Assim que terminou de conceder esta entrevista, o historiador e professor Nicolau Sevcenko perguntou se tinha sido muito pessimista. Afinal, concluiu que em um momento de crises globais, como este, a arte mais que nunca é essencial para dar perspectivas de futuro – no entanto, jamais foi tão sufocada por um mercado dominado por concentrações de riqueza e poder. Junte-se a este quadro um esvaziamento da educação no País e uma participação popular que anda em descompasso com a dinâmica imposta por tecnólogos. Mas Sevcenko também deu pinceladas claras na tela sombria: propõe reformular currículos escolares, promover uma educação aberta para a comunidade, a cidade e as dimensões globais, empoderar as novas gerações para criar canais de comunicação mais arejados e estimular a mídia a divulgar variadas e descentralizadas manifestações de arte.
Por Amália Safatle
O escritor e ensaísta austríaco Karl Krauss disse que a “arte é aquilo em que o mundo vai se transformar, não aquilo que o mundo é”. O que a arte teria a dizer sobre o mundo que virá? Que mundo é esse que a arte esboça?
Uma das dimensões da arte é projetar expectativas das pessoas como caixa de ressonância dos sonhos da coletividade, de todas as carências, tanto as do artista como as do público que vai buscar aquilo que falta em seu dia-a-dia, e cobrir as lacunas das relações com outros seres. Há momentos em que a arte tem um papel importante a cumprir e espaço maior para operar, e outros em que recua. Neste de crise, a arte seria mais importante do que nunca para dar possibilidade de operar nossas perspectivas de futuro. No entanto, vivemos nas últimas três, quatro décadas, uma absorção castradora das artes pelo mercado. A dinâmica da economia tornou-se preponderante sobre os fatores que deveriam ser críticos e desejantes da produção artística, hoje muito mais voltada para corresponder às demandas do mercado e se articular com modos de operação mercadológicos do que de preencher seu papel com autonomia e interlocução crítica com a realidade.
O Renascimento se deu a partir de um momento de “escuridão”. Hoje, com as crises globais, não devíamos estar em um processo de renascimento também?
O Renascimento é a gênese da identidade da arte na sociedade ocidental moderna, mas tinha um drama, que era a dependência do mecenato e que tornava a arte socialmente marcada e articulada com as camadas dominantes, como o Estado centralizado em formação e a Igreja, que ainda exercia papel decisivo na política européia. Isso até pelo menos o Romantismo, quando os artistas começam a tirá-la desse estado de dependência. O que era muito difícil, pois a produção artística sempre foi muito cara. A única forma de o artista tentar se desprender de focos de poder seria, como tentaram os românticos, criar um público consumidor de arte que desse possibilidade de interlocução direta com a coletividade, o que de certa maneira foi possível, mas ainda era voltada para um público de elite. Foi só no começo do século XX que a erupção da arte moderna permitiu a grupos de artistas abrir mão de processos custosos, materiais nobres e criar um tipo de expressão artística que pudesse se valer de todo e qualquer elemento do cotidiano – objetos catados nas ruas, embalagens. Assim também tiraram a arte da academia e dos museus e a trouxeram para as ruas, para o espaço público, para a interação com as pessoas no seu dia-a-dia. Aí que os artistas ganharam a possibilidade de propor suas próprias agendas e ter participação mais significativa no debate cultural que visava uma transformação da sociedade. Isso teve altos e baixos. No período entreguerras, há uma expansão da arte de massas dominada pelo Estado ou pelos partidos. Depois da guerra, há um período de grande autonomia e experimentação. Mas, a partir do final dos anos 70, acontece uma captação quase irreversível nas cadeias do mercado, e hoje a arte tem a maior dificuldade de se desligar desse jogo em que é sufocada, justamente neste momento de crise profunda.
Há manifestações artísticas que conseguem manter-se autônomas, ou este é um fenômeno marginal demais?
É objeto de debate artístico e estético como conseguir uma arte socialmente significativa sem ser cooptada por partidos políticos, Estado, instituições, corporações ou o próprio mercado de arte. A produção artística realmente significativa é de quem tenta escapar dessas formas de enredamento e embotamento. Para citar um exemplo, o grupo inglês Regain the Streets, ou Retomar as Ruas, que nasceu no começo dos anos 80, é um coletivo de natureza ambiental e política urbana. Tem como objetivo recuperar as cidades devoradas pela ocupação do automóvel, que acuou as pessoas para dentro de suas casas e esgarçou a experiência do convívio na cidade, que é, provavelmente, a mais rica forma de interação da sociedade ocidental. Durante muito tempo, todas as experiências fundamentais, como a construção da democracia, das formas de política representativa, das lutas por direitos trabalhistas, foram forjadas nos grandes aglomerados urbanos, a cidade foi de fato o palco das instituições da democracia moderna e de consolidação da vida coletiva. O Regain the Streets trabalha para a valorização e ampliação do espaço público, praças, parques. É uma agenda social, mas a maneira de executá-la é pela arte e para a arte, com jogos de rua, construção de esculturas coletivas, teatro de rua, decoração de árvores. Isso para mostrar que o espaço público pertence à população e a mais ninguém, noção que foicorroída e chega a corromper a própria idéia de democracia.
O que o senhor pensa do convívio social cibernético, com a construção de redes de relacionamento e compartilhamento e o ciberativismo? E quanto às manifestações artísticas que podem se dar de forma barata e acessível por meio do computador?
As tecnologias não são boas ou más por si mesmas, importa é o uso que se faz delas. Os recursos cibernéticos são um caminho para integração em escalas nunca pensadas, que compartilham interesses, pontos de vistas, agendas de implementação de reformas sociais, e constituem ferramentas políticas da maior importância para uma democracia expandida, em escala global. Mas é uma área fortemente afetada pela publicidade, com uma agressividade também nunca vista antes e, além disso, tem uma limitação de profundidade e ação: é mais fácil ter ações propositivas e mecanismos de articulação, mas sem necessariamente conduzir a processos de reflexão de maior fôlego. A rede não é um lugar bom para se ler teoria. Ela pode estimulá-lo, mas você terá de se desligar dela para essa atividade. Se você se vicia na rede, dificilmente se dedicará a um estudo mais profundo e sistemático de grandes questões da humanidade. É preciso ter uma ligação criteriosa com esses recursos, porque eles têm a capacidade sufocante de absorver todo o seu tempo livre. Outro problema é o esvaziamento do tempo e do espaço. A rede é uma espécie de grande presente homogêneo, contínuo e desprendido de qualquer conotação local. O grande fenômeno dessa rede de comunicação integrada é permitir, por exemplo, que o globo inteiro assista à Copa do Mundo em tempo real, sem pagar ingresso. É fantástico, mas o preço é que cada vez mais se perde a noção de quanto é fundamental para cada pessoa ter um enraizamento no próprio tempo e espaço, com seu modo de vida, sua maneira de ser, a própria história, a da comunidade, o seu quadro de valores culturais. A tendência pela rede é que você perca tudo isso numa grande abstração geral muito marcada pelo entretenimento, uma espécie de disneyficação em escala global.
Que questão no Brasil o senhor elegeria como fundamental para ser equacionada e redesenhada? O resgate da dívida social?
Sem dúvida é a pauta social. Saímos de um regime opressivo militar para cair nesse regime opressivo neoliberal, praticamente sem ter tido espaço para respirar e pensar em como construir uma democracia. Espero que, com a crise financeira, tenhamos a chance de fazer um recuo e retomar a vocação do nosso brilhante pensamento crítico. Entre as áreas que foram marginalizadas nesse processo neoconservador, uma das funções de Estado esvaziadas foi a da educação. A educação sempre teve papel central na agenda da mudança e na pauta dos direitos sociais e a redistribuição da riqueza. Ao lado da ética e da ecologia, é um dos três grandes pilares dos grupos que mantiveram uma pauta reivindicatória no período neoliberal. Mais que nunca, esses pilares vão se tornar centrais no debate que se compuser após a turvação que a atual crise trouxe ao cenário.
O senhor uma vez escreveu que estaríamos no loop da montanha-russa, que pode ser considerado “a síncope final e definitiva, o clímax da aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir, entregando os pontos, entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo maquinismo titânico”. O que o senhor quis dizer com isso?
Esse trecho foi extraído de um livro que fiz no final dos anos 90, A Corrida para o Século XXI – No loop da montanha-russa. A idéia que quis reforçar é que ao longo do século XX houve um processo de aceleração tecnológica que ganhou uma dinâmica própria, de modo que os seres humanos não têm mais condições de se manter atualizados com esse moto-contínuo. A tecnologia está sempre na frente, você tenta ir atrás e compreender o que se passa, mas está sempre atrasado em relação a ela. Quem pauta sua vida são os tecnólogos e, como você não tem a mesma compreensão e velocidade de entendimento, está sempre em um processo de perda. Então, a democracia torna-se obsoleta em relação à dinâmica da tecnologia, da engenharia, da cibernética. Esse descompasso colocou a democracia em uma situação subalterna e incompetente para lidar com o processo em curso. Daí o título do livro, a gente vive uma situação de vertigem, como a de montanha-russa, de perda do controle do mundo ao redor. Hoje a nossa pauta política está perdida em algum ponto dos anos 1970 e não tem mais contato com o que estamos vivendo na primeira década do século XXI.
E a saída qual é?
Primeiro, dar-se conta de que esse descompasso existe e se expande, e que a gente precisa abrir canais, criar nexos, recompor o processo de educação, reformular os currículos escolares, reformular a maneira como as crianças são educadas, para não restringir o ensino à sala de aula. A educação tem de ser aberta para a cidade, para a comunidade e para as dimensões globais. As nossas pautas educacionais nas escolas primária, secundária e superior são praticamente as do início do século XX. Algumas do final do século XIX! É preciso que novas gerações, mais afinadas com essas tecnologias, fiquem mais presentes nos conjuntos decisórios e tornem esses canais mais comunicantes e arejados. É uma pauta de média e longa duração, mas, quanto mais rápido for percebida e maior for o alarme de que a situação favorece monopólios de informação, privilégios e concentração de renda, mais é possível reformular o quadro. Nesse sentido, o papel da imprensa e de uma revista como Página 22 é evidente, para trazer esse debate ao espaço público.
A produção de conteúdo de forma descentralizada, compartilhada e interativa, que a tecnologia também permite, seria um caminho para essa democratização, que antes teria de vencer a exclusão digital?
É de esperar que o acesso à internet também se democratize. Um dos elementos da nossa agenda social é o acesso à rede, que pode criar canais paralelos que compensem a maneira como a grande mídia centraliza e monopoliza determinados temas e contextos. A arte, por exemplo, vive em um círculo fechado, que diz respeito aos vínculos dos artistas com galerias, curadorias, museus, setores da crítica e processos de merchandising que ganham ressonância pela mídia, que projetam certos artistas, estilos, obras, enquanto ignoram outros grupos, manifestações, entidades e linguagens. A rede pode trazer essa informação paralela e dar a ela uma visibilidade até capaz de competir com o grande circuito artístico, mas que nunca vai abalá-lo.
Como o artista que não se vincula ao mercado pode sobreviver?
Quando o artista se conecta ao mercado de arte, ele se descaracteriza instantaneamente. Quer ver o lado oposto disso? No final dos anos 90, eu tinha um compromisso acadêmico na Universidade de Nova York e aproveitei para ver o que havia nas exposições pela cidade. Estava meio entediado, porque tudo é “a maior exposição de Picasso”, “os Matisse que nunca foram a público”, aquele repertório pisado e repisado, mas escalonado em uma dimensão mega, em um museu mega, em um prédio mega e com uma megalojinha na saída. E fui ao Whitney Museum, onde tinha a exposição de dois fotógrafos de grande reputação. Quando entrei no prédio, aparecia no diretório uma sala chamada Inferior. Era de fato muito pequena, no porão, onde ficava a reserva técnica. Nem constava na Time Out, mas lá tinha uma exposição de papel produzido de legumes e hortaliças feita pelo John Cage e seu parceiro amoroso, Merce Cunningham. Pacientemente, produziram um papel de textura rugosa, cheia de interferências, com enorme requinte. E era um papel comestível, desenhavam com tinta também comestível e a pessoa provava. Se eles fizessem uma pintura nesse papel, congelassem e dessem para um museu ou galeria, ganhariam centenas de milhares de dólares. Mas a idéia era: desenhavam e serviam para quem comesse na hora, de forma que não ficasse rastro algum, a obra tinha de ser inteiramente digerida. O empenho de artistas como eles, que já têm um nome e não precisam correr atrás da grana, foi de não deixar o mercado os capturar! Foi a coisa mais impressionante que vi em Nova York naquela temporada, e não tinha destaque nenhum na imprensa. Então, qual é o sentido da arte? Essa delicadeza. A fragilidade daquela coisa quase oriental – a base é o papel de arroz, com uma pintura caligráfica – foi usada como um aríete para detonar o mercado e mostrar o quanto a arte virou uma massa de mistificação, transformada e especulada como mera commodity. Um mercado igualzinho ao Nasdaq.
Por Amália Safatle
Assim que terminou de conceder esta entrevista, o historiador e professor Nicolau Sevcenko perguntou se tinha sido muito pessimista. Afinal, concluiu que em um momento de crises globais, como este, a arte mais que nunca é essencial para dar perspectivas de futuro – no entanto, jamais foi tão sufocada por um mercado dominado por concentrações de riqueza e poder. Junte-se a este quadro um esvaziamento da educação no País e uma participação popular que anda em descompasso com a dinâmica imposta por tecnólogos. Mas Sevcenko também deu pinceladas claras na tela sombria: propõe reformular currículos escolares, promover uma educação aberta para a comunidade, a cidade e as dimensões globais, empoderar as novas gerações para criar canais de comunicação mais arejados e estimular a mídia a divulgar variadas e descentralizadas manifestações de arte.
O escritor e ensaísta austríaco Karl Krauss disse que a “arte é aquilo em que o mundo vai se transformar, não aquilo que o mundo é”. O que a arte teria a dizer sobre o mundo que virá? Que mundo é esse que a arte esboça?
Uma das dimensões da arte é projetar expectativas das pessoas como caixa de ressonância dos sonhos da coletividade, de todas as carências, tanto as do artista como as do público que vai buscar aquilo que falta em seu dia-a-dia, e cobrir as lacunas das relações com outros seres. Há momentos em que a arte tem um papel importante a cumprir e espaço maior para operar, e outros em que recua. Neste de crise, a arte seria mais importante do que nunca para dar possibilidade de operar nossas perspectivas de futuro. No entanto, vivemos nas últimas três, quatro décadas, uma absorção castradora das artes pelo mercado. A dinâmica da economia tornou-se preponderante sobre os fatores que deveriam ser críticos e desejantes da produção artística, hoje muito mais voltada para corresponder às demandas do mercado e se articular com modos de operação mercadológicos do que de preencher seu papel com autonomia e interlocução crítica com a realidade.
O Renascimento se deu a partir de um momento de “escuridão”. Hoje, com as crises globais, não devíamos estar em um processo de renascimento também?
O Renascimento é a gênese da identidade da arte na sociedade ocidental moderna, mas tinha um drama, que era a dependência do mecenato e que tornava a arte socialmente marcada e articulada com as camadas dominantes, como o Estado centralizado em formação e a Igreja, que ainda exercia papel decisivo na política européia. Isso até pelo menos o Romantismo, quando os artistas começam a tirá-la desse estado de dependência. O que era muito difícil, pois a produção artística sempre foi muito cara. A única forma de o artista tentar se desprender de focos de poder seria, como tentaram os românticos, criar um público consumidor de arte que desse possibilidade de interlocução direta com a coletividade, o que de certa maneira foi possível, mas ainda era voltada para um público de elite. Foi só no começo do século XX que a erupção da arte moderna permitiu a grupos de artistas abrir mão de processos custosos, materiais nobres e criar um tipo de expressão artística que pudesse se valer de todo e qualquer elemento do cotidiano – objetos catados nas ruas, embalagens. Assim também tiraram a arte da academia e dos museus e a trouxeram para as ruas, para o espaço público, para a interação com as pessoas no seu dia-a-dia. Aí que os artistas ganharam a possibilidade de propor suas próprias agendas e ter participação mais significativa no debate cultural que visava uma transformação da sociedade. Isso teve altos e baixos. No período entreguerras, há uma expansão da arte de massas dominada pelo Estado ou pelos partidos. Depois da guerra, há um período de grande autonomia e experimentação. Mas, a partir do final dos anos 70, acontece uma captação quase irreversível nas cadeias do mercado, e hoje a arte tem a maior dificuldade de se desligar desse jogo em que é sufocada, justamente neste momento de crise profunda.
Há manifestações artísticas que conseguem manter-se autônomas, ou este é um fenômeno marginal demais?
É objeto de debate artístico e estético como conseguir uma arte socialmente significativa sem ser cooptada por partidos políticos, Estado, instituições, corporações ou o próprio mercado de arte. A produção artística realmente significativa é de quem tenta escapar dessas formas de enredamento e embotamento. Para citar um exemplo, o grupo inglês Regain the Streets, ou Retomar as Ruas, que nasceu no começo dos anos 80, é um coletivo de natureza ambiental e política urbana. Tem como objetivo recuperar as cidades devoradas pela ocupação do automóvel, que acuou as pessoas para dentro de suas casas e esgarçou a experiência do convívio na cidade, que é, provavelmente, a mais rica forma de interação da sociedade ocidental. Durante muito tempo, todas as experiências fundamentais, como a construção da democracia, das formas de política representativa, das lutas por direitos trabalhistas, foram forjadas nos grandes aglomerados urbanos, a cidade foi de fato o palco das instituições da democracia moderna e de consolidação da vida coletiva. O Regain the Streets trabalha para a valorização e ampliação do espaço público, praças, parques. É uma agenda social, mas a maneira de executá-la é pela arte e para a arte, com jogos de rua, construção de esculturas coletivas, teatro de rua, decoração de árvores. Isso para mostrar que o espaço público pertence à população e a mais ninguém, noção que foicorroída e chega a corromper a própria idéia de democracia.
O que o senhor pensa do convívio social cibernético, com a construção de redes de relacionamento e compartilhamento e o ciberativismo? E quanto às manifestações artísticas que podem se dar de forma barata e acessível por meio do computador?
As tecnologias não são boas ou más por si mesmas, importa é o uso que se faz delas. Os recursos cibernéticos são um caminho para integração em escalas nunca pensadas, que compartilham interesses, pontos de vistas, agendas de implementação de reformas sociais, e constituem ferramentas políticas da maior importância para uma democracia expandida, em escala global. Mas é uma área fortemente afetada pela publicidade, com uma agressividade também nunca vista antes e, além disso, tem uma limitação de profundidade e ação: é mais fácil ter ações propositivas e mecanismos de articulação, mas sem necessariamente conduzir a processos de reflexão de maior fôlego. A rede não é um lugar bom para se ler teoria. Ela pode estimulá-lo, mas você terá de se desligar dela para essa atividade. Se você se vicia na rede, dificilmente se dedicará a um estudo mais profundo e sistemático de grandes questões da humanidade. É preciso ter uma ligação criteriosa com esses recursos, porque eles têm a capacidade sufocante de absorver todo o seu tempo livre. Outro problema é o esvaziamento do tempo e do espaço. A rede é uma espécie de grande presente homogêneo, contínuo e desprendido de qualquer conotação local. O grande fenômeno dessa rede de comunicação integrada é permitir, por exemplo, que o globo inteiro assista à Copa do Mundo em tempo real, sem pagar ingresso. É fantástico, mas o preço é que cada vez mais se perde a noção de quanto é fundamental para cada pessoa ter um enraizamento no próprio tempo e espaço, com seu modo de vida, sua maneira de ser, a própria história, a da comunidade, o seu quadro de valores culturais. A tendência pela rede é que você perca tudo isso numa grande abstração geral muito marcada pelo entretenimento, uma espécie de disneyficação em escala global.
Que questão no Brasil o senhor elegeria como fundamental para ser equacionada e redesenhada? O resgate da dívida social?
Sem dúvida é a pauta social. Saímos de um regime opressivo militar para cair nesse regime opressivo neoliberal, praticamente sem ter tido espaço para respirar e pensar em como construir uma democracia. Espero que, com a crise financeira, tenhamos a chance de fazer um recuo e retomar a vocação do nosso brilhante pensamento crítico. Entre as áreas que foram marginalizadas nesse processo neoconservador, uma das funções de Estado esvaziadas foi a da educação. A educação sempre teve papel central na agenda da mudança e na pauta dos direitos sociais e a redistribuição da riqueza. Ao lado da ética e da ecologia, é um dos três grandes pilares dos grupos que mantiveram uma pauta reivindicatória no período neoliberal. Mais que nunca, esses pilares vão se tornar centrais no debate que se compuser após a turvação que a atual crise trouxe ao cenário.
O senhor uma vez escreveu que estaríamos no loop da montanha-russa, que pode ser considerado “a síncope final e definitiva, o clímax da aceleração precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir, entregando os pontos, entorpecidos, aceitando resignadamente ser conduzidos até o fim pelo maquinismo titânico”. O que o senhor quis dizer com isso?
Esse trecho foi extraído de um livro que fiz no final dos anos 90, A Corrida para o Século XXI – No loop da montanha-russa. A idéia que quis reforçar é que ao longo do século XX houve um processo de aceleração tecnológica que ganhou uma dinâmica própria, de modo que os seres humanos não têm mais condições de se manter atualizados com esse moto-contínuo. A tecnologia está sempre na frente, você tenta ir atrás e compreender o que se passa, mas está sempre atrasado em relação a ela. Quem pauta sua vida são os tecnólogos e, como você não tem a mesma compreensão e velocidade de entendimento, está sempre em um processo de perda. Então, a democracia torna-se obsoleta em relação à dinâmica da tecnologia, da engenharia, da cibernética. Esse descompasso colocou a democracia em uma situação subalterna e incompetente para lidar com o processo em curso. Daí o título do livro, a gente vive uma situação de vertigem, como a de montanha-russa, de perda do controle do mundo ao redor. Hoje a nossa pauta política está perdida em algum ponto dos anos 1970 e não tem mais contato com o que estamos vivendo na primeira década do século XXI.
E a saída qual é?
Primeiro, dar-se conta de que esse descompasso existe e se expande, e que a gente precisa abrir canais, criar nexos, recompor o processo de educação, reformular os currículos escolares, reformular a maneira como as crianças são educadas, para não restringir o ensino à sala de aula. A educação tem de ser aberta para a cidade, para a comunidade e para as dimensões globais. As nossas pautas educacionais nas escolas primária, secundária e superior são praticamente as do início do século XX. Algumas do final do século XIX! É preciso que novas gerações, mais afinadas com essas tecnologias, fiquem mais presentes nos conjuntos decisórios e tornem esses canais mais comunicantes e arejados. É uma pauta de média e longa duração, mas, quanto mais rápido for percebida e maior for o alarme de que a situação favorece monopólios de informação, privilégios e concentração de renda, mais é possível reformular o quadro. Nesse sentido, o papel da imprensa e de uma revista como Página 22 é evidente, para trazer esse debate ao espaço público.
A produção de conteúdo de forma descentralizada, compartilhada e interativa, que a tecnologia também permite, seria um caminho para essa democratização, que antes teria de vencer a exclusão digital?
É de esperar que o acesso à internet também se democratize. Um dos elementos da nossa agenda social é o acesso à rede, que pode criar canais paralelos que compensem a maneira como a grande mídia centraliza e monopoliza determinados temas e contextos. A arte, por exemplo, vive em um círculo fechado, que diz respeito aos vínculos dos artistas com galerias, curadorias, museus, setores da crítica e processos de merchandising que ganham ressonância pela mídia, que projetam certos artistas, estilos, obras, enquanto ignoram outros grupos, manifestações, entidades e linguagens. A rede pode trazer essa informação paralela e dar a ela uma visibilidade até capaz de competir com o grande circuito artístico, mas que nunca vai abalá-lo.
Como o artista que não se vincula ao mercado pode sobreviver?
Quando o artista se conecta ao mercado de arte, ele se descaracteriza instantaneamente. Quer ver o lado oposto disso? No final dos anos 90, eu tinha um compromisso acadêmico na Universidade de Nova York e aproveitei para ver o que havia nas exposições pela cidade. Estava meio entediado, porque tudo é “a maior exposição de Picasso”, “os Matisse que nunca foram a público”, aquele repertório pisado e repisado, mas escalonado em uma dimensão mega, em um museu mega, em um prédio mega e com uma megalojinha na saída. E fui ao Whitney Museum, onde tinha a exposição de dois fotógrafos de grande reputação. Quando entrei no prédio, aparecia no diretório uma sala chamada Inferior. Era de fato muito pequena, no porão, onde ficava a reserva técnica. Nem constava na Time Out, mas lá tinha uma exposição de papel produzido de legumes e hortaliças feita pelo John Cage e seu parceiro amoroso, Merce Cunningham. Pacientemente, produziram um papel de textura rugosa, cheia de interferências, com enorme requinte. E era um papel comestível, desenhavam com tinta também comestível e a pessoa provava. Se eles fizessem uma pintura nesse papel, congelassem e dessem para um museu ou galeria, ganhariam centenas de milhares de dólares. Mas a idéia era: desenhavam e serviam para quem comesse na hora, de forma que não ficasse rastro algum, a obra tinha de ser inteiramente digerida. O empenho de artistas como eles, que já têm um nome e não precisam correr atrás da grana, foi de não deixar o mercado os capturar! Foi a coisa mais impressionante que vi em Nova York naquela temporada, e não tinha destaque nenhum na imprensa. Então, qual é o sentido da arte? Essa delicadeza. A fragilidade daquela coisa quase oriental – a base é o papel de arroz, com uma pintura caligráfica – foi usada como um aríete para detonar o mercado e mostrar o quanto a arte virou uma massa de mistificação, transformada e especulada como mera commodity. Um mercado igualzinho ao Nasdaq.
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