Formação em Tecnologia da Informação e Comunicação capacita para o trabalho em empresas globais sem sair do interior da Amazônia
Prefeitura, igreja, delegacia, hospital e banco são pontos tradicionais de referência nas pequenas cidades brasileiras. No Amazonas, há um outro ícone de destaque no mapa urbano: a loja Bemol, maior rede varejista da região, onde consumidores realizam desejos do móvel, celular ou eletrodoméstico novo. Em Itacoatiara (AM), a 270 Km de Manaus, uma novidade chama atenção: no segundo andar do estabelecimento comercial, próximo ao showroom de camas, cadeiras e guarda-roupas, se localiza a sala do Talent Lab. A iniciativa capacita jovens em Tecnologia da Informação (TI) para o trabalho na empresa ou fora dela – inclusive remotamente, em bigtechs e corporações de todo o mundo, sem sair da floresta.

“Preparamos para o mercado nacional e global; e após a formação os participantes são multiplicadores para a chegada de novos talentos”, informa Camila Silva, coordenadora do time de pessoas da Bemol. O programa inclui desde linguagem de programação básica até engenharia de software e sistemas computacionais mais avançados, além de habilidades para relações humanas no trabalho.

Em Itacoatiara, havia evasão escolar antes da conclusão dos cursos universitários da área tecnológica por jovens que antecipavam a busca de emprego em Manaus, o que motivou a empresa abrir oportunidades de trabalho no setor, sem precisar sair da cidade. Após o sucesso da iniciativa-piloto de seis meses, com projetos de TI voltados à redução de perdas na Bemol Farma, segmento de negócios do grupo varejista, novas turmas foram iniciadas para formação em áreas como desenvolvimento de software e ciência de dados.
Nos diferentes ciclos, as atividades abrangeram 32 participantes, incluindo os seis do atual grupo, iniciado em setembro. “Buscamos maior participação feminina, invertendo o perfil majoritariamente masculino na área de tecnologia nas universidades”, enfatiza Rafaelle Nascimento, gestora de sustentabilidade da Bemol.
Persistência e abertura para o novo
Jovens de vários municípios são atraídos para a formação de nível técnico ou superior em Itacoatiara, devido à presença de estruturas acadêmicas, como o Instituto Federal do Amazonas (Ifam) e a Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O Talent Lab fortalece esse ambiente de produção de conhecimento que funciona como um hub regional de talentos vindos dos interiores da floresta com sede de oportunidades. Após a formação, alguns ficam na cidade; outros vão para a capital ou voltam para a terra natal, e de lá se conectam com o mercado.
“O diferencial da região é a determinação nas dificuldades, a resiliência e a vontade de buscar algo a mais, com disposição para o novo”, enfatiza Afrânio Viana, 24 anos, formado em Sistemas de Informação. Após sete meses no Talent Lab foi contratado pela Bemol como trainee em análise de dados no marketing. “Sem a oportunidade, iria para Manaus buscar emprego no Polo Industrial”, pondera.

Ele reforça que o perfil amazônico de persistência combina com a complexidade das demandas da TI: “O aprendizado é constante com mudanças frequentes, e na Amazônia acostumados a lidar com questões e desafios mais demorados para chegar a bons resultados”.
No trabalho de iniciação científica durante a graduação em Itacoatiara, Viana aplicou tecnologias digitais para analisar imagens de satélite e prever impactos do desmatamento na escala local. No futuro o plano é usar o aprendizado para projetar riscos de doenças a partir de dados do clima e indicadores demográficos, importantes na prevenção.
“Quando aparece uma oportunidade, precisamos agarrar”
Inovações na saúde estão também no radar de Kayth Pinheiro, 27 anos, engenheira de inteligência artificial (IA) na Bemol e aluna da Ufam, vinda de Parintins (AM) – terra da tradicional festa do boi-bumbá, que hoje une tecnologia e criatividade. “Busquei um caminho de independência financeira para apoio à família, com emprego certo e possibilidade de ampliar renda em trabalho remoto”, conta Pinheiro, sem planos de sair do interior amazônico. “Diante das limitações históricas da região, quando aparece uma oportunidade precisamos agarrar”.
Filha de produtores rurais, a engenheira se diz “privilegiada por ser amazônida”, assim como colegas do Talent Lab que mudam a perspectiva do “complexo de vira-lata”, de sentir-se inferiores em relação ao mundo desenvolvido. Bem direcionada, a inovação digital, chave ao desenvolvimento de uma nova economia na Amazônia, tem poderes de cobrir feridas do colonialismo, fortalecendo identidades locais. O rio Amazonas é uma das mais expressivas, que “carrego com orgulho, em especial nas inspirações ao pôr do sol, na orla da cidade”.
À frente do rio, a avenida principal exibe um bem-cuidado corredor de oitis – árvore da Mata Atlântica que ocorre no Amazonas, em áreas de grande volume de chuvas. Lá se localiza a loja da Bemol e o espaço de trabalho com vinte computadores, onde o manauara Victor Barbosa, 37 anos, buscou uma virada de chave na vida.

Ele já trabalhou como mergulhador profissional para inspeções no porto de Manaus, ensinou inglês para crianças e vendeu bebidas em cidades ribeirinhas ao longo de todo o percurso do rio Amazonas. Do casamento, vieram dois filhos e então começou a estudar Engenharia de Software na Ufam, com idas a São Paulo para sondar trabalhos. Mas a oportunidade surgiu no meio da floresta, na Bemol – lá, Barbosa ingressou na formação em Ciência de Dados e foi contratado como analista de crédito. “Vejo como alavanca primordial para acesso a um mercado de trabalho muito concorrido. Um impulso ao crescimento pessoal e profissional em momento difícil na vida”, revela.
A expectativa é um dia empreender o próprio negócio com desenvolvimento de software – inclusive para demandas do exterior. “Programadores brasileiros são bem-vistos lá fora; será uma chance de maior visibilidade para a Amazônia, uma forma de retornar benefícios à sociedade”, observa. Em resumo, há muito potencial para evoluir, só faltam oportunidades.
Piscicultura turbinada
Da cidade são 60 Km até a Oka’s Fish, às margens do rio Urubu, onde a academia dá suporte a uma das principais atividades da bioeconomia amazônica: a piscicultura de espécies nativas. “Queremos democratizar a produção no interior com soluções modulares para reprodução de peixes em pequenas propriedades”, aponta Rondon Yamane, professor do Ifam, em Itacoatiara. Na empresa, a cooperação técnica contribui na estrutura de laboratório e no método de acasalamento, com impacto na maior produtividade de alevinos – os peixes juvenis que seguem para as etapas de engorda até despesca. Entre outros ganhos, o modelo permite animais maiores em menos tempo.

A tecnologia foi transferida a partir da demanda do empresário Kasuo Oka, que veio com os pais do Japão para o Amazonas e trouxe inovações na bagagem. Cultivou hortas para vender verduras na capital e montou uma das maiores indústrias panificadoras da região. Posteriormente, em visita de lazer a Itacoatiara, há 15 anos, encantou-se com a área onde investiria no negócio com tambaquis e matrinxãs.
“Ele bateu na nossa porta para seguir os padrões técnicos necessários ao aumento da produção”, conta Yamane, que então levou o conhecimento experimental para campo – hoje modelo de referência na região. O diferencial é a reprodução induzida de alevinos, por meio de sistemas de recirculação que mantêm as matrizes de peixes em diferentes famílias, marcadas por chip, de forma a garantir maior variabilidade genética.
Além de um lago de 4 hectares, capaz de produzir 40 toneladas de peixe ao ano, há 85 gaiolas instaladas no rio, no total de 850 toneladas ao ano. O projeto contribui na formação de novos talentos: “Temos uma estrutura de mestres, doutores e alunos bolsistas que não pode ser desperdiçada”, aponta o professor, orgulhoso ao mostrar os experimentos no Ifam, em Itacoatiara. De lá saem inovações como um aplicativo voltado à piscicultura que dimensiona o viveiro, calcula a capacidade de peixes e a quantidade de ração, e realiza análises de água.
Ele reforça que o empreendedorismo é estratégico contra o avanço da criminalidade e outros impactos sociais devido à chegada de grandes obras de infraestrutura à região. “Assessoramos produtores rurais e empresas, construindo um futuro de sucesso no município, com visitas técnicas, diagnósticos participativos e planos de ação”, diz Daiane Oliveira Medeiros, coordenadora de projetos de empreendedorismo.
O suporte do Ifam envolvendo criação de marca, estabelecimento de preços e divulgação para acesso a mercados beneficiou o produtor rural Yoshito Kavati, à frente do café São Bento, cultivado no município com diferenciais amazônicos. Aroma suave e duas vezes mais cafeína em relação a variedades de outras regiões são algumas características. “A marca é homenagem ao nome do neto, hoje com seis anos, quem deve lidar com o projeto no futuro, em cenário da mudança do clima”, revela o empreendedor, aos 78 anos.

Ele mostra as floradas indicativas dessas alterações ambientais no cafezal, mas acredita em soluções, como os atuais tanques de lona suspensos que molham as plantas durante a seca, conectados a sensores e placas de energia solar.
O produto é a menina dos olhos de uma história antiga, iniciada em 1972, após Kavati terminar a faculdade e mudar de Lins (SP) para plantar o tão sonhado café em Campo Grande (MS), sem sucesso. Em novo movimento, na década de 1980, ele conheceu a Zona Franca de Manaus no boom do comércio de produtos importados e acabou conhecendo a região de Itacoatiara, onde adquiriu terras, à época fartas e baratas.
Foram 1,5 mil hectares, grande parte em área já desmatada pelos antigos proprietários, base dos negócios que incluem serraria e olaria para produção de tijolos, com reflorestamento de acácia como fonte de biomassa para os fornos. A fábrica dominou o mercado da região, ao ritmo do rápido crescimento urbano da capital devido à concentração de renda na Zona Franca. Hoje, com automação e autossuficiência em energia, a produção é de 4 milhões de tijolos por mês.
“Em 2010, me aposentei, passei os negócios para os filhos, e como não tinha o que fazer plantei café novamente”, diz o produtor. Desta vez, incorpora técnicas de adubação orgânica e outras novidades com propósito de expandir a cafeicultura com a pegada amazônica, a partir de clones desenvolvidos pela Embrapa. “O plano atual é fazer a torra, a moagem e todo o processo necessário para chegar ao mercado com marca própria”, informa Kavati.
‘Cobertor’ de mudas
As instalações da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), em Itacoatiara, abrigam cinco negócios nascentes em sua incubadora de startups, a InUEA. “Quebramos tabus levando empreendedorismo para sala de aula; se nós conseguimos, outros também podem sair da caixinha e fazer diferente”, ressalta Danielle Maia, cofundadora da startup CoroaBio, ao lado de seis sócios egressos do curso de Engenharia Florestal.

Após provocação do professor de silvicultura Victor Hardt, o grupo desenvolve produto inovador que une correta destinação de resíduos, geração de renda e maior eficiência do reflorestamento. São discos com diâmetro de 75 centímetros, produzidos com galhos, folhas e demais sobras das podas de árvores da cidade. Nos plantios de floresta, o material funciona como cobertura de proteção ao redor das mudas para manter a umidade e a liberação de nutrientes.

“A ideia é imitar o papel da serrapilheira [camada de restos orgânicos] na floresta e reduzir a mortalidade de mudas, o que significa menos custos e mais chances de sucesso nos plantios de árvores”, explica Cristina Moreira, também cofundadora da startup.
Os primeiros testes em campo foram animadores. Ao passar na primeira fase de seleção do programa SinapseBio, da Fundação Certi, o projeto recebeu mentorias e concorre a investimento para análises de laboratório e melhorias da inovação, visando produzir em escala comercial e ampliar as aplicações da tecnologia, de olho no potencial das agroflorestas.
“A contribuição para a região não está apenas na maior visibilidade, mas na solução de um dos principais gargalos da restauração de florestas em áreas degradadas, que é o estabelecimento das mudas no campo”, reforça Moreira, animada com as conexões já realizadas em feiras e exposições para levar o produto ao mercado.
IA para serviços públicos
Na sala do lado, na InUEA, o time da startup ColetaAI planeja novos saltos da tecnologia que nasceu para informatizar a coleta de lixo na cidade e foi além no serviço aos cidadãos com a ideia de um sistema de denúncias ambientais, via Whatsapp. O aplicativo passa pelos primeiros testes de acessibilidade e adesão pelo público, prevendo interações para solução de problemas como poluição sonora e da água, lixões, queimadas, maus tratos a animais e outros crimes ambientais.
“O sistema tem potencial de abranger todo tipo de reclamação, além do agendamento de serviços públicos, no sentido de desburocratizar o atendimento ao cidadão”, aponta o empreendedor Jeferson de Almeida.
Ele viveu na periferia de Manaus, onde trabalhou como torneiro-mecânico e – fruto da aposta da família na educação como meio de transformação – tornou-se “um nerd do marketing voltado a novos negócios”, como ele próprio se classifica. “As tecnologias de IA apresentam caminhos para jovens em posse do celular, ampliando perspectivas para além do emprego no comércio ou serviço público”, analisa Almeida.
Segundo ele, as inovações têm o poder de quebrar a imagem de que o interior não gera tecnologia: “Na verdade, está na vanguarda em negócios de potencial regional com maior valor agregado”.
“Somos referência de que o empreendedorismo não é só teoria em sala de aula”, completa Elias Neto, cofundador da ColetaAI e professor de Engenharia Florestal na UEA, em Itacoatiara. Para Adriano Honorato, professor do Ifam e também empreendedor na startup, “a cena da inovação concentrada em Manaus está se deslocando no rastro da bioeconomia e a partir dessa onda pode ampliar o leque para uso da IA em outras áreas do conhecimento”.
Criada há três anos com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), a incubadora está no início da trajetória com foco em bionegócios florestais, iniciados a partir de pesquisas na universidade. O apoio provém da parceria com a empresa de manejo florestal Mil Madeiras, que possui operações em Itacoatiara e incentiva inovações no setor.
Entre as startups beneficiadas, a Agrosaf desenvolveu plataforma inteligente para planejamento de sistemas agroflorestais – projeto aprovado no Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) para captação de R$ 1,5 milhão em recursos de Pesquisa & Desenvolvimento que as empresas do Polo Industrial de Manaus são obrigadas a aportar pela Lei de Informática.

Há, ainda, três iniciativas em fase de pré-incubação, como a produção de doce de leite a partir da seiva de uma planta amazônica, o amapazeiro, hoje usada para fins medicinais. “Desde o início da graduação, oferecemos empreendedorismo inovador e bioeconomia no currículo”, afirma Deolinda Ferreira, coordenadora da InUEA, ao lembrar que o tema está abrindo caminhos e mudando a cultura do município. “Víamos engenheiros florestais no trabalho como frentistas ou balconistas no comércio”, relata.

