No médio-Solimões, a tradição da ciência se abre ao empreendedorismo, com influência na inclusão socioprodutiva e na valorização do conhecimento ancestral
Com pelagem amarelo-claro e cabeça pelada e vermelha, o macaco oacari-branco colocou o município de Tefé (AM) no mapa do mundo graças ao trabalho do primatologista José Márcio Corrêa Ayres (1954-2003) e sua paixão pela biodiversidade amazônica, no desafio de unir conservação da natureza e respeito às pessoas que nela habitam.
A dedicação de toda uma vida às pesquisas para salvar aquele primata da extinção foi muito além da esfera biológica. Resultou na criação de reservas ambientais e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a partir do qual vieram projetos de destaque. Um dos principais é modelo de manejo participativo do pirarucu que une ciência e conhecimento tradicional – e recuperou os estoques do peixe na natureza, hoje presente em cardápios no Centro-Sul do País.
Atualmente, a estrutura de ciência e tecnologia que nasceu no rastro do oacari-branco se abre ao mundo dos negócios na bioeconomia baseada na floresta em pé. “A Amazônia incita pessoas mais motivadas e engajadas: pelo histórico de violências [desde a colonização], elas agarram as oportunidades com todas as forças”, ressalta Tabatha Benitz, coordenadora da Incubadora e Aceleradora Mamirauá de Negócios Sustentáveis, em Tefé. “Há um nítido sentimento de ‘querência’”, reforça.
Além da herança colonizadora, a exclusão social está relacionada a barreiras como o isolamento geográfico, a sazonalidade dos produtos e os impactos das mudanças climáticas, o que – segundo ela – prejudica a oferta, apesar do apetite aquecido da demanda. “É preciso se reinventar a partir do clima e a região tem tradição de resiliência”, completa Benitz, paulista de São José dos Campos há nove anos em Tefé, onde proliferam startups que reescrevem a história da Amazônia.

A incubadora ocupa o prédio da primeira sede do Mamirauá que estava abandonado e foi reformado para abrigar o Núcleo de Inovação e Tecnologias Sustentáveis (NIT), responsável pela relação entre pesquisas científicas e mercado. Logo na entrada, a vitrine do showroom destaca produtos da sociobiodiversidade que incorporam inovações, trabalhadas para virar negócios. Cinco startups compartilham atualmente os espaços da incubadora com acesso a capacitações, mentorias e serviços de suporte como marketing e consultoria comercial.
Sonho inspirador
Inaugurada em 2023, a iniciativa se integra ao desafio de construir bons exemplos como estratégia para a evolução da bioeconomia. “Foi o meu ressurgimento para a vida”, conta a empreendedora Lindraci Alves a respeito do negócio com biscoitos de castanha-do-brasil – dignos de estar nas melhores confeitarias do país, mas que por enquanto privilegiam exclusivamente o paladar de quem está na Amazônia. “Desenganada pelos médicos devido a um tumor no cérebro, gastei todas as economias no tratamento e veio um sonho com a mensagem de que eu deveria fazer biscoitos”, revela Alves, no comando da startup Sabor dos Sonhos.

O negócio substituiu o trabalho de mais de duas décadas como feirante, em Tefé. Com receita caseira aperfeiçoada de geração em geração, o produto se tornou famoso na cidade. Na incubadora do Mamirauá, recebe apoio na identidade visual, marketing e precificação para o sonho ir longe – com selos de qualidade e inspeção sanitária, apoiados pelo Sebrae – e quem sabe chegar a supermercados no País e até exterior. “O faturamento permitiu construir dois pisos de alvenaria na velha casa de madeira, melhorando a qualidade de vida e a estrutura de produção”, diz Alves, com vendas atuais de 2 mil potes por mês.
Além de 12 sabores de biscoitos, a startup possui linhas de castanha e chocolates – tudo com matéria-prima obtida de comunidades indígenas e ribeirinhas. O mantra é avançar no negócio para que os demais elos da cadeia produtiva cresçam junto, com impacto socioambiental positivo às margens do rio Solimões.
Vitrine de soluções
Na Cooperativa Agrícola Indígena Nova Esperança (COOINE), com espaço na incubadora de negócios em Tefé, o objetivo é implantar estrutura de beneficiamento e desenvolver marca própria – não só vender produtos in natura. “Produzimos farinha, açaí, castanha e polpas de frutas, mas queremos sair de fornecedores a fabricantes”, afirma Zuza dos Santos Cavalcanti, à frente de 63 cooperados indígenas de três municípios. A produção é basicamente vendida para programas de governo, como a merenda escolar.
No caso da farinha, só a demanda da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2025, rendeu R$ 830 mil à cooperativa, que agora busca o suporte de gestão para eliminar atravessadores e entrar em novos mercados. “O primeiro movimento será obter financiamento para a construção de uma agroindústria de polpas com selos de inspeção sanitária”, informa Cavalcanti.

“Transformações ocorrem no chão, com geração real de oportunidades através do conhecimento”, observa Viviane Marcos, coordenadora do programa EcoAM, em Tefé. A iniciativa – empreendida pelo Impact Hub Manaus em cinco municípios da região, além de Rondônia e Acre – tem o propósito de fomentar ecossistemas de impacto na Amazônia, com foco na bioeconomia. O trabalho impulsiona a cultura empreendedora, com formação de pessoas e articulação entre políticas públicas, academia e investidores. Até 2027, a meta é impulsionar 10 negócios em setores como agricultura familiar, turismo e pesca.

No freezer do showroom da incubadora, o pirarucu salgado e embalado à vácuo inspira a gastronomia. Em algumas comunidades, o peixe inteiro in natura é vendido com o selo de Indicação Geográfica, concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) a produtos ou serviços que possuem características únicas em função do seu território de origem. “O diferencial atesta a procedência dentro de padrões sanitários e sustentáveis, que muitas vezes impactam na qualidade e sabor”, destaca Cleissiane Souza, diretora da Federação de Manejadores e Manejadoras do Pirarucu de Mamirauá, no total de 18 associações e grupos de manejo, em nove municípios.

A incubadora facilita o acesso à formação gerencial e captação de recursos para projetos em cenário de desafios socioambientais, também na questão de gênero. “As mulheres já participam de todas as etapas do manejo do pirarucu, da vigilância dos lagos à captura, tratamento e comercialização do peixe, o que reflete na autonomia e maior participação na renda familiar”, observa Souza, desde os 10 anos na atividade ao lado dos pais.

Antes o trabalho das mulheres se restringia à casa ou à roça, completa a liderança, técnica de desenvolvimento comunitário pelo Instituto Federal do Amazonas (Ifam). A nova realidade, replicada nas várias cadeias produtivas, mobiliza talentos femininos, diversificando e aumentando a força criativa – com visão de negócios, na agricultura familiar.
Orgânicos em alta
Do porto da cidade até a comunidade da Missão são 25 minutos de lancha pelo Lago de Tefé, margeado por florestas protegidas. No percurso, estruturas flutuantes – casas, lojas e até postos de combustível – chamam atenção até o encontro com as águas do rio Solimões. Botos saltam em acrobacia na natureza. Após uma curva logo adiante, avistam-se no alto do morro o grandioso casarão, igreja e cemitério que compõem um dos núcleos mais antigos da colonização da Amazônia, aberto à visitação turística. O lugar guarda lições do passado, mas também do presente, quando o tema é produzir mais e melhor com inclusão social.

Na comunidade ribeirinha, um grupo de mulheres agriculturas conquistou o selo orgânico que garante qualidade e maior valor no mercado – cerca de 30% a mais. Além da demanda do turismo, elas entregam cestas de frutos e outros alimentos orgânicos em residências da cidade, por meio de pedidos no celular. “É uma forma de reduzir a nossa dependência das feiras e da renda da farinha, com maior autonomia no sustento das famílias”, explica Franciane da Silva Gomes, presidente Associação Clube de Mães Santa Margarida Maria de Alacoque, que reúne 52 mulheres.
Além do aspecto social, alternativas à farinha ajudam a reduzir impactos ambientais das roças de mandioca, como queimadas e desmatamento. Com cozinha multifuncional em construção, a comunidade recebe apoio nas especificações técnicas e embalagens para colocar polpas, geleias e outros produtos em pontos de venda. “A expectativa está na produção de café, antes só plantado para consumo próprio, mas agora uma oportunidade vantajosa diante dos preços no mercado”, revela Raiele dos Santos, integrante do grupo de produtoras.

As novidades criam um ambiente propício ao engajamento de jovens que vão estudar na cidade e voltam para o trabalho junto aos pais na agricultura familiar. “O dinheiro dos orgânicos, por exemplo, é investido em cursos à distância e na produção, como freezers, máquinas de fazer açaí e motosserras, além de melhoria das casas”, ressalta Tereza Paz Frasão, também liderança da comunidade. De lá é fornecido o cacau para pesquisas com subprodutos de maior valor agregado, em Tefé – o que demonstra a interação entre vários atores para fazer a bioeconomia dar certo.
No retorno à cidade, o condutor da lancha, Tiago Neves, sócio da Nheenga, cursou Química na universidade, mas é como guia de turismo que aposta no futuro da região. O turismo em áreas de conservação e o desenvolvimento da bioeconomia são os principais motores. “A qualidade de vida melhorou muito”, avalia o empreendedor, orgulhoso com o crescimento da cidade e seus atrativos, como as feiras populares, a catedral e a rádio, um patrimônio histórico local. É crescente a demanda por visitas a áreas protegidas do entorno, como a observação do manejo de quelônios e a vivência com comunitários dentro da Floresta Nacional de Tefé, na paisagem que molda os saberes naquele pedaço do Solimões.

O ‘domesticador’ de máquinas
Inventor leva melhorias às cadeias produtivas da sociobiodiversidade
Nos galpões que guardam engenhocas como uma incomum fábrica de invenções, em Tefé (AM), o empreendedor Maurilo Gomes é um desses amazônidas inquietos com o paradoxo entre a riqueza da floresta e a falta de alternativas de renda para a população. Um obstinado na busca por soluções nas mais diversas cadeias da sociobioeconomia, à frente da startup Apoena. Da produção de farinha, ao pirarucu e óleos vegetais, o acervo inclui peças, ferramentas e máquinas que ele desenvolve no ímpeto de colocar a mão na massa e resolver o que impede padrões de qualidade, eficiência ou preços justos dos produtos demandados pelo mercado.
“Parte importante do trabalho é transferir tecnologias para comunidades e startups, com impacto socioambiental positivo”, observa Gomes, para quem “o maior medo é ver a checada de pacotes impostos de fora, sem considerar as características locais ou gerar benefícios às populações”.
A trajetória dos inventos começou quando o empreendedor, à época membro de uma cooperativa agropecuária, candidatou-se a um projeto de biodiesel de óleos vegetais amazônicos para geradores de energia. “Imaginava que ficaria rico com produtos de todas as cadeias; coloquei anúncio na rádio da cidade comprando andiroba, murumuru, açaí, castanha, mas não havia fornecedores”, conta Gomes, sem arrependimento. O projeto do diesel mostrou-se financeiramente inviável, mas àquela altura o inventor já havia aprendido a operar a máquina, modifica-la e a ajustá-la para uma alta eficiência, quase o dobro da indicada nos manuais.
“Antes devemos olhar para a oportunidade do mercado e depois buscar soluções para atendê-lo”, recomenda o empreendedor, com formação superior em Contabilidade – e o indispensável suporte da esposa, Katia Gomes, para aterrissar boas ideias na realidade. Dela surgiu o primeiro salto no portfólio da empresa, após detectar a baixa qualidade e a péssima exposição das marcas de farinha nos supermercados. Veio a ideia de retomar o apelo da região pela melhor farinha do país, com criação de embalagem e marca própria – Seu Joca, voltada ao mercado premium.
Inovações automatizaram a produção, com maior rapidez do processamento e melhores condições de trabalho, além de inventos para reduzir impurezas e colocar a farinha na granulação ideal. Hoje o produto é o principal item da Apena, com estimativa de produzir 120 toneladas neste ano, a partir de plantios próprios de mandioca com regeneração de floresta, além da produção na roça de terceiros. Com planos de duplicar a capacidade da fábrica, a estratégia é atingir novas frentes de mercado nas capitais. “Queremos agora processar farinha para outras marcas, mantendo o nosso padrão de qualidade”, anuncia Gomes, ao lembrar o aumento da demanda pelo crescimento de agroflorestas e a maior visibilidade da Amazônia no contexto climático.
Castanha, açaí, cacau e pirarucu: cardápio de soluções para replicar
Após o sucesso da farinha de mandioca, a startup participou de feiras e eventos, onde conheceu demandas de outras cadeias produtivas. Participou dos programas de aceleração BNDES Garagem e Jornada Amazônia, da Fundação Certi, e a partir dessa oportunidade estabeleceu conexão com a NESst, investidora de impacto socioambiental. A Apoena recebeu R$ 270 mil para construir casas de farinha em comunidades amazônicas, com tecnologias adaptadas aos territórios, garantia de origem sustentável e aumento da renda local.
“O diferencial está na criação de negócios sociais por quem conhece as dores dessas comunidades e conseguem pensar soluções viáveis para agregar valor aos produtos”, analisa Tiane Lins, diretora da NESst no Brasil.
Além da farinha, a startup produz ração para suínos e aves à base de mandioca – e a casca da mandioca está em testes para produção de bioplástico em Manaus. Do cacau, é obtido subproduto inovador para cosméticos, além de experimento para produção de barras de chocolate amazônico com maior presença de nutrientes. No caso da castanha, o pulo do gato consiste no equipamento que faz a secagem de forma mais eficiente, com possível uso em outros produtos. Polpas de frutos amazônicos, como camu-camu e cupuaçu, são processadas em parceria com comunidades do município de Maraã. E o açaí, comprado de outras associações, vira pó ou óleo para saborizar a farinha ou compor a fórmula de produtos.
O pirarucu foi alvo de projeto-piloto junto à startup ForestiFi, com tecnologia blockchain que garante rastreabilidade, segurança e redução de custos das operações, em plataforma digital. Foram captados investimentos destinados à compra de 4 toneladas para estocagem e venda do produto na entressafra por melhores preços. “O aprendizado nos permite escalar e replicar as inovações no ecossistema”, enfatiza Gomes, animado com o sucesso a partir da parafernália em seus galpões, onde o “rei dos pilotos” testa inclusive amostras de tucupi para produção de vinagre na Europa.
A estrutura da Apoena em Tefé está aberta a trabalhos de graduação e pesquisa sobre óleos, farinha e outros produtos amazônicos por instituições da cidade, como o Instituto Federal do Amazonas (Ifam). Os inventos ocorrem em conexão com o desenvolvimento de equipamentos na base produtiva da bioeconomia, abrangendo 15 comunidades em unidades de conservação do entorno. “A melhor invenção é o impacto da transferência para quem precisa”, destaca Gomes, com a rara especialidade – como ele próprio diz – de resolver o problema dos outros.
Com receita de R$ 350 mil ao ano no rastro dos insumos da floresta, o empreendedor tem como principal fonte de renda, por enquanto, a produção de pré-moldados para construção civil. Com a bioeconomia em expansão, a expectativa é virar essa equação. Qualificar a produção das comunidades, hoje entregue por preços baixos e sem padrões técnicos a atravessadores, é um desafio. Ele conclui: “Mudança de cultura é difícil e só se dará com bons exemplos”.