Manaus sofre as consequências de uma crise de identidade, ao não desenvolver seu potencial tropical. Iniciativas como a Virada Sustentável buscam transformar esse quadro
Imagine um lugar irrigado por igarapés, situado na confluência de dois caudalosos rios, incrustado na exuberância da maior floresta tropical do mundo, rico em biodiversidade, produtos da floresta e serviços ecossistêmicos.
Mas no adensamento urbano que toma o nome dos índios manáos, a visão é outra. São emplacados cerca de 3 mil carros por mês, que vêm engrossar a fila dos congestionamentos em meio a asfalto, cimento e concreto de uma cidade que cresceu desordenadamente.
Os igarapés onde a gente poderia se refrescar, nadar ou navegar viraram pontos de despejo de esgoto, que viscosamente escorre em direção ao Rio Negro. Em extensas manchas urbanas, quase não se vê uma árvore. No clima úmido a 3 graus da Linha do Equador, as pessoas acham melhor ficar no ambiente climatizado dos shoppings.
Fato é que, estando em Manaus, fica fácil esquecer que a gente se encontra no coração da mata amazônica.
A cidade sofre as consequências de uma crise identitária, na medida em que não usa seu potencial florestal para compor as bases de um desenvolvimento sustentável. A economia local, principalmente movida pelos incentivos fiscais concedidos no Pólo Industrial, não se converte em desenvolvimento humano. O IDH é um dos mais baixos entre as capitais brasileiras.
Diante do quadro, inevitável a pergunta que surge em uma roda de conversa sobre “A Manaus dos Nossos Sonhos”: “Qual o propósito desta cidade?”
Esse debate ocorreu às vésperas da 3a edição da Virada Sustentável de Manaus, realizada em 29 e 30 de julho pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS), em parceria com o Ministério da Cultura e correalização do Instituto Virada Sustentável São Paulo. [Em novembro, a FAS deve mudar sua nomenclatura para Fundação Amazonas Sustentável, visando reforçar a ação internacional, para além do estado.]
À pergunta de Ademar Bueno, professor da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, sobre qual o propósito da cidade, é possível acrescentar outras: É uma cidade com mais de um propósito? Uma cidade com vocações divergentes? Por que é importante ter um propósito?
“Posso adiantar que é uma cidade sem identidade, no momento em que não aceita sua tropicalidade e deseja ser algo que nunca será”, afirma Neliton Marques da Silva, professor da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Amazonas, referindo-se à reprodução, nos trópicos, de modelos exógenos, a começar dos arquitetônicos.
Basta ver os edifícios imensos que brotam do asfalto, de fachada escura toda envidraçada, enquanto suas caixas d’água são pintadas de branco, quando podia ser o inverso. Ou seja, gasta-se energia para esfriar o interior do prédio e ainda aquecer a água do banho.
Não é de hoje: vide o famoso Hotel Tropical, um cinco estrelas construído nos anos 1970 pelos militares, cercado de mata mas devidamente isolado dela, como aponta Virgílio Viana, superintendente geral da FAS: “É praticamente um bunker. A área da piscina ocupa um pátio interno cercado por 3 andares de quartos, todo envelopado, sempre de costas para a natureza”, diz.
De onde viria essa aversão atávica, na mais completa tradução da cultura versus natureza? “Há 20 anos o Ângelo Machado, da Universidade Federal de Minas Gerais, fez estudos sobre a psicologia da classe média brasileira. Quando vai morar em áreas verdes, a primeira coisa que faz é desmatar, para em seguida plantar grama, coqueiro e hibisco”, pontua. “É um medo inconsciente da onça, da cobra, do lobo mau, um complexo de Chapeuzinho Vermelho.”
Manauara, Neliton Marques, que também é vice-presidente do Conselho Executivo da FAS, viu a cidade se desfigurar dos pontos de vista social, urbanístico e ambiental quando esta chegava a cerca de 1 milhão de habitantes. Hoje, passa dos 2 milhões. Fundador, em 1975, de uma das primeiras organizações ambientais do estado, a Associação Amazonense de Proteção Ambiental, o professor avalia que, para além da arquitetura, Manaus lida com questões de mobilidade, arborização e habitação de forma absolutamente incompatível com a sua natureza tropical.
A maioria das cidades no Brasil apresenta essa mesma incompatibilidade mas, em Manaus, esse descompasso chama ainda mais atenção diante de tudo o que a Amazônia simboliza.
“A cidade nega e agride a floresta quando o poder público não cria nem robustece um dinamismo que vá ao encontro dessa tropicalidade”, diz. Claro que a culpa não é só do governo. Cabe aos demais atores da sociedade se organizarem e pressionarem por transformações.
A Virada Sustentável, segundo ele, é mais uma expressão de reação da sociedade, que vem se somar a outros movimentos como o Ficha Verde, criado em 2012. Inspirado no Ficha Limpa, tem como agenda monitorar programas e projetos governamentais implementados na Amazônia, elaborar propostas relacionadas à agenda socioambiental para os candidatos a cargos eletivos e apoiar reivindicações, discussões e proposições da sociedade.
Economia da floresta
Neliton Marques acredita que a criação da Zona Franca de Manaus no Polo Industrial contribuiu para “bagunçar” a definição da identidade. Surgiu como um enclave fabril no meio da floresta, e depois começou a criar algumas conexões com o entorno, mas sem dialogar com a identidade local. Em sua opinião, seria preciso estender os incentivos fiscais, que contemplam indústrias como a eletroeletrônica, para produtos da biodiversidade, fortalecendo a economia da floresta.
“Aqui a gente vê ações importantes voltadas à economia florestal, mas que são isoladas, como a da Natura com seus fornecedores de insumos, como um grupo europeu que importa o café orgânico de Apuí (AM), o guaraná orgânico de Maués (AM). No entanto, esse tipo de iniciativa não entra como política de estado”, lamenta Marques.
A falta de identidade dessa cidade, marcada por movimentos migratórios, leva à desvalorização do que é local, impedindo que todo o potencial econômico tropical floresça na velocidade e na escala que poderia, valorizando a floresta viva e todos os serviços e produtos que podem advir dela. Um exemplo é o turismo sustentável, outro é a gastronomia.
“As pessoas não gostam de comer o que é daqui, gostam de comer o que é de fora”, observa Felipe Schaedler, chef dos restaurantes Banzeiro e Moquém, em uma das rodas de conversa da Virada. “Então a gente acaba cozinhando para os turistas”.
Para ele, não existe abacaxi tão bom como o do Amazonas, mas as pessoas veem mais valor na maçã que vem de Santa Catarina. Ele defende uma valorização do alimentos da terra, um olhar para dentro e para o resgate dos alimentos das gerações passadas, que se perderam na modernização trazida pelo “progresso”.
No vídeo Amazônia Invisível, Schaedler mostra o desafio da alimentação na Amazônia, que se tornou dependente de produtos de fora, mas que poderia aproveitar a biodiversidade local para suprir suas necessidades comendo do bom e do melhor. E ainda elevando a autoestima, como sabem fazer os mineiros, os baianos, os gaúchos, os nordestinos e outras populações em relação a seus pratos tradicionais.
O poder da virada
Diante da imensidão de desafios da cidade – um saneamento que não chega a 15%, problemas de mobilidade, áreas ocupada com invasões, ruelas sem lógica de fluxo e transporte eficiente, pouca arborização, população indígena desassistida – o que um evento como a Virada Sustentável pode alcançar?
“A Virada não resolve o problema, mas começa a gerar consciência. É preciso primeiro criar oportunidade para as pessoas se abrirem para o tema, e para isso a ideia é abordar o assunto de forma sedutora. Depois que as pessoas se abrem, começam os movimentos”, diz Virgílio Viana.
André Palhano, fundador e organizador da Virada Sustentável, destaca o caráter de festa e de celebração desse movimento, o que serve para engajar cada vez mais gente e contar especialmente com a energia da moçada, regada a tecnologia, busca de propósito no trabalho e atuação em rede. A Virada hoje já ocorre em 9 cidades brasileiras.
O efeito é mesmo contagiante. O próprio Viana, após participar de uma edição da Virada Sustentável em São Paulo, se sentiu instigado a levar o evento a Manaus. “A estratégia que usamos foi a do sutiã: meter os peitos e ir em frente”. Com isso, a FAS, originalmente voltada a um trabalho de campo em comunidades da floresta, inclusive em regiões remotas, fez da agenda urbana sua mais nova frente de trabalho.
Uma forte razão para a abertura dessa frente, segundo Viana, é o fato de Manaus ser uma cidade-estado, tem 55% da população, tem 90% do PIB, um muito poder concentrado. “O estado está aqui. Então é muito importante que a sociedade do Amazonas, baseada em Manaus, tenha uma agenda de sustentabilidade. A Virada entrou como forma de fortalecer essa agenda nos tomadores de decisão.
Um marco da ação urbana da FAS foi o lançamento, na Virada, da Rede do Programa de Revitalização Ecológica e Urbanização Sustentável (Reusa), iniciativa voltada para desenvolver soluções de baixo custo para a restauração ecológica e urbanização sustentável – incluindo a recuperação do igarapé – junto com comunidades urbanas de alta vulnerabilidade socioambiental e econômica.
A sede do Reusa, construída a um custo de R$ 500 o metro quadrado com material reaproveitado – como canos de perfuração de petróleo descartados pela Petrobras e madeira de caixas de componentes para televisão – pretende servir como espaço de educação ambiental, fortalecimento do associativismo, geração de renda e saúde pública, entre outros eixos.
Viana considera que o maior legado da Virada Sustentável – pelo menos em Manaus – é o estímulo para grupos se formalizarem, a exemplo do Impact Hub, que criou referências, como um espaço de coworking, onde as pessoas estão desenvolvendo economia colaborativa. “Acredito cada vez mais na capacidade da sociedade civil de promover transformações, e menos dos governos, que estão sem dinheiro nem capacidade de inovar”. Hoje a cidade já reúne mais de 100 empreendedores voltados para a sustentabilidade.
A Virada em Manaus, segundo Palhano, se notabiliza pelo alto nível de engajamento da moçada. Desta vez, foram mobilizados 800 voluntários, além de um conselho criativo formado por 36 instituições de vários segmentos.
É um jeito de plantar na cidade as sementes da floresta.