunidades geradas pela ciência, tecnologia e inovação na região. E traz o exemplo bem sucedido de uma indústria que conseguiu harmonizar um processo produtivo altamente tecnológico com os conhecimentos ancestrais dos povos da floresta
Por Magali Cabral
O que é preciso fazer para que em cinco anos a região amazônica tenha 25 empresas com um padrão de automação e sustentabilidade similar ao da 100% Amazônia, que em uma década e meia de existência exportou cerca de R$ 100 milhões em produtos florestais não madeireiros para mais de 70 países? Investir em ciência, tecnologia e inovação é uma resposta vaga em se tratando da complexidade amazônica. O desafio é abrir caminhos para a CT&I penetrar pelas florestas e cooperar com as comunidades tradicionais detentoras dos conhecimentos sobre a biodiversidade local, diante de tantos obstáculos que ainda se impõem sobre a região.
A pergunta inicial deste texto foi uma provocação retórica do empresário e presidente do Conselho Superior de Inovação e Competitividade da Fiesp, Pedro Wongtschowski, feita à cofundadora e CEO da 100% Amazônia, Fernanda Stefani, ambos convidados para falar na terceira plenária do ano realizada pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em 24 de junho. O encontro online, intitulado “Amazônias no Centro: ciência, tecnologia e inovação para a transformação socioecológica”, contou com mediação da secretária executiva da Concertação, Lívia Pagotto, audiência superior a uma centena de pessoas e acessibilidade em libras.
O evento ainda apresentou algumas telas abstratas da artista plástica manaura Adriana Ramalho, que amplificam detalhes microscópicos da natureza – suas obras passam a ilustrar neste momento todos os canais de comunicação da Concertação. Da mesma forma, como a ciência, a tecnologia e a inovação podem amplificar o imenso potencial guardado na região amazônica?
A certeza maior de Fernanda Stefani é que o uso da ciência e da tecnologia sob o olhar ancestral do conhecimento local deve ser o grande diferencial dos negócios dentro da Amazônia. Mas, exceções à parte, são os processos artesanais que ainda preponderam na realidade amazônica, segundo Wongtschowski, devido ao grande vazio de dados, que dificulta a formulação de políticas públicas e a atração de investimentos privados. Ele lembra, no entanto, que a própria Concertação tem incentivado nos últimos anos a apresentação de informações científicas importantes, bem como o MapBiomas, “outro exemplo feliz de uma coleção precisa de dados sobre a ocupação territorial da Amazônia Legal e do Brasil inteiro”.
Para acender a luz
O empresário destaca três medidas urgentes para fomentar o campo da CT&I. Em primeiro lugar, é necessário reequipar com urgência os Institutos de Ciência e Tecnologia (ICTs) da Amazônia. A grande maioria deles opera em escala pequena, com recursos escassos e equipamentos antigos. “Estive há um ano no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e testemunhei um punhado de heróis tentando desenvolver ciência de qualidade em instalações precárias e equipamentos antigos. Na época, o mesmo acontecia no Centro de Bionegócios da Amazônia (CBA) e em outros centros de pesquisa”, aponta.
Uma segunda medida é buscar formas de essas instituições atraírem, reterem e fixarem jovens talentos na região. “No caso do Inpa, sabemos que há um grande número de aposentados trabalhando”, informa. De acordo com o empresário, há expectativa de um concurso público para preencher um número pequeno de vagas, que possibilitará um começo, ainda que tímido, de repovoamento de suas unidades com novos recursos humanos.
O terceiro ponto diz respeito à governança. Wongtschowski acredita que, sem uma mudança dramática nos modelos atuais, será muito difícil obter avanços. Por serem geralmente públicas, as instituições de pesquisa científica ficam submetidas às limitações dos recursos financeiros e à lentidão dos processos públicos – concursos que levam meses para acontecer, dificuldade de substituir pessoas com baixa performance, entre outros empecilhos.
Uma solução sugerida é transformar alguns desses ICTs em organizações sociais. Na defesa dessa tese, ele cita algumas experiências que considera exitosas. É o caso do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação (Embrapii), do Instituto de Matemática Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, em Tefé (AM). “Organizações sociais são administradas como instituições privadas, via contratos de gestão, e financiadas pelo Estado, mas não só”, explica.
O empresário chama a atenção ainda para o fato de a Amazônia estar perdendo market share no mundo. “A castanha-do-pará já não é mais só do Pará. O grosso da demanda pelo produto é suprido atualmente pela Bolívia, muitas vezes com castanhas que o país importa do Brasil. Essas castanhas são tratadas, embaladas e padronizadas na Bolívia e depois exportadas para o mundo”, afirma. Outros exemplos são o do pirarucu, em produção na China, e do açaí, que já pode ser encontrado na Colômbia, no Equador e também no sul da Bahia e no Distrito Federal.
“Culturas tipicamente amazônicas começam a se espalhar por outros locais que talvez não tenham as condições climáticas ideais, mas contam com melhor logística e mão de obra disponível para fazer delas um produto rentável”, arremata Wongtschowski.
Driblando dificuldades
Fernanda Stefani conhece bem o comportamento do mercado internacional de produtos amazônicos. Ela e a sócia, Joziane Alves, montaram 15 anos atrás a empresa comercial de exportação de castanhas e frutos amazônicos, mas não demoraram a perceber que para sair do lugar teriam de fazer diferente. “Ficar trocando a castanha de A pela castanha de B não nos levaria, nem a ninguém, a lugar nenhum. Era preciso transformar a castanha em um produto que fosse único no mundo. Afinal, castanha por castanha, como o Pedro [Wongtschowski] afirmou, já tem em outras regiões do mundo”.
Foi o que fizeram as empresárias da 100% Amazônia, o que naturalmente exigiu muito investimento em CT&I. Atuando em parceria com centros de pesquisa e fomentando a criação de cooperativas entre agricultores familiares, elas foram transformando os frutos amazônicos orgânicos em purês, polpas, xaropes, pós, manteigas, óleos, esfoliantes etc., sempre valorizando e incorporando o conhecimento ancestral aos produtos, o que para Stefani também é ciência.
“Aqui na Amazônia, esbarramos em ciência todos os dias, em todos os lugares”, afirma. “A diferença é que é uma ciência pouco valorizada e quase nunca percebida”, diz Stafani .
O modelo de negócios sobre o qual se desenhou a 100% Amazônia envolve, portanto, dois pilares importantes. Um deles se refere ao fortalecimento das comunidades locais, via agricultura familiar. Isso é feito por meio do fomento de cooperativas dentro da Amazônia. É a partir delas que a indústria garante grandes volumes de produção para dar conta de escalas anuais em torno de 20 toneladas de cumaru, 60 toneladas de guaraná e 3 mil toneladas de açaí. E são elas também que contribuem com a conservação de 160 mil hectares de floresta.
Sempre que possível, Stefani gosta de exibir os bons resultados obtidos pelas cooperativas parceiras da 100% Amazônia aos produtores de commodities, como a soja, para demonstrar que se ganha dinheiro com bioeconomia e com a conservação da biodiversidade.
O outro pilar do negócio é o complexo industrial que criaram em Belém, constituindo a empresa. A planta é composta pela Fábrica da Floresta – cujas linhas automatizadas, com o uso de robótica em algumas fases da cadeia de produção, transformam frutas, sementes e outros recursos naturais em bioingredientes para indústrias de diversos setores; pela empresa comercial de exportação, que manda pra fora do País mais de 50 produtos, todos com tecnologia de rastreabilidade incorporada e selos de sustentabilidade; e, por fim, há um lab de inovação de produtos e serviços. “Já temos projetos em andamento nesse lab, outros sendo incubados e alguns prontos para ganhar escala”, comemora Stefani.
A 100% Amazônia impacta diretamente em seu conjunto de atividades 590 famílias, que representam hoje 40% do potencial projetado. Isso significa que mais de mil famílias serão beneficiadas quando toda a capacidade de produção for trazida para dentro da fábrica. A inclusão socioprodutiva da Fábrica da Floresta, segundo Stefani, é o que garante tanto a sustentabilidade dos recursos naturais como a implementação da integração de TI – que opera QR Codes, drones, sensores IoT e imagens de satélite.
A empresária procura demonstrar com essas informações que a tecnologia não tira o trabalho das pessoas: “Eu prefiro contratar alguém para programar robô do que para ficar colocando e tirando castanhas do lugar em tarefas fabris repetitivas. O futuro do trabalho não é repetitivo”, diz.
A retomada
Cinco anos talvez não sejam suficientes para povoar a imensidão da Amazônia Legal com modelos semelhantes à 100%Amazônia, como gostaria Pedro Wongtschowski, o que não impede que caminhos continuem sendo “pavimentados”. A também convidada para a plenária Tanara Lauschener, subsecretária de Ciência e Tecnologia para a Amazônia no Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sabe bem das condições de sucateamento dos centros de pesquisa da região e justifica: “Estamos vindo de um período muito complicado para a ciência brasileira e ainda não conseguimos retomar o ritmo ideal. Nos últimos anos também perdemos muitas pessoas para o exterior e estamos tratando de recuperá-las”.
Das providências que o governo federal está tomando para reanimar o setor de pesquisas científicas, Tanara Lauschener destaca a retomada do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), um importante mecanismo para financiar pesquisas científicas, que conta com uma linha de quase R$ 13 bilhões. Ela explica que os recursos não serão mais aplicados de maneira pulverizada como no passado. Para receber uma injeção desses recursos foram contemplados dez programas, um dos quais, o Pró-Amazônia, específico para a região.
“Um dos objetivos desse programa é tentar diminuir a diferença de recursos do FNDCT aplicados no Sul e Sudeste em relação ao que vai para o Norte e Nordeste. O programa visa também reduzir as assimetrias regionais no sistema de ciência e tecnologia”, informa Lauschener.
Entre os demais programas, alguns também contemplam a Amazônia Legal. É o caso do Proinfra, programa de infraestrutura, que reservará 30% dos recursos para a região Norte, Nordeste e Centro-Oeste; e do Mais Inovação, que publicará vários editais na área de bioeconomia, com atenção para a conservação dos biomas.
Ela adianta que um dos editais para o Pró-Amazônia, em elaboração pela Subsecretaria, prevê infraestrutura para coleções biológicas e museus, e infraestrutura geral no interior do Amazonas. A estratégia é oferecer a coordenação desse projeto a instituições preferencialmente sediadas no interior, e não na capital. Outro edital abrirá uma linha de subvenção não reembolsável para empresas investidoras em formação de empreendedores, em bioeconomia, em soluções de conectividade, em energias renováveis e em tratamento de água. E um terceiro destina-se a fomentar a criação de redes de pesquisa com vistas ao aumento do conhecimento da sociobiodiversidade da região. “A proposta é que as redes se concentrem em um tema, mas que possam receber a colaboração de vários setores”, explica a gestora pública.
Por fim, a Subsecretaria trabalha também em uma linha para cooperação internacional. “Estamos tendo boas conversas com pesquisadores da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), para que possamos compartilhar pesquisas e pesquisadores no âmbito da região pan-amazônica”.
Cientes da importância da agenda de CT&I na região amazônica, dois institutos brasileiros – Arapyaú e Agni – uniram-se em torno da iniciativa “Estratégia para fortalecer CT&I em bioeconomia na Amazônia”, criada em 2023. Para conhecer as principais linhas e informações sobre a estratégia e ler uma reportagem que aprofunda o tema clique aqui.
Muita legislação e pouca ação
Ana Lúcia Assad, diretora executiva da Associação Brasileira de Estudo das Abelhas, em um aparte durante a plenária, falou sobre a dificuldade de encontrar recursos humanos dispostos a se fixarem em CTIs amazônicas, um dos desafios levantados por Pedro Wongtschowski. Para ela, “formar pessoas da região para a região” parece ser o caminho mais curto e óbvio para solucionar o problema. É natural que um pesquisador de Minas Gerais, acostumado a certos confortos urbanos, não se adapte às condições de vida no interior amazônico – o que dificilmente aconteceria com jovens locais diante da oportunidade de trabalhar pela conservação de seus próprios territórios, como pesquisadores ou parataxonomistas (mais conhecidos por mateiros).
Tanara Lauschener, embora nascida em Santa Catarina, vive na Amazônia desde os cinco anos de idade e também acredita que investir em formação local de pesquisadores é central para superar esse desafio. “Capacitar pessoas que têm relação afetiva com o território é, de fato, a melhor maneira de evitar um êxodo, principalmente de jovens”. O edital para compor as redes de pesquisa em sociobiodiversidade, segundo ela, tentará atrair candidatos locais mais comprometidos com os territórios.
Mas enquanto a infraestrutura não chegar para valer, muito pouco desses projetos têm chance de se capilarizar pela região. Afinal, sem energia e internet ninguém coleta, organiza, nem difunde dados científicos. Sem dados, não há CT&I, e sem CT&I a Amazônia seguirá, em grande parte, desconhecida. Assad afirma que são décadas de discussão sobre o tema, mas pouco acontece. Não por falta de legislação. Criar mais políticas e programas é perda de tempo, na opinião dela. “As políticas já existem em quantidade mais do que suficiente, o que falta é implantá-las. Já temos os programas de infraestrutura da Finep, os de subvenção econômica, as bolsas e programas de desenvolvimento regional, tudo isso já existe”, insiste.
Fernanda Stefani explica que vivenciar as dificuldades logísticas e de infraestrutura provocam muita angústia no dia a dia. Sua empresa mantém um projeto de guaraná orgânico certificado com agricultores familiares do Alto Urupadi, no município de Maués (AM). Ali, a comunidade não é servida de eletricidade, nem de sinal de celular. “Só conseguimos nos comunicar uma vez por mês, quando eles se deslocam até o centro de Maués”.
Essa falta de infraestrutura atrapalha muito a vida deles e a dela também. “Só quem vive em território amazônico entende a dor que sentimos no dia a dia diante dessas dificuldades pelas quais passam as populações mais isoladas. Felizmente são dores que vêm acompanhadas também do prazer de estarmos colhendo bons resultados no nosso trabalho e, sobretudo, provocando mudanças importantes na vida de tanta gente”.