A Iríada, organização criada por Bruna Rezende, busca ajudar as empresas a reduzirem o seu risco reputacional por meio de uma métrica rastreável, mensurável e comparável, e que gera retorno sobre o investimento. Para isso, foi escolhido como recorte principal a questão de gênero associada à ação climática, pois as mulheres são o grupo da sociedade que mais tem trabalhado na cocriação de soluções ligadas ao clima mas que, ao mesmo tempo, é o mais vulnerável
Por Amália Safatle
Criada há dois meses a partir do spin-off da consultoria Iris, a Iríada nasceu como uma gestora de ativos sociais integrados à natureza positiva. O objetivo é gerar uma classe de ativos sociais que confiram alta integridade ao capital natural – como mercado de carbono, biodiversidade, plástico ou água. “Estamos criando realmente uma nova classe de ativos integrando esses outros capitais, que vão remunerar quem está investindo em projetos de impacto para reduzir externalidades negativas em cadeias produtivas”, diz a economista Bruna Rezende, fundadora da consultoria.
Para isso, a Iríada escolheu como recorte inicial a questão de gênero associada à crise climática. Isso porque desde a agricultura familiar baseada em sistemas agroecológicos até a ponta do pós-uso das embalagens, quando esses produtos são processados pela indústria e comercializados pelas empresas, encontram-se, em grande maioria, mulheres trabalhando.
Na frente de agricultura familiar, 65% da liderança é realizada por elas, especialmente na sociobioeconomia. E na outra ponta, das embalagens que vão para o consumo e encontram o desafio da economia circular, a parte mais vulnerável da cadeia são as catadoras, que representam 70% da população das cooperativas.
Os principais interessados neste emergente mercado de créditos sociais são as grande empresas, principalmente de alimentos e bebidas, que enfrentam problemas sociais ao longo da cadeia produtiva, desde a extração da matéria-prima, até a gestão da economia circular no pós-consumo.
Leia a seguir a entrevista com Bruna Rezende:
Como surgiu a Iríada e o que ela propõe?
Tenho duas organizações dentro de um guarda-chuva, que é a Iris, uma consultoria em estratégia de sustentabilidade. Trabalhamos desde a definição de uma dupla materialidade, estratégia de sustentabilidade, implementação até a mensuração e valoração de impactos. Nossa tese é de que as organizações produzem o seu capital financeiro, mas também outros três capitais, que são o capital natural, o capital social e o capital humano O capital humano representa a força de trabalho interna de uma organização. E o capital social referencia as pessoas que estão nos territórios, entendendo cadeia produtiva e impacto em suas operações. A tese da Iris é apoiar as organizações a integrarem os seus quatro capitais.
Ao longo da jornada da Iris, identificamos os pontos de acupuntura que precisam ser tocados dentro das organizações para que essa visão de um modelo econômico que integra os quatro capitais vá para o mainstream. Essa tese deu sustentação para a criação da Iríada, que é uma spin-off da Iris.
Ao trabalhar com grandes organizações ao longo de muitos anos, entendi que, quando vamos mensurar os impactos, sempre ficam na mesa três pontos. O primeira deles é que há muito risco reputacional nas cadeias produtivas. Isso é muito claro em todas. E é muito difícil mitigar esses riscos.
O segundo ponto é o impacto social em específico, que é muito difícil de ser comparado, pois cada empresa tem um programa diferente. Então, até dentro do seu portfólio de programas, a empresa não consegue comparar um com o outro. Fizemos vários projetos no Brasil, apoiando organizações a criarem uma métrica de valor onde elas conseguissem comparar os seus programas por meio de uma unidade comparável.
E o terceiro ponto é a falta de um mecanismo financeiro que dê conta de escalar o capital social. Há uma outra coisa também: quando olhamos para a capital natural e para o mercado de créditos de carbono, entendemos que existe o co-benefit sharing, ou seja, o quanto você consegue medir de melhoria nas comunidades que estão impactadas pelos projetos de crédito de carbono. Só que nos padrões que fazem isso, você não traz integridade necessariamente para o quanto de impacto aquele projeto gera de adicionalidade social.
Então, olhei para tudo isso e pensei: como ajudar as organizações a reduzirem o seu risco reputacional associado a uma métrica rastreável, mensurável e comparável, e que gere retorno sobre o investimento – porque este é o grande ponto. Se ficamos só na valoração, conseguimos criar uma linguagem econômica, mas não necessariamente estamos monetizando aquilo.
Era preciso criar um ativo para isso, e que gerasse uma alta integridade de adicionalidade social em comparação com outros projetos, ou associada a outros projetos de capital natural – e aqui estamos falando prioritariamente de mercado de carbono, biodiversidade, plástico ou água. Estamos criando realmente uma nova classe de ativos integrando esses outros capitais, que vão remunerar quem está investindo em projetos de impacto para reduzir externalidades negativas em cadeias produtivas. Essa é a tese da Iríada: uma gestora de ativos sociais integrados à natureza positiva. Isso significa que vamos investir em programas onde seja possível gerar ativos sociais. E o nosso recorte inicial é gênero.
E por que começar por gênero?
Essa é uma pergunta muito importante. A Iríada tem um fundo de investimento catalítico que trabalha com gênero mais ação climática. E temos o que se chama de partner. As empresas nos procuram para certificar os seus programas sociais justamente por essa necessidade de ter verificação, transparência e comparabilidade.
Escolhemos o recorte de gênero com ação climática porque as mulheres são o grupo da sociedade que mais tem trabalhado na cocriação de soluções ligadas à ação climática e, ao mesmo tempo, é o mais vulnerável. Desde a agricultura familiar baseada em sistemas agroecológicos até a ponta do pós-uso das embalagens, quando esses produtos são processados pela indústria e comercializados pelas empresas, encontramos, na maioria, mulheres trabalhando. Na frente de agricultura familiar, 65% da liderança é realizada por elas, especialmente na sociobioeconomia. E na outra ponta, das embalagens que vão para o consumo e encontram o desafio da economia circular, a parte mais vulnerável da cadeia são as catadoras, que representam 70% da população das cooperativas.
Mas esse grupo econômico tem pouco acesso a crédito e assistência técnica. Hoje, no Brasil, menos de 2% da filantropia vai para organizações destinadas a mulheres e meninas, e menos de 3% do capital de private equity vai para esse grupo.
A diferença salarial entre homens e mulheres brancas é de 22%, e de 40% se comparado a mulheres negras. Além disso, a economia do cuidado não é nem mesmo remunerada. Segundo um estudo da Fundação Getulio Vargas, se as mulheres fossem remuneradas pela economia do cuidado, isso representaria 13% do PIB brasileiro.
E quando olhamos para a emergência climática, este é o grupo mais vulnerável. Oitenta por cento da migração forçada hoje é feita por mulheres. O fundo da Iríada, portanto, combina inclusão produtiva, acesso a crédito, assistência técnica e fortalecimento de comunidades, associada à redução de gás de efeito estufa, circularidade de materiais e resíduos e restauração de áreas degradadas.
Como isso funciona? Como os créditos são gerados?
Nós nos baseamos na metodologia W+ (leia-se W Plus). Esse é um padrão americano que já existe há 10 anos, criado pela organização Wocan. A Wocan é uma organização americana que criou esse certificado para a geração de um ativo monetizável. Ela é a certificadora – como se fosse a Verra para o mercado de carbono. Um crédito, ou uma unidade W+, é igual a 10% de aumento de qualidade de vida de uma mulher.
Como isso é medido?
A metodologia tem seis domínios. Medimos o aumento da qualidade de vida de mulheres nos domínios de saúde, renda, segurança alimentar, economia de tempo, educação e liderança. Os programas nos quais conseguimos fazer essa mensuração geram ativos, ou esses créditos sociais.
Vou pegar um exemplo prático. Temos um programa no Tocantins, em Porto Nacional, em parceria com uma escola de agricultura familiar. Quem está desenvolvendo esse programa é uma desenvolvedora de projeto parceira da Iríada, a ERA Brazil, uma empresa do Canadá baseada aqui. O que é feito? O programa que está sendo desenvolvido nesse território é chamado de Superfood Hubs, com o objetivo de estabelecer hubs de produção de alimentos de alto valor agregado em lugares no Brasil, onde associamos não só a produção de alimentos, mas a conexão de redução de desigualdades baseada em gênero com a ação climática.
Nesses hubs, o método escolhido para a produção agroecológica são os sistemas agroflorestais [SAFs]. Isso já está acontecendo desde 2021. Faz-se uma parceria com alguma cooperativa, uma associação ou uma escola de agricultura familiar local. No caso, a gente fez com uma EFA [Escola Família Agrícola] em Porto Nacional. Feita essa parceria, abriu-se uma chamada para assistência técnica em manejo de sistemas agroflorestais.
Nós então capacitamos 1.500 pessoas, das quais 300 eram mulheres. E aí foram escolhidas 12 famílias baseadas nessas lideranças de mulheres, que receberam microfinanciamento para apoiá-las no manejo das suas próprias agroflorestas. Começamos com uma e escalamos para 12 mini-SAFs nessa região, tendo o açafrão como cultivo principal. Estabelecemos um viveiro de mudas na localidade e compramos um maquinário para ajudar no processamento desse açafrão. Esse programa durou um ano e meio e foi certificado dentro da Wocan como W+.
Como funciona essa certificação?
A certificação se dá a partir da aplicação de questionários com essas mulheres, baseados em grupo de controle e dados quantitativos. É uma modelagem que combina quali e quanti, e isso é traduzido em um modelo quanti. Uma vez construído o relatório de verificação, esse relatório é enviado para uma auditoria de terceira parte, que é acreditada pela Wocan. Essa auditoria verifica se tá tudo aderente e valida a quantidade de ativos que está ali. Esses ativos são emitidos e registrados na Market Registry da Standard & Poor’s Global, ficando prontos pra serem comercializados. Hoje, cada ativo, ou cada unidade W+, vale US$ 20. Esse é o valor que a gente tem comercializado no mercado.
Como se dá essa comercialização? Quem compra e quem vende?
No Brasil, a gente rodou a primeira POC [proof of concept, ou piloto], que foi esse programa de Porto Nacional. A certificação gerou um aumento de 60% na qualidade de vida das mulheres, ou seja, seis créditos por mulher do programa. Isso gerou uma quantidade de 19 mil ativos e fizemos a venda – a primeira da América Latina – para uma empresa americana que é a Capri Holdings, dona das marcas Michael Kors, Jimmy Choo e Versace. É uma holding de luxury goods.
Por que eles se interessaram?
Eles têm na estratégia de social corporate responsibility (responsabilidade social corporativa) o empoderamento feminino. É uma empresa de moda, de luxo, e ao mesmo tempo compra couro do Cerrado. Então a combinação desses dois fatores, de investir no território onde compram matéria-prima deles, associado ao recorte de gênero, fez com que investissem nesse programa.
Quem vende é quem origina o ativo. No caso desse programa, foi feito em parceria com a ERA, que é a detentora desses créditos lá na SP Global. Quem compra segue a mesma lógica do mercado de carbono; não pode fazer o trade desse ativo, ele aposenta esse ativo. Então, não é um ativo que segue sendo comercializado.
Isso significa o quê?
Que os investidores ou as organizações que compram esses ativos estão participando dessa economia chamada Outcome Based Finance, ou seja, investindo em projetos ou negócios que geram resultados de impacto. Porque o que você está comprando é a certificação de que aquele projeto, de fato, mexeu o ponteiro em termos de aumento de qualidade de vida das mulheres.
Antes de inaugurar a Iríada, rodamos esse piloto para entender se, de ponta a ponta, existia apetite para a construção de uma nova classe de ativos no capital social. A gente está trazendo o capital social inclusive para aumentar a integridade do capital natural.
Qual é o potencial de adesão das empresas?
O potencial é grande. As indústrias com quem temos conversado principalmente hoje são de alimentos e bebidas, que trabalham nessas duas frentes, desde precisar de matéria-prima da agricultura até o pós-uso das suas embalagens. Existe todo esse desafio de risco reputacional e de colocar a perspectiva da composição de natureza com pessoas.
Por exemplo, a gente fala muito sobre o alto índice de reciclagem do alumínio. Mas sob quais condições de trabalho? Esse é o ponto que trazemos. A gente olha para uma coisa e não olha para a outra. Não tem como construir uma agenda de clima desconsiderando a agenda social.
Embora a gente tenha lançado uma gestora de ativos só para tratar sobre isso, que é o W+ aqui no Brasil, esse padrão já existe há 10 anos. Então, de fato, é uma agenda madura, que estamos empurrando para de fato entrar na lógica de mercado. Por enquanto, ela está numa lógica de “como é que eu garanto integridade para o recorte social”. O desafio agora é como isso entra em uma lógica de monetização de capital social. Tudo isso são elementos para a construção de um modelo de desenvolvimento econômico no qual as empresas serão avaliadas não pelo EBITDA [Lucro Antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização, na sigla em inglês], e sim pelo impacto que geram. Porque a gente vai conseguir construir, em termos monetários, essa integração das realidades.
Há um risco de que isso possa ser usado como um social washing, no sentido de “eu não invisto tanto aqui na minha organização, mas eu ajudo um pessoal em outro lugar para melhorar minha reputação”?
Eu entendo essa dúvida, é como se fosse um offset do social. Sinceramente, acho que o risco está sempre posto, né? Mas esses projetos não são projetos de ajuda e nem para serem “marqueteados”. Os projetos são um bom negócio. Se você pega, por exemplo, investidores de impacto que estão colocando dinheiro a fundo perdido, hoje a gente está oferecendo a eles comprarem esse ativo por US$ 15, antes de ser gerado. Então, uma vez que o ativo é gerado, proporciona 33% de retorno sobre o investimento. O que banca esse retorno é a apreciação do valor, pois o investidor está comprando o ativo com deságio, uma vez que o preço do ativo hoje já é de US$ 20.
Nada vai impedir uma empresa de comprar ativos para tentar melhorar sua imagem. Mas não é social washing porque ele não está comprando um crédito podre, ele está comprando um crédito de um projeto que foi certificado, assegurado e registrado. Agora, pode ser que essa empresa desinvista em programas da sua cadeia de valor para fazer outro investimento que ela talvez veja como mais eficiente.
Espero que, em breve, a gente internalize esses ativos no balanço social das organizações. Isso vai aumentar o quanto aquela organização vale. Então, ela vai deixar de ser um ativo intangível. Hoje, você não registra nenhum crédito de carbono no balanço, não é aceito. Assim como você não registra um crédito social. Mas, o movimento para onde a contabilidade indica que esses ativos possam ser internalizados no balanço. As grandes discussões que a gente tem na Europa hoje são sobre nature on the balance sheet e agora a gente está trazendo essa visão do social on the balance sheet também.
O desafio de curto prazo das organizações hoje é redução de risco reputacional. O desafio de investidor de impacto hoje é ter retorno sobre investimento. Então estamos juntando essas duas coisas, mas o nosso olhar é para essa integração de uma contabilidade integrada no futuro.
Isso porque tem toda essa movimentação da contabilidade internacional, do IFRS [International Financial Reporting Standards, que passa a considerar outros atributos nos balanços]?
O que começa a ser regulado a partir de 2026 para demonstração em 2027 é o S1 e o S2, [padrões de contabilidade] voltados para sustentabilidade e clima. Agora já estão na esteira o S3, sobre natureza, e o S4, sobre desigualdade social. A Iris, enquanto consultoria, está apoiando os grupos de estudo do S4, que é o TFSID, ou Task Force on Social Inequality Disclosure, justamente pra conseguir endereçar essa classe de ativos sociais dentro do S4.
Por que o nome Iris?
Porque acredito que a forma como vemos o mundo determina como vamos atuar nele. É um convite a olhar para essa economia que é mais ampla. E a Iríada é um nome que foi inventado. É uma deusa do futuro e tem um mito, que nós escrevemos. Ela é uma deusa que vem pra atualidade nos contar o que a gente fez que deu certo no futuro. A gente sempre olha sempre para os deuses gregos e romanos, e se inspira neles como arquétipos para nossa ação atual. Aí pensamos: vamos olhar para o futuro numa visão e entender o que essa deusa está nos trazendo agora.
E tinha que ser uma deusa feminina, né?
Lógico! E aí o mito dela basicamente é o que a gente chama de Jornada do Desvelar, quando começamos a reconhecer que nós somos a natureza, paramos de explorá-la e passamos a integrar esse novo modelo econômico.

