Artesãos moldam sobras de madeira e encontram a renda que perderam com a restrição de atividades extrativas em reservas ambientais, hoje polo de turismo de natureza
Um vasto território de florestas protegidas entre os rios Solimões e Negro chama atenção no mapa da Amazônia. A imensidão verde, longe ser um “vazio”, representa um valioso estoque natural para o sustento da vida que fervilha no vaivém das águas. São 27 mil km² nos parques nacionais do Jaú e de Anavilhanas – maior arquipélago fluvial do mundo, com mais de 400 ilhas, no Amazonas. No interflúvio entre as calhas dos dois rios, o município de Novo Airão, distante 195 km da capital por estrada asfaltada, desponta como polo de bioeconomia. Mais especificamente, aquela que valoriza talentos nas artes e tradições culturais, associadas ao turismo de natureza em expansão na lógica de favorecer a floresta em pé.

Na avenida de acesso à cidade, a estrutura de galpões, salas de aula e espaços de lazer que ocupa 9 mil m² de um quarteirão inteiro é concorrido ponto de visitação turística não só pelas belezas do artesanato de madeira lá produzido. O lugar, sede da Fundação Almerinda Malaquias (FAM), se destaca como exemplo de que é possível aliar aumento de renda e conservação ambiental. “Hoje ganho R$ 3 mil a cada 20 dias, mais do que a maioria das atividades no município”, revela o artesão Domingos Ferreira, 47 anos, antes dedicado a queimar floresta para fazer carvão e colocar pasto, na localidade de Careiro da Várzea (AM).

Hoje os dois filhos, Demerson e Domine Ferreira, seguem os passos do pai após aprender o novo ofício a partir de resíduos de madeira achados na floresta ou gerados na construção de barcos e casas, em Novo Airão. “Não conhecia nada sobre artesanato e agarrei a nova ideia na necessidade de manter a família”, ressalta o artesão, orgulhoso pelo Prêmio Sebrae TOP 100 de Artesanato. Ele reconhece: “Sem alternativas, o caminho seria certamente a madeira ilegal”.

São esculturas de animais, utensílios e objetos decorativos em marchetaria, entre outros trabalhos finos com madeira, como mostra a vitrine da loja frequentada por turistas de todo o mundo, na FAM. No fundo do terreno, o barulho das máquinas indica o horário de pico no grande galpão da oficina, onde trabalham 50 artesãos da Associação Nov’Art, formados pela Fundação.
O cenário é fruto de uma história que começou em 1992, após o marceneiro suíço Jean-Daniel Vallotton, cofundador da FAM, ter integrado uma expedição para documentário sobre o boi-bumbá de Parintins (AM) e tomado conhecimento sobre os desafios de Novo Airão. Lá, o artesão e cofundador Miguel Rocha já desenvolvia um projeto incipiente de artesanato com reproduções de animais amazônicos – e ambos criaram a instituição com o objetivo de oferecer treinamento em marcenaria, transformando sobras de madeira em artesanato de alta qualidade.

A ideia visava proporcionar uma fonte de renda sustentável para as comunidades, enquanto promovia a preservação ambiental. Após a criação do Parque Nacional do Jaú em Novo Airão, em 1980, a restrição de atividades econômicas tradicionais impactou as comunidades ribeirinhas locais – o que evidenciou a necessidade de alternativas de renda para o sustento das famílias.
“Após experiências na África já havia decidido direcionar a vida a projetos sociais no mundo e esse pedaço da Amazônia seria o lugar certo”, conta Daniel, ao lembrar o início da jornada. Depois de voltar à Suíça para angariar doações de amigos e colocar as ideias de pé, o projeto na prática só começou em 1997, com capacitação técnica e organização dos artesãos. “O trabalho de formação profissional teve efeito multiplicador: a notícia das primeiras vendas se espalhou e todos já queriam fazer artesanato para ganhar dinheiro”, revela Daniel.
Sucesso de vendas
O crescimento foi vertiginoso no rastro de Novo Airão como porta de entrada do turismo no Arquipélago de Anavilhanas. Para Daniel, no entanto, “há ainda o desafio de garantir autonomia total aos produtores; falta a cultura de gestão do negócio”. Atualmente, os artesãos produzem as peças com garantia de compra pela FAM para revenda no mercado – o que significa estabilidade financeira aos produtores e menos risco de abandono do ofício para o sustento das famílias.
Além da qualificação no trabalho fino com madeira, as oficinas de formação abrangem matemática, geografia, contabilidade básica e visão empreendedora para andar com os próprios pés. O ganho chega a R$ 6 mil por mês, com resíduos de madeira achados em áreas de queimada ou descartados na cidade. Em especial, destaca-se a itaúba, usada na construção de barcos e – e, agora, também esculpida nos tornos para transformação em pratos, bandejas e demais peças vendidas em lojas, hotéis e outros pontos na cidade.
Cerca de 1,5 mil jovens já passaram por lá. Diante da demanda pelo produto no turismo, a expectativa é criar um instituto de nível técnico-profissional para capacitar maior número de jovens em patamar mais elevado de conhecimento, inclusive em marcenaria e movelaria. E para ampliar o leque de matéria-prima, pretende-se utilizar também madeira certificada – ou seja, originária de florestas com selo que atesta práticas sustentáveis de produção.
“Tudo isso é um grande laboratório de aprendizado contínuo, como uma história sem fim, e nosso desafio é encontrar um ponto de equilíbrio entre cultura local, conservação ambiental e visão de negócios”, explica o fundador da FAM. A educação se apresenta como motor da estratégia, hoje consolidada com parcerias de financiadores nacionais e internacionais.
Educação transformadora
Em 2005, as mulheres representavam um terço dos produtores de artesanato e levavam os filhos para o trabalho nos galpões – o que inspirou o programa de educação ambiental que começou com a participação deles e hoje recebe 200 crianças e adolescentes do município. “Queríamos criar um círculo de atividades que se fecha entre as gerações”, revela Daniel, para quem soluções econômicas são chaves na relação homem-natureza.
A preservação da floresta e rios da região atrai turismo, que por sua vez alavanca emprego e renda – por exemplo, no artesanato. E com as atividades de educação, vozes dos curumins podem sensibilizar famílias que ainda olham para árvores como empecilho ao desenvolvimento.
Na FAM, a educação ambiental – voltada para jovens de sete a 14 anos – tem estrutura caprichada de salas de criação e de leitura sob orientação de educadores, além de uma estação de campo fora da cidade. Crianças que no passado participaram das atividades são hoje educadoras, como Évila Mayra, 27 anos, à frente de duas turmas de 20 alunos de sete e oito anos. Ela constata: “Na infância, a oportunidade foi fundamental para desenvolver o olhar do que está ao nosso redor”.
Duas décadas depois, está em suas mãos o cuidado com futuros adultos amazônidas que influenciarão as condições de vida locais e de todo o planeta. “A criatividade na Amazônia é diferente de outras regiões porque a natureza amplia o olhar para soluções”, afirma Mayra, formada em Pedagogia e Gestão Ambiental na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Diante das mudanças climáticas, completa a educadora, “fazer esse trabalho de base é de grande importância, em especial quando a sensibilização ecológica resulta em atividades empreendedoras, com renda e melhor qualidade de vida”.
Segundo ela, a diversidade cultural ajuda na descoberta de talentos. “Quebramos o tabu de que os jovens não têm nada a contribuir. Podem ser protagonistas das próprias vidas”, ressalta Mayra, que considera a chance como educadora um divisor de águas na vida. “A alternativa seria tentar a sorte na capital, mas queria fazer a diferença onde estou, com as ferramentas que nós temos”.
Na sala da Estação Digital com 31 computadores, o coordenador Antônio Paulo Rolim, descendente dos coronéis da borracha que marcaram a história de Novo Airão, busca contribuir com o ecossistema de inovação e empreendedorismo do município desde a base, nos anos iniciais da escola. “Os primeiros passos na era digital precisam acontecer para evitar deficiências no futuro”, observa o tecnólogo em marketing, admitindo ter enfrentado essa carência no começo da profissão.

“A maioria dos jovens no ensino básico sabe mexer no celular, mas não no computador”, enfatiza Rolim. O plano é possibilitar o acesso a novas tecnologias, como treinamento em inteligência artificial, na FAM. Além de servir aos alunos de educação ambiental, o espaço de alfabetização digital, apoiado pela Bemol, é utilizado pelo projeto da plataforma de Mentes Notáveis, que testa tecnologias para crianças com dificuldade de aprendizagem.
A escola indígena que floresce da arte
Situada a 40 minutos de lancha pelo rio Negro, partindo de Novo Airão, a comunidade indígena Renascer representa o novo momento na conexão entre proteção ambiental, turismo e conhecimento tradicional. Como indica o nome, o lugar ganhou evidência e ressurgiu no mapa após as moradias terem sido deslocadas de área em função dos impactos das secas que inviabilizavam o acesso dos alunos à escola. “A evolução da comunidade se deu pela educação”, ressalta a professora sateré-mawé Naline Cabral, ao destacar os avanços na retomada e valorização da identidade indígena.

Grafismos indígenas, peças decorativas com fibras de arumã e outras tradições artísticas se destacam nos ambientes da escola. O cipó-ambé possui propriedades medicinais, fornece água para hidratação nas trilhas floresta e é utilizado para fazer cestos, bolsas e luminárias, como as existentes no refeitório dos alunos. “Elas geram renda e nos ajuda a mudar a ideia de que ao terminar os estudos é preciso ir embora para a cidade”, afirma a professora, uma das primeiras a integrar do projeto Educação Ribeirinha, da FAM.

Ao reunir nove etnias, a comunidade Renascer se diferencia por abrigar diferentes raízes culturais, com troca enriquecedora e o despontar de talentos nas novas gerações que na escola também resgatam a língua materna. O “bom dia” todas as manhãs se dá em pelo menos três idiomas – português, inglês e nheengatu. “A melhoria da qualidade do ensino é nítida”, celebra Cabral.

Com 62 alunos e quatro professores, a escola chama atenção de turistas que hoje visitam em maior número a comunidade, gerando ganhos na venda de artesanato. “Até chegar a esses produtos, diz a professora, “há muita história de vida, riqueza tradicional e, principalmente, educação”.
Pau de chuva, peteca, maracá e outros brinquedos e utensílios tradicionais são temas do currículo escolar. “Os netos ajudam a tirar o arumã e tecer o artesanato que aprendi com minha mãe”, conta a cacique Maria dos Santos, representante da comunidade indígena. “Evoluímos bastante nos últimos anos com energia elétrica, internet e poço de água limpa”.
Segundo Sônia Martins, conselheira de saúde indígena, no passado a produção local se limitava à roça de mandioca e agora, com a renda do artesanato, foi possível “reformar as casas, comprar geladeira e aquirir motor de canoas”.
O próximo passo é a construção de uma pousada e da Casa de Artesanato para exibir a produção local, informa Rubens dos Santos, liderança comunitária que vê com esperança o novo cenário social e econômico do território, mas sente na própria pele os efeitos da mudança climática. Na seca, a fumaça das queimadas, o sumiço de peixes e os trajetos de 15 minutos realizados em três horas são impactos de rotina.
Pedaços de cerâmica primitiva encontradas no entorno retratam a presença dos povos originários que foram expulsos pelos colonizadores. “O histórico de dificuldades e as lições do passado, nos deixam mais preparados para buscar soluções nesse ambiente de fortalecimento indígena”, aponta Santos.

Na comunidade Renascer, os mais velhos olham para o crescimento dos filhos e netos na escola que ajudaram a construir. “É um sentimento de orgulho”, revela José Valter Pereira, 67 anos, indígena tukano que não teve a oportunidade das novas gerações. “As condições de estudo são mais fáceis do que antigamente; se o jovem tiver força de vontade pode ter até um avião a partir do que a natureza oferece”, ilustra.

“Maior autonomia e melhores condições de trabalho, com professores motivados e espaço propício à criatividade, possibilitam aprender novas habilidades e realizar sonhos”, avalia Paulo Henrique Queiróz, diretor administrativo e financeiro da FAM. A meta é expandir o programa Educação Ribeirinha das atuais 12 escolas para 20, com metodologia que tem reduzido a evasão escolar.