A valorização dos conhecimentos tradicionais indígena, ribeirinho e quilombola, por meio do comércio justo e acesso a mercados, ganha impulso em projetos de negócios de impacto socioambiental positivo, com apoio da Aceleradora 100+ na Amazônia
Por Sérgio Adeodato
Soluções da biodiversidade amazônica preparam-se para chegar ao mercado e ao dia a dia dos consumidores com uma pegada inovadora: a cocriação de novos produtos entre os detentores do conhecimento tradicional na floresta e os empreendedores de negócios que visam impacto socioambiental positivo. É o caso das velas de massagem com ingredientes regionais, alvo de projeto-piloto da startup Urucuna junto à associação de artesãos e a comunitários de Maués (AM), apoiado pela Aceleradora 100+ para avançar na modelagem e desenvolvimento coletivo da inovação.
Neste ano, nove iniciativas – duas delas, na Amazônia – foram selecionadas no programa de aceleração, criado em 2018 como suporte às metas públicas de sustentabilidade da empresa de bebidas Ambev para 2025 (saiba mais no box). Além de mentoria e treinamento, as startups aprovadas nesta etapa do processo recebem aportes para desenvolver um projeto de negócio. “Buscamos a valorização biocultural e a dinamização da economia junto com esses povos”, ressalta Júlia Tatto, empreendedora da Urucuna, de olho nos consumidores preocupados com a floresta e no mercado de brindes corporativos associados a propósitos socioambientais – hoje responsável por 70% do faturamento da startup, com a produção de velas aromatizantes com essências amazônicas.
A vela de massagem, como novo produto, é resultado de uma trajetória de experiências iniciada em 2019, quando a empreendedora visitou como turista a cidade mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira (AM), no Alto Rio Negro. Sensibilizada pela história da loja de arte indígena Wariró, reinaugurada no município após incêndio criminoso, Júlia decidiu arregaçar as mangas. “Veio a pandemia e comecei a articular uma forma de ajudar aqueles grupos na divulgação e vendas, uma vez que os povos indígenas estavam entre os mais vulneráveis”, conta a jornalista e contadora paulista, à época mergulhada no mundo das planilhas financeiras das empresas.
A empreendedora juntou-se à irmã, a engenheira ambiental Ligia Tatto, na época insatisfeita com a vida profissional restrita à limitação das consultorias e, assim, a dupla pediu demissão dos empregos para transformar o propósito socioambiental em negócio, no campo dos produtos amazônicos. O plano foi criar uma atividade financeiramente sustentável, com justiça na prática de preços e na relação comercial com as comunidades fornecedoras.
Logo de início surgiu o desafio de buscar maior escala para viabilizar os custos, respeitando a realidade amazônica: “Como solução, começamos a desenvolver novos produtos com maior margem de lucro, em conjunto com os fornecedores da floresta”, explica Júlia.
Embalagens de fibras naturais
O projeto inicial da Urucuna foi produzir velas aromatizantes de ambiente com óleos essenciais e manteigas vegetais da Amazônia, fornecidos por meio do programa Cidades Florestais, do Idesam, no Amazonas. Depois, veio a necessidade de mostrar o produto com impacto visual, para além das histórias das famílias por trás dele, desafio que motivou a startup na articulação de comunidades para que confeccionassem as embalagens, com charme amazônico. Artesãos da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, começaram a produzi-las artesanalmente utilizando caroço de tucumã – fruto de palmeira nativa bastante apreciado na alimentação. As cascas, antes jogadas fora como resíduo após o consumo da polpa, passaram compor o recipiente dos aromatizantes.
Em paralelo, comunidades do povo indígena Paiter Suruí, também em Rondônia, diversificaram a produção com uma embalagem obtida a partir do ouriço da castanha-do brasil, retomando uma antiga tradição do artesanato regional. Já os indígenas Xikrin, no Pará, colaboraram na confecção das tampas, decoradas com grafismos locais que tradicionalmente são pintados sobre tecidos.
Toda a produção dos óleos e embalagens, obtida em parceria com Organizações da Sociedade Civil (OSCs) locais, é enviada para São Paulo, onde funcionam as instalações da Urucuna, integrante da rede Origens Brasil, junto a iniciativas que promovem o comércio justo. “Após a oportunidade de participação na Aceleradora 100+, começamos a ver o negócio com outros olhos, considerando-o como uma metodologia de trabalho”, afirma Ligia.
Atualmente, a startup trabalha em parceria com 40 artesãos de populações tradicionais, no total de oito povos indígenas, fortalecendo práticas sustentáveis em lugar das destrutivas e contribuindo indiretamente com a conservação de 23 milhões de hectares de floresta, na Amazônia.
Com produção de cerca de mil velas por mês, prevendo a compra da matéria-prima e o repasse de um percentual do lucro para os fornecedores da região, a startup tem ampliado parcerias para expansão no mercado, como no atual projeto-piloto junto com a Associação de Artesãos Unidos para Vencer da comunidade Menino Deus de Maués (AAUV). Ligia enfatiza: “A produção de velas com conhecimento tradicional (produção de barro e teçume) é uma estratégia escalável e replicável, que respeita o modo de vida local”.
De acordo com a empreendedora, “é possível elaborar embalagens artesanais, lindas, únicas e biodegradáveis a partir do cipó ingá e do barro elaboradas pelos artesãos para as nossas velas. Encontramos em Maués um universo de óleos e manteigas inexplorados que tem um potencial enorme na aromaterapia e nos cosméticos”.
Na oficina realizada pela Urucuna em novembro na comunidade, os participantes gostaram da possibilidade de utilizar insumos nativos do dia a dia – manteigas de cupuaçu e de murumuru, óleos de andiroba, copaíba e pau-rosa, além de barro, cerâmica, cascas e sementes – para a produção de um novo produto (uma vela) e com uso diferente do que estão acostumados. “É um novo olhar para os insumos que as comunidades tradicionais já conhecem”, explica Ligia.
Uma possibilidade adicional em estudo é incorporar na formulação da vela também o guaraná – o revigorante fruto nativo de tradição milenar, que ao longo da história colocou Maués nos cenários nacional e internacional. Inicialmente, serão testados três protótipos do produto, em parceria com o grupo local e pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas que já estudam as propriedades da planta, para depois levar a novidade ao mercado.
“A região está no centro das respostas para os grandes problemas do planeta”, enfatiza Juliana Simionato, coordenadora de projetos da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA).
Há dois anos, a Plataforma se engajou como correalizadora da Aceleradora 100+, somando forças e investimentos ao desafio da conservação da sociobiodiversidade amazônica, em linha com a agenda ESG da Ambev. “A motivação está em levar a pauta da Amazônia para dentro das grandes empresas”, afirma Simionato. Ela conclui: “Buscamos engajar mais atores, com ênfase na iniciativa privada, para promover e fortalecer o comércio justo, com efeitos na conservação da biodiversidade”.
Na trilha do turismo comunitário
A valorização dos serviços e produtos da natureza explorados sem desmatamento pelos povos tradicionais, guardiões da floresta em pé como meio de sustento e manutenção de práticas culturais, está no cerne da estratégia. É o caso da startup AMZ, especializada em turismo de base comunitária na Amazônia – atividade que precisa do ecossistema bem conservado e do conhecimento tradicional como ativos para prosperar. “Quanto mais investimos nas comunidades como parceiras, mais experiências teremos para oferecer, ampliando o negócio, com retorno de renda local”, aponta a empreendedora Adhara Luz.
A empresa foi selecionada pela Aceleradora 100+ para a modelagem do projeto destinado à formação de profissionais locais, com metodologia inovadora e efeitos multiplicadores visando maior capacidade de expansão dos serviços, replicando impactos positivos. O objetivo é capacitar 12 jovens e oito cozinheiras em curso intensivo de uma semana, no qual cumprirão desafios para executar as atividades pactuadas.
A maior visibilidade na perspectiva de uma imagem do Brasil e da Amazônia mais positiva no exterior tem o potencial de ampliar o interesse por viagens à região. “Empreendedorismo e capacitação de base são fundamentais ao turismo comunitário no território amazônico”, enfatiza Luz, com aposta no etnoturismo e nas viagens de conhecimento, sensibilização e contemplação em lugar cada vez mais divulgado e reconhecido pela importância ao planeta.
Os planos atuais da empreendedora resultam da história familiar desde os tempos da bisavó que tinha raízes indígenas Borari, do oeste do Pará, e migrou para o Rio de Janeiro em busca de trabalho.
“Minha mãe cresceu ouvindo histórias da Amazônia e tudo foi repassado para mim”, conta Luz, cujo pai, o médico sanitarista Eugênio Scannavino, já tinha como missão de vida prestar assistência à saúde na Amazônia, até criar a ONG Saúde e Alegria, em 1985, no Rio Tapajós, região de Santarém (PA). “Nasci um ano antes desse feito que marcou a história da região e das populações locais, hoje parceiras no nosso negócio”, diz a empreendedora.
Do Pará, ela se transferiu para o Rio de Janeiro, depois São Paulo, e ganhou o mundo como caminho de conexões e amadurecimento para os projetos que estavam por vir. Há dez anos, após desbravar a Amazônia e organizar as primeiras viagens para amigos conhecerem o que a região tinha de melhor, o boca a boca turbinou a demanda por novos roteiros. “A proposta é conhecer a diversidade do mundo por meio dos olhares locais”, explica a empreendedora. Segundo ela, as pessoas em geral têm muita vontade de contato com a Amazônia e suas realidades, mas pouquíssima informação para que essa visita aconteça de forma autêntica, sem os apelos do turismo de massa.
O negócio se desenvolveu por meio da diversificação de experiências, desde Terras Indígenas no Acre até comunidades quilombolas e ribeirinhas dos arredores de Santarém, enfatizando a contemplação da natureza e o convívio com as populações locais. São passeios de barco, trilhas, observação de árvores centenárias, banho de rio, participação de rituais, contação de lendas e visitas a atividades produtivas na floresta, como criação de tambaqui e abelha sem ferrão nativa para produzir mel – atrativos voltados turistas e eventos corporativos, na faixa de público que busca um contato diferenciado com a região.
A parceria funciona como uma relação ganha-ganha, em que as comunidades recebem taxa de visitação e a maior parte dos valores pagos nas experiências. O principal esforço é expandir a rede de parceiros, no sentido de desenvolver e preparar as comunidades para receber os visitantes. “É preciso planejamento e organização comunitária para evitar atravessadores e aumentar a autonomia”, recomenta Luz. Hoje, a AMZ trabalha regularmente junto a dez comunidades da região de Santarém, com planos de chegar no próximo ano ao território Kaiapó, no Sul do Pará, e aos quilombolas do Jalapão, no Tocantins.
Os exemplos da Urucuna e AMZ se somam aos projetos desenvolvidos em 2021, na primeira seleção da Aceleradora 100+ com participação da PPA. Na ocasião, foram contempladas duas startups – a Água Camelo, que distribui kits de filtro e armazenamento de água; e a Via Floresta, voltada a conectar pequenos empreendimentos com compradores. Além dessas, no eixo agricultura sustentável da aceleradora, a AgTrace foi apoiada em 2022. Trata-se de plataforma de tecnologia digital para qualificação de produtores rurais, abrangendo também a produção de guaraná em Maués.
Sobre a Aceleradora 100+
O programa Aceleradora 100+ surgiu em 2018, alinhado à iniciativa global da Ambev e aos seus compromissos de sustentabilidade para 2025 (mais informações: aceleradora.ambev.com.br). A partir disso, são mais de 60 startups aceleradas e R$ 15 milhões investidos nos negócios parceiros. Em 2021, a Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e Quintessa se uniram a essa jornada e, agora, PepsiCo, Valgroup, Ball Corporation e Machado Meyer chegaram para integrar a quarta edição e ampliar a escalabilidade dos projetos apresentados.
As startups implementam as soluções de impacto por um período e mensuram os resultados gerados. A implementação pode ser de uma solução pronta, mas também é possível adaptar uma solução existente e até cocriar algo novo entre executivos e empreendedores. O foco do programa é garantir o êxito dessa implementação, corrigir a rota, se necessário, e orientar as duas partes a partir de boas práticas.
Destinado a negócios que estão em fase inicial no mercado, com clientes e vendas já realizadas, o programa está dividido em duas etapas, incluindo aulas teóricas sobre gestão de negócios; workshops realizados pelo Quintessa para desenvolvimento do piloto, implementação de piloto durante um processo de quatro meses; e apresentação no evento de encerramento, com premiação em dinheiro. Algumas startups se beneficiam pela contratação de serviços pela Ambev e por parceiros posteriormente, além disso, podem apresentar propostas de investimentos para a empresa e parceiros do programa.
Leia aqui a segunda reportagem desta série.