Por meio da iniciativa “O Grande Redesenho de Alimentos”, a Fundação Ellen MacArthur convidou empresas de todo o mundo a criar ou redesenhar produtos alimentícios usando os princípios da economia circular, com o intuito de regenerar a natureza. Ao todo, foram desenvolvidos 141 produtos por 57 empresas, em 12 países. No Brasil, 11 empresas chegaram à fase final da jornada. Mas agora o desafio será influenciar a produção de alimentos em larga escala, afirma Gustavo Righeto Alves, gerente de Inovação e Comunidades para América Latina da organização
Por Amália Safatle
Hoje, apenas quatro culturas fornecem 60% das calorias do mundo – e muitos ingredientes de menor impacto ambiental que poderiam ser cultivados como substitutos raramente são usados. O sistema alimentar atual é responsável por quase 30% das emissões de carbono, enquanto a mudança climática vitima grande parte da população mundial – especialmente na região da América Latina e Caribe.
Segundo o relatório Panorama Regional de Segurança Alimentar e Nutrição 2024, lançado pelas Nações Unidas, a América Latina e o Caribe é a segunda região do mundo mais exposta a eventos climáticos extremos, atrás apenas da Ásia. A exposição a eventos climáticos extremos, como secas, inundações e tempestades, reduz a produtividade agrícola, altera as cadeias de suprimento e aumenta os preços dos alimentos, colocando em risco os avanços na redução da fome e da má-nutrição na região.
A boa notícia é que há iniciativas para redesenhar a produção de alimentos, com o objetivo de não só reduzir o impacto negativo sobre clima, poluição e perda de biodiversidade, como promover um impacto positivo na natureza. Empresas de todo o mundo acabam de criar produtos baseados nos princípios da economia circular, após uma jornada de um ano e meio de aprendizado e inovação. Os produtos foram desenvolvidos durante o desafio “O Grande Redesenho de Alimentos”, promovido pela Fundação Ellen MacArthur em parceria com o Sustainable Food Trust, e apresentados no dia 30 de janeiro.
O Desafio convidou empresas de todo o mundo a criar ou redesenhar produtos alimentícios usando os princípios da economia circular, com o intuito de regenerar a natureza. Ao todo, foram desenvolvidos 141 produtos por 57 empresas, em 12 países.
No Brasil, 11 empresas aceitaram o Desafio e chegaram à fase final da jornada: Amazônia Agroflorestal, Amazonika Mundi, Bebajapí Bebidas Fermentadas, Cuíca, Horta da Terra, Mahta, Nude, Nutricandies, Puravida, Santa Food e Viva Regenera. As inovações incluem um cereal proteico feito à base da biomassa da aveia; blend proteico em pó com ingredientes da Floresta Amazônica, como o cogumelo Yanomami e a castanha-do-Brasil; creme adoçante de mel de cacau; pão de mel com recheio à base de doce de biomassa de banana verde; entre outros.
O que é o design circular de alimentos
Os produtos submetidos ao desafio foram desenvolvidos com base no modelo de design circular de alimentos, que propõe critérios de escolhas de ingredientes, fornecimento e embalagem para que o resultado final ajude a natureza a prosperar.
O modelo sugere que sejam priorizados ingredientes mais diversos em espécies e culturas; a escolha de ingredientes que geram menor impacto ambiental; e que a maioria seja produzida com práticas que regeneram a natureza. Além disso, as embalagens desses produtos devem seguir os princípios da economia circular, isto é, evitar a geração de resíduos e poluição e ser feita de materiais que possam circular na prática e em escala.
As empresas e varejistas de bens de consumo de alto giro (FMCGs, na sigla em inglês) exercem uma influência substancial no sistema alimentar: na União Europeia e no Reino Unido, por exemplo, 40% das terras agrícolas são influenciadas pelas 10 principais empresas e varejistas de FMCGs. Segundo a Fundação Ellen MacArthur, muitos desses atores, hoje, contribuem para o problema. Mas, considerando seu porte e poder de influência, podem – e precisam – ser parte da solução.
Da ideia ao produto final: relembre o Desafio
Lançado em 2023, o Desafio “O Grande Redesenho de Alimentos” originou-se a partir do relatório de mesmo nome, que analisou o papel que as empresas de bens de consumo de não duráveis e os varejistas de alimentos podem ter rumo a um sistema de alimentos que gere impactos positivos para os negócios, as pessoas e o meio ambiente.
O Desafio surgiu para mostrar como essa reformulação de produtos poderia acontecer na prática. A jornada se dividiu em três etapas. Na primeira fase, de design, as empresas participantes tiveram a oportunidade de assistir a uma série de webinars com especialistas em economia circular para aprender sobre o design circular de alimentos e formular o conceito dos seus produtos. As ideias que atendiam os critérios do Desafio passaram para a segunda etapa, a fase de produção, na qual as empresas desenvolveram o produto na sua totalidade.
Na fase de produção, 19 startups e PMEs foram contempladas com um subsídio total de £570.000 (aproximadamente R$4.101.725), sendo £30.000 (aproximadamente R$215.880) por empresa, para ajudar na execução das suas propostas de produtos. Entre as contempladas, destacaram-se quatro empresas brasileiras: Bebajapi Bebidas Fermentadas, Horta da Terra, Mahta e Nutricandies.
Segundo Luisa Santiago, diretora executiva para a Fundação Ellen MacArthur na América Latina, as empresas partiram de estágios diferentes no desenvolvimento dos seus produtos. “Algumas já estavam avançadas no seu modo de escolher ingredientes e fornecedores, enquanto outras começaram do zero. Esse subsídio foi um auxílio para garantir que as boas ideias de fato se concretizassem.”
A fase de produção também contou com a participação do Grupo Carrefour Brasil, um dos apoiadores varejistas do Desafio. Por meio de orientações individuais, a empresa compartilhou o conhecimento e experiência do varejo e da relação direta com consumidores como forma de auxiliar os participantes a criarem opções que não fossem apenas viáveis, mas também mais acessíveis e contribuíssem com o aprendizado e conscientização do consumidor. Entre outros apoiadores varejistas estão Quitanda, Casa Rica, Waitrose, Abel & Cole e Fortnum & Mason, que escolheram alguns dos produtos do Desafio para estarem nas suas prateleiras, identificados pelos consumidores por meio do selo “Aliado da natureza”.
Diante disso, Página22 propôs Três Perguntas Para…
Gustavo Righeto Alves, gerente de Inovação e Comunidades para América Latina na Fundação Ellen MacArthur
1.
O que motivou a Fundação Ellen MacArthur a lançar esse projeto do Desafio?
A Fundação trabalha há muito tempo com indústrias que são críticas do ponto de vista de economia circular: moda, plásticos, alimentos, construção civil e finanças. A partir de algum momento, começamos a olhar para os alimentos como uma grande oportunidade do ponto de vista de transição para uma economia circular. É um setor muito impactante do ponto de vista de emissões e de pressão à biodiversidade. Toneladas e toneladas de alimentos são desperdiçados em um cenário onde muita gente passa fome. Então tem algo muito errado. Esses são alguns dos sintomas que nos fizeram achar urgente essa transição. E aí nasce o estudo.
Vimos que uma das formas de transformar esse sistema alimentar era produzir produtos icônicos, que são altamente consumidos pelo consumidor, como os proteicos, cafés, bebidas quentes e carnes. Entendemos que colocar na prateleira produtos queridinhos feitos pela economia circular puxaria uma cadeia de transformação que culmina na transformação das paisagens, porque as pessoas olham e falam: “Nossa, que interessante!”. Temos, por exemplo, o Kit Kat participando do Desafio lá fora. O Kit Kat é um produto icônico. Colocar um Kit Kat feito a partir do design de chocolate na prateleira tem um poder imenso de transformação. Isso gera uma repercussão imensa do ponto de vista de volume.
2.
Pelo que vocês apresentaram, o grande “desafio do Desafio” é a questão da escala. Ou seja, como fazer toda essa iniciativa não ser uma exceção, e sim passar a ser o business as usual? Como despertar nas grandes indústrias essa mesma motivação que vocês tiveram?
Todas as empresas estão com diversos desafios e metas e compromissos e descarbonização. Ela também pode olhar para isso como uma oportunidade. Então, transformar as estratégias, os compromissos em algo material que vai para a gôndola. Foi para a gôndola, qual é o papel do varejo? Como o varejo pode pensar em uma estratégia de precificação? Como o varejo pode pensar em estratégias de promoção para que esse produto se torne cada vez mais acessível? Como o varejo pode pensar em estratégias que impulsionem esse produto para que mais pessoas conheçam e queira adquirir esse produto?
Como os governos podem construir avenidas fundamentais de políticas públicas capazes de dar cada vez mais impulso a produtos como esse? E tem a questão do financiamento também. Há grandes empresas no Desafio, mas a maioria são pequenas e médias startups, que estão lançando os primeiros produtos. Como que a gente aproxima investidores que queiram impulsionar com capital que seja paciente, com capital que seja “dialogável” com a realidade de negócios circulares, com a realidade de negócios que tenham o impacto como uma das suas métricas? Então eu vejo um trabalho ecossistêmico.
A partir de agora, vamos transformar tudo isso em materiais, em artefatos que nos ajudem a mobilizar a indústria de alimento, o varejo, os financiadores e os governos, para que tenhamos, de fato, essa mudança acontecendo. São artefatos pelos quais podemos incidir a partir desses aprendizados em políticas públicas, ou enviar para CEOs de grandes organizações produtoras de alimentos. Estamos vendo como esses aprendizados se transformam em um conteúdo que pode ser mostrado e ensinado para quem faz desenvolvimento de produtos nas empresas.
O que ajudaria a entender melhor o que aconteceu no desafio? É um curso? É uma palestra? É uma conversa? É um policy briefing? É uma estratégia? É um toolkit? Começamos a construir isso e vamos até o meio do ano fazendo essas ativações e engajando o varejista. Agora é a hora de chegar aos varejistas e falar assim: “Olha, tem esse portfólio de produto aqui, você tem um papel muito importante na transformação do sistema alimentar e você pode apoiar colocando esse portfólio na sua prateleira”.
3.
Qual a especificidade da América Latina no projeto global, considerando toda a diversidade sociocultural e a biodiversidade que temos? O programa aqui teve alguma característica que saltou aos olhos?
Somos uma região super conhecida pelo nosso papel na produção mundial de alimentos, e isso é indiscutível. Acho que duas particularidades latino-americanas no Desafio foram, primeiro, as histórias de commodity. O café é comumente feito de maneira monocultora. Mas temos, por exemplo, o café Apuí, que vem de produção agroflorestal, é um café criado em parceria com a floresta, em uma diversidade de espécies. Então, a América Latina proporcionou muitas histórias de commodities a partir de um ângulo de economia circular.
O segundo ponto foi a diversidade. Escolher ingredientes cada vez mais diversos é um dos pilares do design circular para o alimento. Quando enriquecemos enriquece a nossa dieta, quando enriquecemos um alimento com diversidade de ingredientes, eu enriqueço e gero resiliência no ecossistema, porque eu planto um monte de plantas, eu trabalho com plantas nativas, e geralmente isso tem um impacto altíssimo. Temos, por exemplo, a Horta da Terra, que são produtos liofilizados funcionais para alguns horários do dia. E eles são feitos com 16 espécies diferentes de plantas. Isso é uma coisa que só biomas tropicais podem oferecer.