Há pelo menos dois temas em que o Brasil pode avançar de forma acelerada utilizando IA: a implementação do Código Florestal e o sequenciamento genético digital, o que tornaria o País um protagonista global do uso da tecnologia para a proteção da natureza
Por Roberto Silva Waack, Renata Piazzon, Lívia Pagotto, Izabella Teixeira, Claudio Sassaki, Adnan Demachki, Mariano Cenamo e Amália Safatle*
As transformações que o avanço da inteligência artificial (IA) estão desencadeando na sociedade mundial costumam ser comparadas com os adventos revolucionários da máquina a vapor, da eletricidade e da internet. Visões mais pessimistas alertam para riscos sem precedentes à democracia e à segurança global. Definitivamente, o mundo não será o mesmo e este futuro está bem mais próximo do que se imagina.
A velocidade das mudanças tem sido ditada pela ambição empresarial das gigantes tecnológicas, enquanto governos e o Terceiro Setor buscam contornos regulatórios e aparatos éticos para proteger as pessoas dos efeitos mais deletérios que possam surgir como a destruição em massa dos empregos e da proliferação de deep fakes.
Mas, como em qualquer mudança tecnológica, por mais disruptiva que seja, também se abre um mundo admirável de oportunidades, entre as quais estão avanços em educação, saúde, segurança pública, indústria, agropecuária, energia mais limpa e proteção do clima, para citar algumas.
Diversas nações preparam-se para aproveitar essa nova realidade, traçando planos estratégicos e colocando em vigor políticas que melhor atendam aos próprios interesses. Isso tem sido observado principalmente nos países ricos do Hemisfério Norte, mas também em nações árabes, além de países do Sul Global, como a Colômbia – que em outubro sediará a COP 16, conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade.
E o Brasil, como tem se posicionado estrategicamente em relação aos benefícios que a Inteligência Artificial pode proporcionar para si mesmo e para o mundo? Há pelo menos dois temas em que o País pode avançar de forma acelerada utilizando IA: a implementação do Código Florestal e o sequenciamento genético digital, o que o tornaria um protagonista global do uso da tecnologia para a proteção do capital natural.
Ao mesmo tempo que abriga a maior biodiversidade do planeta, o País possui uma das legislações mais avançadas do globo no que se refere ao uso da terra, que permitiria, em tese, proteger seu capital natural enquanto exerce a vocação de potência agrícola e pecuária. Tal proteção, por sua vez, propicia as condições ambientais e climáticas para que o Brasil seja um grande produtor de alimentos e de bionergia. Essa legislação robusta é formada pelo Código Florestal, pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) e pela Lei de Crimes Ambientais.
Entretanto, há falhas importantes na implementação do Código Florestal, aprovado há 12 anos: apenas 1,4% dos Cadastros Ambientais Rurais (CAR), que são autodeclaratórios, estão validados pelos governos estaduais, segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária.
Sem a validação, na prática, o processo de recuperação dos passivos ambientais, da Reserva Legal e das Áreas de Proteção Permanente (APPs) não ganha velocidade e consistência, pois os devedores preferem adiar o “acerto de contas” ambiental. E, por outro lado, a propriedade que possui excedentes florestais não encontra demanda firme para comercializá-los. Isso sem mencionar os mecanismos de incentivos econômicos e outros instrumentos que dependem de regulamentação governamental e que não saíram do papel. Com isso, o Pagamento por Serviços Ambientais, que seria uma forma de remunerar quem conserva o extraordinário capital natural brasileiro, não decola.
Como a tecnologia entra nisso? A Inteligência Artificial é capaz de processar bases gigantescas de dados, podendo acelerar a validação dos CAR a custos muito mais baixos e, com isso, finalmente viabilizar o cumprimento do Código Florestal. Será fundamental o Brasil chegar na COP 30 do Clima, a ser realizada em Belém em 2025, com a sua principal Lei Florestal implementada.
O segundo tema estratégico para o Brasil, que estará nos debates da COP 16 na Colômbia, é o chamado digital sequencing, ou sistema de digitalização do patrimônio genético da biodiversidade.
Hoje, é possível fazer o mapeamento genético de microrganismos contidos até em em uma gota de água, resultando, futuramente, em informações sobre como aquele patrimônio genético poderá ser utilizado. Agora, imagine extrapolar a informação genética contida em uma gota d’água para milhões de hectares de área de conservação de um único país como o Brasil.
A partir disso, será possível atribuir valor a esse patrimônio natural imenso que o Brasil e outros países biodiversos do Sul Global detêm. O processamento por meio da Inteligência Artificial é capaz de valorizar o capital natural como nunca, podendo alterar o jogo de forças no contexto geopolítico e permitir a repartição de benefícios com as populações locais, que atuam como guardiãs desse patrimônio, mas não são devidamente reconhecidas e remuneradas por isso.
Há pelo mundo diversas frentes de inovação social e ambiental usando a Inteligência Artificial para encontrar respostas aos desafios da transição energética e o combate à crise climática, mesmo porque o próprio desenvolvimento da tecnologia requer uma oferta crescente de energia e água. De acordo com relatório da AI For Social Innovation, uma iniciativa do Fórum Econômico Mundial, 20% dos empreendedores sociais estão buscando soluções para esses desafios climáticos. Destes, dois terços estão baseados em países desenvolvidos, com apenas um terço em países em desenvolvimento.
Nesse campo, o Brasil também pode atuar com propriedade, como detentor de uma matriz elétrica das mais limpas do mundo. Entretanto, ainda falta no mundo um olhar mais especial para desenvolver o valor do capital natural.
Este, portanto, é um chamado de ação para que representantes do governo brasileiro, do setor privado, do meio político e da esfera acadêmica, notadamente os jovens cientistas, debrucem-se de forma estruturada sobre o tema e respondam: no país com o maior capital natural do mundo e com toda a transformação que a Inteligência Artificial trará, quais são as oportunidades? Duas delas já estão na mesa.
*Autores:
Roberto Silva Waack é presidente do Conselho do Instituto Arapyaú
Renata Piazzon é diretora-geral do Instituto Arapyaú
Lívia Pagotto é gerente de conhecimento do Instituto Arapyaú
Izabella Teixeira é ex-ministra do Meio Ambiente
Claudio Sassaki é empreendedor em residência na Universidade de Stanford
Adnan Demarchki é advogado e empreendedor social
Mariano Cenamo é CEO da Amaz
Amália Safatle é jornalista e editora da Página22
Este artigo resulta de um debate realizo no âmbito do Programa de Fellows do Arapyaú.