Neste momento tão delicado, em que o Brasil está colocado entre as forças conservadoras de uma velha política e o futuro que acena para o desenvolvimento sustentável, é chegada a hora de um pacto nacional que faça a escolha certa. Atrelar a identidade de nação à sustentabilidade é o que ainda falta ao Brasil, na avaliação da ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira.
Essa inquietação faz parte de seu dia a dia como consultora para assuntos internacionais envolvendo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Sua atribuição é contribuir para a construção da imagem do País no exterior, atuando junto à organização Be Sustainable e trabalhando para que a inserção do Brasil no mercado internacional seja calcada em respeito ambiental e inclusão social.
Quando estava no governo, ao ser designada para representar o Brasil nas negociações da COP 21 (que resultou no Acordo de Paris), Teixeira conta que se preparou ouvindo diversas personalidades da inteligência brasileira. Todos foram unânimes em dizer que a trajetória de baixo carbono é o papel que o Brasil deve exercer no mundo, com imensas vantagens comparativas.
Assim ela questiona por que a bandeira do fim do desmatamento não foi ainda encampada pelo setor da agricultura. “Há 30 anos, isso até tinha sentido, mas, hoje?” A seu ver, esse atraso deve-se a uma miopia política, do Congresso Nacional a alas do empresariado. Leia entrevista concedida à Página22 durante participação no evento Virada da ONU, que simula negociações internacionais na linha de Sustentabilidade do Mestrado da FGV-Eaesp.
Bióloga, seguiu carreira técnica no governo na área de meio ambiente por 32 anos. Foi ministra da pasta ambiental entre abril de 2010 a maio de 2016, deixando o cargo com o impeachment de Dilma Rousseff. Atualmente trabalha como consultora e é senior fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) para os temas de mudança climática, sustentabilidade, agricultura e uso do solo. Assumirá um novo cargo em posição de alto nível junto a uma instituição das Nações Unidas, o que ainda deve ser anunciado oficialmente.
Que imagem do Brasil deve ser construída internacionalmente?
O Brasil reúne únicas condições no mundo. Isso, somado ao protagonismo na agenda de Paris, confere ao país o papel segundo o qual pode e deve conciliar proteção ambiental e crescimento econômico, de preferência fazendo um decoupling, com uso de recursos naturais sendo menor que o crescimento econômico. Isso é viável em um país feito o nosso. Devemos ter a ambição de expandir a produção de alimentos, respondendo por segurança alimentar, sem precisar destruir o Cerrado, já que existem 100 milhões de hectares de áreas degradadas. Tenho de ter uma nova estratégia, uma nova percepção de uso do solo, conciliando isso com segurança hídrica, com sistemas eficientes de irrigação e lidando com questões sociais.
Tudo isso acaba favorecendo as exportações e a inserção da economia brasileira no exterior?
Tudo isso fortalece o crescimento econômico, o desenvolvimento, a inclusão social, o incremento de renda do produtor e a proteção ambiental. Estamos falando de como transformar um passivo em ativo. O mundo está mudando: nos novos mercados, os consumidores querem saber sobre a cadeia produtiva, se está havendo desmatamento, inclusão social, se tem trabalho escravo. Ou seja, é preciso dar mais transparência ao que acontece no Brasil. E aquilo que estiver fora do track deve ser corrigido. O que não pode é ter coisas feitas na direção certa misturadas com coisas feitas na direção errada, e que isso seja apropriado politicamente como uma coisa só.
Poderia explicar melhor?
Vamos pegar um exemplo claro. Sempre me questionei por que a agricultura brasileira, que é tão orgulhosa de si, não defende o fim do desmatamento na Amazônia como agenda política dela. Porque, até onde eu sei, a agricultura que paga impostos, gera empregos, defende aumento da produtividade, não apoia a grilagem de terras na Amazônia. Essa agricultura, que transformou em exportador o Brasil que há 40 anos importava alimentos, deve caminhar com mais inovação, tecnologia e menor pegada de carbono. Por que não defender a Amazônia e o Cerrado, se essa mesma agricultura acredita que deve usar áreas degradadas e restauração de pastagem, integração lavoura-pecuária e agricultura de baixo carbono? Por que só existe 1,1% de crédito para agricultura de baixo carbono, como acabou de ser anunciado?
Na sua opinião, de onde vem esse modelo mental ainda defasado?
Existe uma miopia política. Os empresários estão ainda acordando para o papel do setor privado na implementação dessa agenda. Não necessariamente a mentalidade do Congresso Nacional, que às vezes deixa a gente assustada, dialoga com a nova expressão política da agricultura brasileira. Vejo vários jovens – a segunda, a terceira geração – que dizem: não pactuamos com isso. Mas então por que defendem isso publicamente? Por que a bandeira do fim do desmatamento da Amazônia é exclusivamente ambientalista? Há 30 anos, isso até tinha sentido, mas, hoje? Não dá só para mostrar que contribui para o PIB, emprego – tudo isso é verdade – e não mostrar os problemas e estratégias de como corrigi-los.
Hoje tem o Cadastro Ambiental Rural [CAR] que é um belo sinal de adesão, onde houve 99% de compliance. Nenhum país do mundo consegue fazer isso. O cadastro não se refere só ao passivo, mas também ao ativo. Tem que parar com essa história de que o meio ambiente faz mal ao agricultor, ao contrário.
Na entrevista que a senhora nos concedeu 7 anos atrás, havia essa mesma fala sobre a necessidade de ser perceber a convergência entre produção e conservação, em vez de divergência. Nesse sentido, houve alguma evolução de lá para cá, ou o grau de miopia continua o mesmo?
Tem alguns sinais de evolução. Melhorou com o engajamento para Agricultura de Baixo Carbono, com o debate da Agenda 2030, com a NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada] no Acordo de Paris. Minha sensação de que houve melhora é no sentido de que dialoguei politicamente para construir [a NDC com as diversas partes interessadas]. Eu não fiz a NDC do Brasil sentada no Ministério do Meio Ambiente com a minha equipe calculando. Quem deu os números foi o Ministério da Agricultura. Quem fez o trabalho de base foi o pessoal da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] etc., além do pessoal da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], conversando com as ONGs. Acho que nunca conversei tanto na minha vida.
Mas em relação à mentalidade do agronegócio em si?
Eu tive parcerias do agronegócio, de vários segmentos. Mas tive de entender…
… que o agronegócio são várias coisas.
São várias coisas, assim como no meio ambiente os ambientalistas são vários. Como toda umbrella, é preciso entender o que está debaixo e achar as frestas. As pessoas estão se engajando, como o setor financeiro. A Febraban [Federação Brasileira de Bancos] foi e é uma das maiores parceiras do CAR. O que está faltando é algo entre o engajamento político – as atitudes do que chamo de step by step – e a grandes transformação, ou seja, a mudança política de fato. Ao contrário, estamos no meio de um retrocesso no Brasil. É como se o futuro estivesse bloqueado, como ouvi na França recentemente, mas não está.
Ao mesmo tempo em que há evoluções, a impressão é que estamos em um retrocesso ambiental como nunca visto. O que está acontecendo, afinal?
As forças políticas colocadas hoje são, muitas elas, de um Brasil do século passado. Me falam assim: “É que na Europa desmataram tudo, nos Estados Unidos desmataram tudo”.
Mas em que século foi que desmataram?
É bem isso… Nenhum país da Europa tem a floresta tropical que nós temos. Nenhum país do mundo tem as reservas hídricas que nós temos. Nenhum país do mundo tem a diversidade que nós temos. Nenhum país do mundo estabelece como meta de proteção em áreas de conservação 60 milhões de hectares em um bioma como fez o Programa Arpa [Áreas Protegidas da Amazônia]. Ninguém tem 100 milhões de hectares de terras degradadas que pode usar para expandir fronteira agrícola. Então, esse papo de que os outros fizeram e eu posso fazer é do século passado. Tenho que partir de meus ativos que farão diferença para a sociedade se desenvolver de forma sustentável.
Se a gente voltar no tempo, verá que foi feito no final do século passado, nos anos 1990, um projeto de humanidade, um projeto de olhar bem o século XXI. A Conferência Rio 92 é um belo exemplo disso. Eu ouvi recentemente a imortal Rosiska Darcy de Oliveira [ensaísta e jornalista], que participou ativamente de algum desses processos. Nós duas estávamos em um debate e ela fez essa analogia que acho muito correta. Na emergência de um novo século, pautado pela ONU, você tem quatro grandes conferências que modelam o mundo, pensam o mundo para todos, trazem a visão de mundo de sociedades globais, de bens globais, de benefícios globais. Foram: em 1992, a Rio-92; em 1994, a Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento; e, em 1995, a Conferência de Pequim [IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz] e a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos – todas as pautas voltadas para um projeto de bem-estar para a humanidade, de um mundo globalizado, com as trilhas para fazer a sociedade convergir. E o Brasil sediou a maior conferência de toda a História, a Rio-92, que muda a vida de todo mundo.
Se você tiver preconceito contra a pauta ambientalista – afinal os ambientalistas seguraram essa agenda por 20 anos, que bom! – estamos no fundo falando de bem estar, qualidade do desenvolvimento, inclusão social, redução de desigualdade, defesa de direitos humanos. É disso que estamos falando! Não é possível que as pessoas não se sensibilizem por isso. Às vezes, as pessoas não têm essa compreensão, tampouco o Parlamento brasileiro atual tem a compreensão, há uma grande ignorância sobre o mundo, ignorância mesmo, de desconhecer, tá? Há um grande desconhecimento sobre o mundo que se horizontaliza. Há uma distância do mundo real como se fosse só vender grãos para a China, ignorando toda a tradição milenar do país, a visão de mundo daquela sociedade. Se o chinês pedir ao produtor brasileiro o compliance do Código Florestal com condição para exportação, o CAR pode dar toda a transparência sobre o que está sendo feito. Ou eles querem continuar adiando a preparação para valer? “Olha, eu produzo alimentos, posso ter 10% da produção mundial de alimentos, como a FAO desenha, mas faço isso com a condição de proteção ambiental” – mas não, as pessoas resolvem passar a régua, ignorar tudo isso e dialogar com a situação de 40 anos atrás. Por isso chamo de miopia.
Quero saber quais são os próximos 40 anos da Embrapa. Porque, como brasileira – é a empresa da qual todos nós temos orgulho –, não posso concordar, na área de uso de solo, com segmentos na Embrapa brigando para dizer qual dado é mais verdadeiro. Quero saber o seguinte: qual a agenda da Embrapa nos próximos 40 anos. Quais são os desafios?
Havia uma clareza que agora não existe mais?
Não tem clareza. Quais são as parcerias que ela vai fazer? É muito mais que ter uma representação no exterior. Estou falando sobre visão de mundo, visão estratégica. Tenho redes de inovação tecnológica? Onde estão os riscos climáticos relativos à adaptação? Que inovação teria de estimular para evitar perdas produtivas? Que áreas necessariamente o Brasil perder por uma questão climática? Vou esperar essa perda acontecer?
Podemos dizer que o retrocesso está no Congresso, está na bancada ruralista, está em organizações que já foram referência?
Não estou dizendo que esteja na Embrapa. A apropriação política, que é tão importante, deveria ser disputada sobre os novos rumos. Assumir sustentabilidade como um ativo da agricultura brasileira e não como uma barreira, como problema. Não devo discutir se a saída dos Estados Unidos vai enfraquecer a agenda de clima, porque a agenda de todo mundo é a de fortalecer. Como vou, então, trabalhar as alianças para ter competitividade, trabalhar de maneira sustentável, reduzir o custo de produção, acessar novos mercados? Em vez de eu tratar isso estrategicamente, estou lidando com isso no business as usual. O mundo não é mais business as usual.
Essa discussão sobre como usar a sustentabilidade como estratégia já foi mais frequente antes?
Essa discussão teve um pico na discussão sobre o Novo Código Florestal. Foram 10 anos de discussão. Parte teve o entendimento de que não precisava mais desmatar para aumentar a produção. Houve várias declarações de ruralistas de que não era preciso desmatar. Essa é uma mudança de postura. A moratória da soja é outro exemplo, assim como o grupo de Pecuária Sustentável, a turma do biocombustível, a turma da economia florestal. O Brasil precisa ser visto. É impossível você concordar com uma imagem de degradação, de floresta sendo desmatada quando sabe que grilagem é crime. Mais de 80% do desmatamento da Amazônia tem origem ilegal. Quem pactua com isso? Quem pactua com sonegação fiscal? Com trabalho informal ou escravo? Quem concorda com isso? Se você não concorda, por que não se posiciona contra?
Quando você polariza – esta é uma estratégia política – você não tem convergência, todo mundo se empodera nos polos. Foi o que muitos anos perdurou no Código Florestal. Então tem que permitir o debate para construir uma visão clara do problema e a construção das soluções, como no caso da Renca [Reserva Nacional de Cobre e Associados], uma história que apareceu do nada, não tinha nem pai nem mãe. A própria bancada ruralista disse que não tinha nada a ver com aquilo, o pessoal da mineração também não.
A Renca é um bom exemplo de como a sociedade reagiu e obteve um resultado, não é?
A gente não tem mais a condição de passividade que havia no passado. Você colocou uma coisa em pauta, eu quero debater. No caso da Renca, foi uma indignação criativa, porque você criou um movimento político, entrou na mídia, as pessoas foram a Brasília, mostraram a sua cara, dos artistas aos cidadãos comuns. Não tinha um lugar onde você entrasse em que as pessoas, desde o motorista do táxi, do Uber, não tivessem uma opinião: “Isso é indigno”. Porque todo mundo foi na ideia de que a Amazônia é do Brasil e não pode ser destruída por essa vilanização. Como não houve transparência, as pessoas se perguntavam: “Quem é o pai disso? Quem está por trás? É interesse de um grupinho? Isso não pode ser assim”. Em seguida, emendou-se o decreto com questões ambientais que estão na lei. Pelo rito, no caso de um decreto, a Presidência da República sempre consulta o ministério afetado. O ministro diz sim ou não e o encaminhamento se dá por intermédio do gabinete de ministro. Mas, no caso da Renca, o ministro não assinou, apareceu depois em uma coletiva. Depois suspendeu, cancelou.
O meu ponto é: como se toma decisão no Brasil? Que escolhas estão sendo feitas no Brasil? Essa é uma questão quando se discute [o Acordo de] Paris, por exemplo. A presidente da República me designou como a pessoa para fazer isso, para preparar a NDC e operar as negociações. Para fazer isso, trabalhei de forma casada com o governo, com a sociedade, com instituições políticas. O Itamaraty fez uma consulta ampliada com a sociedade – o Itamaraty! Fizemos vários processos de discussão e talvez o mais ilustrativo da envergadura nacional e internacional foi conversar com os líderes políticos que poderiam estar no governo no Brasil em 2020. Conversei com vários atores, liguei para o professor [José] Goldemberg e sentei com ele para discutir toda a questão de energia. Conversei com Fernando Henrique Cardoso, com o ministro [Celso] Lafer, com ministro o Roberto Rodrigues para colher as visões deles. Queria compreender o que muitos deles, que já se envolveram em negociações anteriores, queriam. Todos foram unânimes em dizer que a trajetória de baixo carbono é o papel que o Brasil deve ter no mundo, é a identidade que deve assumir.
Uma identidade de nação?
De nação. Todos, de uma forma ou de outra, disseram isso. Foi incrível. Agora, importante é ter credibilidade para interlocução. O ministro da Fazenda Joaquim Levy foi um grande aliado nesse processo. A EPE [Empresa de Pesquisa Energética] foi importante na formulação de cenários de energia do Brasil, as ONGs trouxeram seus vários modelos matemáticos, o Inpe, a Embrapa, todo mundo sentado ali. Era tanta informação! A gente rodou tudo com modelo matemático, base científica, cruzando os números, simulando cenários, inclusive com a CNI [Confederação Nacional da Indústria] apoiando. Foram muitos elementos: a interlocução com o setor florestal, a estratégia de usar o Código Florestal vinculado à NDC e sua implementação para desenvolver a economia florestal brasileira, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, o Cebds [Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável]… Levamos a questão para o ministro da Fazenda, tudo mundo sentado conversando com o ministro, o ministro dizendo: “Quero ver os números.” A gente ouvia coisas com as quais não concordava, mas tudo bem… Um dos modelos matemáticos foi apresentado por uma instituição que previa que o planeta tinha de reduzir o consumo de carne bovina em 50%. Aí eu perguntei como justificar para o brasileiro que ele vai para de comer churrasco? “Meu filho, eu tô morta na esquina!”
Vai virar churrasco! [risos]
[risos] Eu perguntei a ele: “Você tem cenários para o Brasil?” Não tinha. “Mas me deixa entender essa variável”. Então mandei simular. Ou seja, tudo foi calculado, se a gente podia ou não virar sumidouro [de carbono] etc. Então, o que que é isso?
Tudo isso não se perdeu. É uma inteligência que está aí, não é mesmo?
Não se perdeu, estão todos distantes da estrutura de governo, mas estão todos aí. E isso tudo foi refletido internacionalmente, o que é outra coisa importante.
Mas como colocar implementar a NDC justamente no cenário de retrocesso em que estamos hoje?
Como disse, não acho que o futuro esteja bloqueado. Mas acho que temos de organizar – ou reorganizar – os diferentes nichos da sociedade em torno de uma visão até 2020, que é um balanço da Política Nacional da Mudança do Clima. Olha que interessante: na minha gestão eu tenho as menores taxa de desmatamento – com oscilações, mas é a menor taxa.
Mas a taxa de desmatamento da Amazônia voltou a crescer em 2014.
Em 2014, ano eleitoral. Em 2015, vou a Paris com aumento de desmatamento. Eu assinei a segunda fase do Fundo Amazônia, com US$ 650 milhões e 100 milhões de euros dos alemães, isso não foi impedimento.
Por que essa taxa começou a subir ali e não parou até recentemente?
Nós fizemos três coisas além de rever o PPCDAM [Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia). Apostamos na estratégia de monitoramento de todos os biomas, porque tínhamos de preparar o Brasil para o pós-2020, então não adianta ter a taxa Prodes só na Amazônia. Em abril, o Inpe e a Embrapa lançaram isso em audiência pública. Ou seja, compreender as emissões a partir do uso do solo, para depois dialogar com o CAR e com a implementação do Código.
A segunda aposta foi nas novas tecnologias de controle, para enxergar mais e mais rápido. O Prodes, metodologia auditada pelas Nações Unidas, detecta o corte raso. Mas do ponto de vista estratégico da biodiversidade, de manejo, é importante detectar a degradação, inclusive por causa da queima. Então fizemos cooperação para evoluir nos instrumentos de monitoramento, e um deles foi o Deter-B, que é a nova tecnologia, e o Deter-C, que gera o Prodes mensal, em vez de esperar um ano. Como primeiro exercício, dava 3.600 km quadrados em abril de 2016. Em agosto, deu quase 8 mil. Em 4 meses, dobrou a taxa. Por falta de dinheiro? Possivelmente.
A terceira aposta foi incrementar tremendamente a agenda de cooperação internacional. Então a gente acabou captando R$ 5,7 bilhões até 2021 de cooperação internacional. E mais 1 bilhão e alguma coisa em negociação que nós deixamos. Quando se desenhava a mudança do governo [impeachment], fiquei preocupada porque certamente o governo que entrasse trataria a crise fiscal de outra maneira, com teto de gastos e cortes orçamentários.
A taxa de desmatamento aumentou mesmo com o Brasil entrando em crise econômica, o que em tese reduz a pressão sobre a floresta.
Eu pedi ao pessoal para me trazer o cenário orçamentário, o secretário executivo trouxe, eu falei: “Não vai dar, a gente vai ter que proteger a fiscalização, com medo exatamente por causa da questão do desmatamento. Isso se deu em fevereiro para março. Nosso pessoal entrou em contato com os noruegueses, e a gente fez uma reunião do Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa). E o Cofa, com autorização do governo norueguês, aprovou excepcionalmente um crédito para o Ibama, por 3 anos, blindando esse valor da fiscalização independentemente do orçamento. Isso só foi implementado, segundo me falaram no ministério, em dezembro de 2016. Ou seja, de abril a dezembro, o dinheiro não entrou. Era o ano das Olimpíadas, as pessoas que trabalhavam na fiscalização, a Força Nacional, a Polícia Federal, todo esse contingente foi deslocado. O Ibama ficou sozinho e o desmatamento aumentou.
O ministro do Meio Ambiente não desmata, gente. Isso é essencial de ser entendido. O ministro do Meio Ambiente, ao contrário, luta desesperadamente para que se evite aquilo. Quando aumenta o desmatamento, ele fica com o ônus político; quando diminui, foi a fiscalização e o resto dos setores que fizeram isto.
Ou seja, este modelo está esgotado. Porque atrás do desmatamento você tem sonegação fiscal, trabalho escravo, grilagem… você tem outros crimes associados. Na imensidão da Amazônia, tem a gestão estadual, tem os prefeitos. Não é o ministro. Fui funcionária de carreira do Meio Ambiente durante 32 anos. Acho que foi o cargo que eu menos mandei. Então, no fundo, a sociedade precisa ter uma relação com o poder público e o poder publico ter uma relação com a sociedade, de natureza política. Não existem os salvadores da pátria. A transformação vem da sociedade, por isso precisa haver uma visão pactuada de longo prazo. A sociedade tem muito mais poder de transformação de resultados do que está sendo percebido hoje. E não é só ir para rua gritar, não. É construir. Por isso que falei da indignação criativa. É o que aconteceu com a Renca.
A Renca virou um símbolo.
É um símbolo de que nós não mais toleramos este tipo de decisão política no Brasil. Não é possível os mais conservadores, vamos usar esta expressão, achem que defender o meio ambiente é uma prerrogativa só de ambientalistas que voltaram de Woodstok. Eles não entendem que defender meio ambiente é bem estar, melhoria de vida, melhor economia para o País, mais emprego.
Tem um problema de comunicação disso, não é?
Tem, mas tem um problema também de engajamento político. Eu sou de uma geração que foi para rua para lutar pelas Diretas-Já, pela Nova República, que lutou pela abertura do País, fim da ditadura etc. Por isso, não acredito em nenhuma promessa que atinja direitos individuais e direitos coletivos. Que atinja as liberdades. Isso é inaceitável. Retrocesso, nem pensar. Vocês não sabem o que é viver em uma sociedade sem liberdade. Eu acho que estamos chegando em outro momento, mais de 30 anos depois, de um novo engajamento da sociedade brasileira.
Diferentemente daquela época quando eu comecei minha vida profissional, a questão ambiental deixou de ser uma questão particularizada e passou a ser um ativo da sociedade. E olha que eu conheço o Brasil todo. Quando eu saí discutindo o Código Florestal, era impressionante. Eu só perdia se eu fosse discutir futebol. Igrejas, sindicatos, associações de classe, assentamentos… Fui da Via Campesina ao agronegócio. Isso é inclusão política. Todo mundo queria entender. Todo mundo tem um primo, é incrível… “Ministra, eu tenho um primo que planta bananeira…” Meu Deus, eu ficava pensando naquela bananeira no Vale do Ribeira, tentava entender as demandas todas. Eu saí pelo País. Não foi só o Aldo [Rebelo] que saiu pelo Brasil para escrever relatório. Eu fui no Rio Grande do Sul na agricultura familiar, eu fui entender Santa Catarina. Eu fui para o Mato Grosso. Eu vi a agricultura de vazante no Rio São Francisco, que era considerada crime ambiental.
Na sua opinião, o resultado do Código é satisfatório?
Não acho que seja satisfatório. É o resultado do consenso. É o segundo debate do Congresso depois da Constituinte, sabia? Isso em termos de mobilização política, ou seja, de engajamento, de demandar da estrutura, debates, audiências públicas. Isso segundo me falaram no Congresso. Mas eu tenho um termômetro: a minha manicure falava de Código Florestal comigo. Eu entrei na casa das pessoas para falar disso.
Qual seu feeling sobre o julgamento das ADIs [Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que buscam revogar o Novo Código Florestal] no STF [Supremo Tribunal Federal]?
Eu não posso dizer o que eles vão julgar, mas eu espero que eles tenham um bom senso. Eu acho que vai ser uma coisa para conciliar. Eu espero! Não pode revogar. Ate porque não tem solução. Você criaria um descumprimento. Com todos os seus prós e contras, a entrada do Cadastro Ambiental Rural é algo inquestionável. Até os críticos mais radicais aplaudem. A gente fez uma coisa pró críticos radicais e pró críticos ruralistas. Porque acreditávamos que era um instrumento essencial para você mudar a relação politica. Como eu comecei falando, você não pode ficar guerreando o tempo inteiro. Tem que criar convergências e saídas para que a área ambiental se estruture dentro da área econômica. Ou seja, a área econômica assume a questão ambiental.
Porque você não podia dar vitória para nenhum dos dois lados. Você constrói um terceiro caminho. Que é o chamado caminho do consenso, o caminho do possível. E põe o CAR como o label, ou seja, o instrumento que abre a nova avenida. Pois é a primeira lei ambiental, que eu tenho em 34 anos de carreira, que vejo aprovada com uma constituency política comprometida e implementada. Eu conversei com os 81 senadores, um a um.
Eu me lembro que entreguei um cadastro para um agricultor familiar no Paraná e esse homem chorava. Orgulhoso porque tinha mais área verde do que ele imaginava, e ele falou: “Vou colocar no quadro na minha sala”. Eu perguntei por quê. “Porque eu sou honesto. Ninguém pode me acusar. Eu produzo alimentos. Eu protejo o meio ambiente e finalmente alguém veio me dizer que eu estava certo”. Como também tem aqueles que mentem, que fazem superposição. Eles não sabem que o instrumento tem “n” alternativas para detectar os erros. Nós fizemos a maior compra de imagens de satélites do mundo. Ninguém tem noção. Chamamos a Universidade de Lavras, que desenvolveu os algoritmos no Brasil. Não é você chamar Google. É criar do zero, tá? Houve a cooperação do governo alemão e do governo norueguês.
Ou seja, o mundo internacional apostava que a gente estava no caminho certo. A gente já tinha experiência com a União Europeia e com a TNC [The Nature Conservancy], que fez o cadastro ambiental rural em Lucas do Rio Verde. O MMA tinha um projeto com a União Europeia no Pará sobre cadastro ambiental com municípios, mas a gente inovou. Ele estava num protótipo e nós fomos para um novo. Esse cadastro mostra o quê? Você chegar a mais de 400 milhões de hectares na base, mais de 4 milhões de propriedades rurais, voluntariamente preenchidos. A gente mandou fazer off-line, muitos lugares não tinham telefone. Eu quase enlouqueci.
Uma das coisas mais emocionantes foi os quilombolas fazendo o CAR no interior do Pernambuco. A expressão de cidadania, os direitos reconhecidos. Você entrar nos assentamentos rurais… capacitar todo mundo. Estou exemplificando isso porque mostra o seguinte: foi a primeira vez que uma lei ambiental teve parceria com o setor produtivo para vingar. Ou pelo menos para o CAR vingar.
Aí a gente mandou fazer o modulo automático para PRA [Programa de Regularização Ambiental]. E depois, a verificação. Isto tudo a União compartilha com os governos estaduais. Encasquetei que tínhamos de fazer, porque é a mudança de um patamar político.
A questão é como implementar o Código, para atender as NDCs. Temos uma COP agora. O quanto vamos conseguir entregar? O Código é um dos instrumentos, mas tem também tem o RenovaBio.
O Código é instrumento para isto. Agora vai vir o negócio do biocombustível, tem programas de governo, tem recursos internacionais. Mas a pergunta que você tem que fazer não é essa. Qual é a estratégia de implementação? Onde é que eu tenho demanda de logística? De infraestrutura? Eu preciso de uma visão de estratégia tecnológica, de prioridades. Por quê? Porque eu tenho 20 ou 10 anos para fazer restauração e estou só começando. A NDC é um caminho para você trilhar um desenvolvimento sustentável de baixo carbono, economy wide para abater de fato as emissões em todos os setores econômicos, permitindo as escolhas dos setores mais avançados, dos mais baratos, dos mais complexos. A NDC é um instrumento que o a sociedade tem, para poder dizer: “Vou por aqui”. É um momento de escolha. Nós ousamos em quê? Fizemos a escolha do baixo carbono, fizemos a escolha da descarbonização. Fizemos o processo de multilateralismo com acordos bilaterais com China, Estados Unidos, Alemanha e Noruega. Assinados por chefes de estado mostrando por onde a gente queria a cooperação com esses países. Mostrando que esses países são parceiros na implementação das NDCs. E não é só dando dinheiro para os fundos, é trabalhando.
Agora, isso não é trabalho para um ministro, é trabalho para uma visão de governo, para uma visão de sociedade, que eu espero que aconteça com as novas eleições. Porque o processo político pelo qual o Brasil está passando desde Paris é um processo desencontrado, ou anárquico. O Brasil está ainda entre a velha política e o combate à corrupção. Estamos reféns disto.
A sociedade e os setores produtivos devem se organizar e trazer suas pautas, porque isto não é uma prerrogativa de ambientalista, é prerrogativa da sociedade brasileira. Não é mais para denominar grupos. É uma sociedade, uma democracia mais madura, que se revela de outro jeito, com nova inserção global na qual vai fazer escolhas e tem vantagens. Se há um país que pode fazer o tal do shortcut (caminho curto) e trazer resultados mais efetivos que qualquer outro no mundo, chama-se Brasil. Vamos voltar para o passado? Vai levar 10 anos para acabar o desmatamento? Vai, mas para ficar. Não é descer em um ano e no outro subir. Você tem de construir as condições políticas para isso. E as condições políticas só dependem da sociedade. Pragmaticamente, só dependem da gente.