Fonte solar avança em comunidades remotas. É o resultado da organização social para melhoria da produção e qualidade de vida, com diferencial no enfrentamento da pandemia
O gerador a diesel ou gasolina é figurinha carimbada em comunidades remotas da Amazônia. Ao lado da escola, igreja, armazém, centro comunitário e sagrado campinho de futebol, o equipamento posa como serviço essencial, mantido a duras penas para levar um mínimo de energia elétrica às casas, normalmente das 18h às 21h. Dá para ligar a bomba de puxar água, assistir à TV, carregar baterias de celulares, acender lâmpadas para ler ou estudar e até usar a internet, nos lugares onde o wi-fi já chegou. Assim, aposenta-se a velha lamparina, bem como a dependência de sal para conservar peixe, mas permanecem desafios muito além do intenso barulho do motor que perturba o silêncio da floresta.
Longe da rede elétrica, o acesso a geradores para iluminação e produção expõe dificuldades com manutenção e alto custo do combustível – bancado pelos moradores, reféns do uso político e, principalmente, do abuso econômico por parte de atravessadores e donos dos “pontões”, como são conhecidos os postos de gasolina flutuantes nos rios amazônicos.
Isso sem falar do inconveniente como fonte de energia suja: as emissões de gases de efeito estufa. O problema ambiental é de alguma forma “compensado” na captura e estocagem de carbono pelas árvores, mas retrata um paradoxo que mancha a maior floresta tropical do planeta, vista como estratégica à mitigação da mudança climática global. Cada 100 mil litros de diesel, por exemplo, equivalem a cerca de 56 toneladas de dióxido de carbono, além do enxofre lançado ao ar com impactos à saúde nas localidades.
Mas a realidade ganha alternativas em regiões da Amazônia com maior nível de organização social e empoderamento comunitário, redutos de projetos para melhoria da qualidade de vida e das cadeias produtivas da floresta. “Diante do custo do diesel (R$ 5,90 o litro) e da gasolina (R$ 6,20), o que representa em torno de R$ 100 por família ao mês para ter energia três horas por dia, comunidades voltaram a pegar água diretamente nos rios, deixando de realizar o bombeamento e tratamento para distribuição às casas, em sistemas que foram instalados nos últimos anos”, informa Suzy Barros, coordenadora de projetos da Associação dos Produtores Rurais da Carauari (Asproc), parceira do Programa Território Médio Juruá (PTMJ).
Postes com lâmpadas e freezer para alimentos
A iniciativa, coordenada pela Sitawi com recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), Natura e Coca-Cola, está levando soluções simples, econômicas e seguras para pontos remotos, em comunidades de reservas ambientais de uso sustentável. De início, em 2018, o projeto beneficiou 600 famílias que receberam lampiões ecológicos, desenvolvidos por uma organização social, a Litro de Luz, à base de energia solar, garrafa PET e tubo de PVC.
Em paralelo, foi previsto um estudo socioeconômico com o propósito de identificar tecnologias e estratégias para novos investimentos, em diferentes frentes – da iluminação residencial à produção comunitária.
Além de instalações internas com interruptores e tomadas em cada cômodo de 33 casas, duas localidades da floresta – Toari e Santo Antônio do Brito – ganharam postes de iluminação pública, baseada na fonte solar. O plano abrangeu o suporte à gestão comunitária por meio de energia para o funcionamento de computadores e impressoras e infraestrutura dos armazéns locais com freezer para conservação de alimentos, máquina de processamento de açaí, notebook e equipamento de radiocomunicação.
Na cidade de Carauari, um entreposto comercial de beneficiamento de pirarucu, em construção para reduzir atravessadores e melhorar o preço, receberá placas solares com capacidade de 33 kwh e possibilidade de injeção da energia excedente na rede elétrica.
Carência amazônica
Os resultados podem servir de modelo para outras regiões da Amazônia. Segundo dados do governo federal, mais de 600 mil famílias vivem sem energia na Região Norte, que por sua vez é responsável por 18% da capacidade nacional instalada (23% da geração hidrelétrica) e tem a maior parcela exportada para outras regiões. A população amazônica responde por apenas 7% do consumo.
A Constituição prevê o acesso de energia para todos como forma de assegurar a dignidade da pessoa humana, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. No entanto, a realidade de boa parte das comunidades isoladas é outra: estão no escuro ou têm alta dependência de geradores. De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em toda a Região Norte existem 3,4 mil pequenas centrais geradoras de energia, sendo 2,9 mil em efetiva operação, em comunidades remotas.
Pesquisadores ressalvam que as estatísticas são inconsistentes devido à informalidade nessas áreas, mas há indicativos que ajudam a dimensionar o problema: diesel, velas e lamparinas, por exemplo, fazem parte da vida de 30 mil famílias em áreas protegidas de uso sustentável federais, segundo dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), responsável pela gestão dessas áreas, grande parte na Amazônia.
Estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) aponta que em muitas comunidades urbanas e rurais da região ainda é uma realidade a prevalência de sistemas informais de geração elétrica, baseados no diesel. “São extremamente caros para as populações, de má qualidade e insuficientes para prover os benefícios sociais e econômicos que se esperam dos serviços de eletricidade”, reforça o levantamento. Entre as barreiras às tecnologias renováveis, o relatório destaca, além de questões financeiras, o “poder de influência exercido pelas empresas do ramo de combustíveis sobre os grupos políticos regionais e locais”.
Pelo lado do governo, há promessas. O Ministério de Minas e Energia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assinaram recente acordo de cooperação técnica para captar recursos financeiros ao programa Mais Luz, antigo Luz para Todos. A iniciativa pretende levar energia limpa renovável a 82 mil famílias – cerca de 350 mil pessoas entre ribeirinhos, indígenas, quilombolas e moradores de unidades de conservação localizadas em áreas remotas da Amazônia Legal.
Vantagens na qualidade de vida
“Longe dos centros econômicos, a Região Norte tem alta demanda por soluções, mas faltam recursos, e o desafio é fazer o casamento entre ambos por meio de parcerias”, afirma Leonardo Uematsu, responsável pelo setor de operações e tecnologia da Litro de Luz. No Médio Juruá, além da inovação em sistemas simples e viáveis, o diferencial está no modelo de governança, com capacitação de jovens locais voluntários como “embaixadores” para a garantia de manutenção, principalmente a troca de baterias após a vida útil, a cargo das comunidades.
Da educação à melhoria da produção e acesso à saúde e comunicação, novas alternativas de energia se traduzem no cotidiano em ganhos de autoestima e qualidade de vida por trás do simples ato de ligar ou desligar, a qualquer hora, o interruptor de luz. Os moradores relatam vantagens de vários tipos: desde a economia com a redução do uso e descarte de pilhas, um problema ambiental, até possibilidade de levantar da cama mais cedo para trabalhar na horta ou fazer reuniões comunitárias à noite. “Muitos dizem que a luz permite mais momentos em família, segurança para caminhar no trapiche sem perigo de queda e melhoria na produção de farinha”, conta Uematsu.
Conforme consta nas pesquisas junto às comunidades, diz ele, a cada dia os ribeirinhos descobrem benefícios práticos da iluminação sem as restrições dos geradores a diesel, como “o menor risco de picadas de animais peçonhentos e de engasgo com espinha de peixe nas refeições, e o fim do medo de dormir com lamparina e acordar com a casa pegando fogo”.
Com cerca de 3 mil soluções instaladas e 16 mil de pessoas beneficiadas em todo o Brasil, a Litro de Luz, que se identifica como negócio social, planeja ampliar esforços na Amazônia neste ano, com previsão de levar mais 130 lampiões solares e dezenas de postes, em parceria com associações locais.
“A experiência no Médio Juruá ensinou como trabalhar em comunidades muito isoladas, o que abre precedente para irmos cada vez mais longe, beneficiando novos lugares com desafios logísticos similares”, pontua Uematsu. “O nosso impacto positivo é maior, quanto mais remota é a comunidade”, conclui.
Na pandemia de Covid-19, uma maior segurança energética tem contribuído para reduzir o grau de vulnerabilidade social dessas populações, em áreas com taxas de incidência de casos e mortalidade que alcançam até o dobro da média nacional. Em comunidades amazônicas que já apostaram na fonte solar ininterrupta, o posto de saúde pode funcionar mais facilmente no período noturno e os equipamentos de comunicação podem ser acionados para emergências. Nesses lugares remotos, a nova energia, junto à internet, tem permitido a chegada da telemedicina para consultas e orientações preventivas de saúde à distância. Mas o desafio requer políticas públicas para caminhar mais rápido.