Nada pode ser comparado ao impacto de entrar naquele território, diante dessa outra humanidade indígena, tão próxima, distante e desconhecida
Por Antônio Reis Jr.*
11 de agosto, quinta-feira
Saímos de Canarana de manhã guiados por Gaspar, um Kuikuro contratado para nos conduzir até a aldeia. Gaspar está provisoriamente morando em Canarana pois sua esposa, em tratamento médico, deve permanecer na cidade. A medicina ocidental já é adotada em muitos casos, bem como o uso de medicamentos farmacêuticos – embora a pajelança siga como prática de alguns povos do Xingu.
De Canarana até os limites do parque, novamente a desolação da paisagem entristece. A devastação da floresta pela monocultura da soja e da pecuária extensiva é estarrecedora. Quando se olha através da janela do carro, apenas se vê a monótona paisagem desertificada após a colheita, não há verde. As usinas dominam o lugar, muito mais presentes que a discreta cobertura vegetal mínima e exigida por lei.
A transição para a área interna do parque, que acompanhamos também pelo GPS, é abrupta: a monocultura desaparece no manto vegetal que se estende por muitos quilômetros. Seguimos por estrada de terra, cortando uma densa mata, e margeando o Rio Culuene, um afluente do Rio Xingu. Além dele, cruzamos outros rios, como o Sete de Setembro, que tem suas nascentes fora do Parque e deságuam no Xingu, formando a sua grande bacia hidrográfica.
Logo notamos nova mudança de paisagem que me parece ser de Cerrado, com suas árvores baixas e áreas esparsas. Parece uma zona de transição que abriga diferentes biomas, como as florestas de várzea e matas ciliares, aqui e acolá. Avistamos a primeira aldeia e paramos para olhar um pouco. As grandes casas comunais se destacam de longe, cobertas de sapé.
Os caminhos pelo parque são cheios de bifurcações e, sem a presença de um guia indígena, seria uma aventura temerária. Por um solo arenoso, de areia branca, chegamos à aldeia Ipatse do povo Kuikuro, no fim da tarde.
Êxtase. Nada pode ser comparado ao impacto de entrar naquele território, diante dessa outra humanidade indígena, tão próxima, distante e desconhecida.
Ao descer do carro, vejo e ouço dois homens tocando flautas compridas de bambu, junto a duas meninas que os acompanhavam no mesmo ritmo, batendo os pés e movimentando os braços para frente, esplendidamente pintados com grafismo preto e vermelho. Mais tarde descobriria os significados desses gestos e da dança.
Duas dezenas de casas comunais formavam um imenso círculo com um extenso terreiro ao centro, como uma área pública, a grande praça da aldeia. E no centro, a chamada Casa dos Homens, que falarei mais adiante.
Os carros estacionaram no rancho feito para nós atrás da casa da família de Tabata, o amigo de Washington Novaes, ambos homenageados nesse Kuarup de 2022. Quem nos recebe é Maricá, filho de Tabata, e seus irmãos, de forma muito acolhedora. Afukaká, Sepê, Piquê, Manoá e tantos outros se apresentaram. Mesmo acompanhando a família Novaes, convidada de honra para a cerimônia, me senti pisando leve e falando baixo… em reverência aos moradores da aldeia.
Conversamos com dois homens kalapalo no terreiro, já pintados e envolvidos nas festividades. Um deles, Manoá, morador de outra aldeia, que está ali na casa dos parentes, pois sua filha é casada com um Kuikuro da Ipatse. Primeira surpresa: a maioria fala português, em graus bem variados, mas que permitem uma boa conversa na maioria das vezes. Sua primeira e principal língua é o Karib, também falada pelos Kuikuro, entre outros.
Eles nos contam que os Waurá, os Kamaiurá, os Mehinaco e outras etnias, todas do Alto Xingu, também participarão do Kuarup. E já começaram a chegar.
As mulheres da família de Tabata e de outras famílias trazem uma diversidade de artesanato Kuikuro: colares de caramujo (muito valiosos), pulseiras com miçangas coloridas com diferentes padronagens, pequenos bancos de madeira com formas de animais, arco e flecha, cestaria de palha trançada para fruteiras, cata-ventos com pequenas cabaças penduradas, brincos, esteiras e muito mais. Trata-se de uma arte refinada e de beleza expressiva. Ficamos desejosos para comprar e assim o fizemos, pois nossa presença é oportunidade para boas vendas de seu artesanato.
A tarde cai e o crepúsculo deixa o ambiente onírico. Acampamos no quintal da família de Tabata, ao lado de onde foi erguido o rancho. Não há energia elétrica na aldeia, mas sim geradores a diesel que possibilitam o carregamento de celulares e eletrônicos, assim como algumas placas fotovoltaicas para captação de energia solar.
Antes da noite, o banho na lagoa dos buritis. Beleza estonteante! Um espelho d’água reflete o buritizal que circundava as margens, mudando de cor ao cair do sol, provocando uma miragem. Brancos e indígenas tomam seus banhos, e sinto o alívio de tirar a fina camada de pó vermelho de terra que cobria todo meu corpo, secando minha pele. Banho que trouxe alegria, misturada ao torpor de estar no Xingu – como dizia Washington Novaes, uma flecha no coração do Brasil.
De volta ao acampamento, jantamos com uma fome um pouco desmedida, certamente pelo esforço de ter chegado ali. As flautas ainda são ouvidas e seus sons marcam, irremediavelmente, minha presença no Xingu. Da mesma forma que os chocalhos amarrados aos tornozelos e nas cinturas dos tocadores, que tilintam aos passos ritmados com batida forte e seca do pé direito no chão.
Logo descobrimos que se tratava da saída de meninas adolescentes de um longo tempo de reclusão – 1 a 2 anos – e que marcaria a sua passagem para a vida adulta. A partir dali, estariam prontas para casar e constituir uma família. Sua pele, visivelmente mais clara, era resultado do longo tempo de confinamento dentro de sua casa sem exposição ao sol.
Durante esse tempo de reclusão, elas tecem, trançam palha para fabricação de cestos, tomam ervas e realizam outras tantas atividades para desenvolver as habilidades necessárias e exigidas pela vida adulta.
Os meninos também ficam reclusos por períodos de até 2 anos em espaços segregados dentro das casas comunais, separados por tapumes ou panos onde ficam na penumbra deitados em suas redes. Também realizam inúmeras atividades manuais no confinamento. Quanto maior o tempo de reclusão, maior a responsabilidade na vida adulta e maior possibilidade de ocupar um papel social relevante.
A noite chega e logo uma lua cheia nasce clareando toda a aldeia. No Kuarup tem lua cheia. Caminhei sozinho até o meio do terreiro para me despedir daquele dia incomum, ouvindo latidos de cachorro e alguns gritos agudos de moradores que pareciam anunciar as celebrações. Exaustos, nós nos recolhemos nas barracas e a temperatura baixa rapidamente. Dormirmos bem agasalhados com colchões de ar e cobertores nessa primeira madrugada fria de quinta-feira no Xingu.
Leia sobre os dias anteriores aqui e o próximo aqui.
*Antônio Reis Jr. é historiador, doutor em Educação e professor universitário na área de História e Comunicação Social. Neste diário de viagem, ele e sua companheira imergem no ritual do Kuarup, no Parque Indígena do Xingu, que neste ano tem entre os homenageados o jornalista e ambientalista Washigton Novaes, morto em 2020.