Os caminhos capazes de destravar o potencial bioeconômico da região estiveram no centro de debates em evento da rede Uma Concertação pela Amazônia
Por Magali Cabral
“Ao abrir a possibilidade de as comunidades, que têm os conhecimentos passados pelos seus anciões, contribuírem com a construção da Amazônia que queremos, criamos um alicerce muito mais poderoso para os negócios”. Esse trecho foi pinçado da fala do ceramista e ativista paraense Ronaldo Guedes, natural de Soure, no Marajó, durante a 2a plenária do ano promovida pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com a iniciativa Amazônia 2030, intitulada As bioeconomias amazônicas: caminhos e sinergias.
O evento, realizado em 8 de maio e mediado pelas secretárias executivas da Concertação, Lívia Pagotto e Fernanda Rennó, contou com uma audiência online de 210 pessoas e teve como objetivo debater a diversidade da bioeconomia e as diferentes estratégias de políticas públicas relacionadas ao tema. Ilustraram o evento as peças do acervo de Guedes que, junto a outros artesãos do coletivo Ateliê Arte Mangue Marajó, pesquisa, difunde e salvaguarda o estilo cerâmico marajoara criado por uma civilização que habitou a região há 3.400 anos.
Como estruturar políticas para impulsionar o desenvolvimento de uma bioeconomia na região que formem um guarda-chuva, sob o qual todos estejam incluídos, mas sem desprezar as especificidades da diversidade local?
É sobre a complexidade embutida nessa questão que a secretária nacional de bioeconomia do Ministério do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Carina Pimenta, tem se debruçado nesses primeiros meses do ano, junto a outros 12 ministérios envolvidos também em programas e ações para desenvolver a bioeconomia na região. Dentro da Amazônia Legal existem várias amazônias, com diferentes cadeias produtivas em estágios variados de desenvolvimento e com interesses distintos. Não se espera, portanto, uma política generalista, nem tampouco que se desça a régua aos níveis de projetos. O segredo está em encontrar o ponto de granularidade.
Para definir o recorte que melhor se adaptará às diferentes vertentes econômicas na região, Carina Pimenta salienta a importância do processo participativo dos públicos diversos. “Nós sabemos que os guardiões da biodiversidade [indígenas e povos tradicionais] foram os que menos participaram do ciclo de desenvolvimento econômico da região. Temos agora uma oportunidade de, neste ciclo, ter as suas atividades econômicas e seus modos de vida reconhecidos e apoiados”, afirma.
Segundo informa, algumas definições de políticas de âmbito mais genérico estão avançadas. É o caso da política que possibilitará o acesso e o uso do patrimônio genético por áreas de pesquisa, de inovação científica, de geração de negócios e produtos com alto valor agregado. “Todo o arcabouço do patrimônio genético será colocado a serviço da bioeconomia”, garante.
Outra, é a Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais, cujo projeto de lei foi aprovado pelo Congresso Nacional, com regulamentação atualmente nas mãos do Poder Executivo. Essa política estabelece as bases jurídicas para que indígenas, populações tradicionais, produtores rurais e outras representações da sociedade tenham seus esforços de proteção ambiental reconhecidos e valorizados.
“Excelente a preocupação com a legislação que incide sobre a biodiversidade – uso e conhecimento – e órgãos que analisam e liberam o acesso e o uso do patrimônio genético brasileiro. Fundamental no âmbito da bioeconomia“. Rosana Vazoller, via chat do evento
Entretanto, o presidente da Apex Brasil e ex-governador do Acre, Jorge Viana, manifestou preocupação com o enfraquecimento dos movimentos sociais da Amazônia. Para ele, a dispersão das organizações comunitárias verificada nos últimos anos cria um ambiente propenso a receber decisões de cima para baixo, o que, segundo ele, “não é válido”. Falando diretamente de Lima, no Peru, país que tem a maior fatia de seu território situada na Região Amazônica, Viana aponta uma semelhança do país vizinho com o Brasil: “Quinze províncias peruanas estão situadas na região amazônica e o PIB mostra que, assim como no Brasil, é nesse território que se encontra a população de mais baixa renda”.
Viana apresentou dados da Apex que comprovam o descompasso econômico da Amazônia brasileira em relação às demais regiões do País. No ano passado, as exportações brasileiras ultrapassaram a cifra de US$ 300 bilhões. A Região Sudeste foi responsável pela maior parte desse total, com cerca de US$ 160 bilhões. O Sul e o Centro-Oeste exportaram aproximadamente US$ 55 bilhões cada um. Já as exportações do Nordeste somaram em torno de US$ 27 bilhões, dos quais metade teve origem na Bahia – a outra metade é compartilhada entre os demais estados nordestinos. Enquanto isso, a Região Norte exportou US$ 28 bilhões mas, se retirar o Pará dessa equação – e junto os resultados obtidos pela mineradora Vale – subtraem-se US$ 21 bilhões, restando apenas US$ 7 bilhões referentes às exportações dos demais estados amazônicos juntos.
Viana afirma que é intenção da Apex ajudar a “dar uma guinada” nesse quadro. Em sua opinião, o governo tem todas as condições de transformar a biodiversidade da Amazônia em ativos econômicos, contando para isso com a parceria do BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, e ministérios envolvidos em ações no setor de bioeconomia florestal. “Naturalmente que esse esforço deverá “transbordar” e ajudar a economia do País como um todo. Não podemos perder essa janela de oportunidade extraordinária de um mercado externo ávido por produtos da bioeconomia”.
“A bioeconomia na Amazônia pressupõe a reconversão da economia regional, de mudança do modelo desenvolvimento. É fundamental ter como referência a dimensão territorial e reinventar as instituições que promovem o desenvolvimento, como Basa, Sudam, Suframa e FCA”. José Carlos, via chat
O superintendente da área de Meio Ambiente do BNDES, Nabil Kadri, reforça essa tese, quando diz ser intenção do banco colocar o potencial dos biomas brasileiros no centro de qualquer estratégia de desenvolvimento de médio e longo prazo, a fim de destravar as questões estruturais necessárias para transformar todo o potencial da região em realidade. “Temos estudado o contexto da produção sustentável dos biomas brasileiros, principalmente na Amazônia, olhando para a experiência acumulada do banco, dos projetos apoiados pelo Fundo Amazônia. Mas não só. Queremos uma abordagem mais moderna focada em resolver os gargalos”, informa.
Kadri conta que o BNDES tem realizado testes de modelagem nos instrumentos financeiros disponíveis no banco para destravar os gargalos das cadeias produtivas do território, com resultados surpreendentes. Segundo ele, o tema da bioeconomia florestal, quando figura entre os prioritários para liberação de crédito nas várias modalidades existentes – nas estruturas de blended, nos não reembolsáveis, nos fundos garantidores, entre outros –, é disparadamente o que mais atrai propostas inovadoras.
Isso significa que o ecossistema dos negócios em bioeconomia está maduro para receber provocações no sentido de apresentar inovações. Outra comprovação pode ser vista nos resultados da parceria do banco com a Associação Brasileira de Pesquisa em Inovação Industrial (Embrapii) para fomentar inovação em cadeias produtivas da indústria brasileira. “Das sete áreas de atuação da Embrapii, a de bioeconomia florestal é também a que mais aloca recursos”, ressalta (saiba mais em webinar realizado sobre inovação na Amazônia).
Um desafio que o BNDES enfrenta nessa missão diz respeito aos ganhos de escala. De acordo com Kadri, é preciso redesenhar políticas públicas federais para que sirvam de alavanca para dar escala às soluções vinculadas à produção da sociobiodiversidade. O superintendente cita como exemplo o Programa Nacional de Alimentação Escolar. A compra de alimentação escolar na região é permanente, tanto na esfera municipal como na estadual.
“É possível criarmos uma aliança entre vários ministérios [da Educação; do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar; do Desenvolvimento, Assistência Social e Combate à Fome; e do Meio Ambiente e Mudança do Clima] a fim de promover uma alimentação mais saudável e mais aderente às práticas do território, gerando renda e dando sustentabilidade aos negócios coletivos”, diz.
Outra expectativa do banco é dar um salto em relação a soluções que sobrevivam aos ciclos políticos. “Estamos buscando experiências bem sucedidas e analisando como podem nos ajudar a agregar mecanismos que deem aos projetos sustentabilidade ao longo dos ciclos políticos. Uma inspiração para Kadri é a Cooperacre, central de cooperativas de extrativistas e agricultores familiares do Acre, fundada em 2001, na capital Rio Branco.
“Países como Suíça e França utilizam nossos bioativos, como cumaru e camu-camu, agregam valor e depois os comercializam de volta para o Brasil, gerando empregos qualificados e renda mais alta lá fora. Gostaria de perguntar se temos ações voltadas para a promoção das indústrias locais, que verticalizam e agregam valor aos bioativos que temos na Amazônia, para além do apoio às cadeias produtivas que fornecem de matérias primas.” Paulo da Manioca, no chat
O Plano de Desenvolvimento Agropecuário da Amazônia, também chamado de Amazônia+Sustentável, lançado em abril deste ano, recebeu destaque na apresentação do secretário de Inovação, Desenvolvimento Sustentável, Irrigação, Cooperativismo Substituto do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Pedro Neto. O plano propõe consolidar um modelo de agropecuária sustentável que viabilize a autonomia financeira dos produtores rurais assentados na reforma agrária e povos tradicionais dos nove estados da Amazônia Legal.
Para o plano ganhar forma em tempo recorde, Pedro Neto explica que houve um grande esforço de diálogo nos primeiros meses do ano com as sociedades civis organizadas da Amazônia. “A construção participativa dessa ideia incluiu 27 cadeias produtivas, que foram priorizadas a partir do diálogo local repetido nove vezes [em cada um dos estados da Amazônia Legal] até chegarmos a esse pacote institucional”.
Ele destaca a inclusão no Amazônia+Sustentável de alguns programas governamentais que devem impactar positivamente o desenvolvimento da bioeconomia na região, entre os quais a Política Nacional de Recursos Genéticos para Agricultura e Alimentação, a Política Nacional de Bioinsumos, além de programas de recuperação de áreas degradadas para uso produtivo ou conservação e aproveitamento das “biopossibilidades”.
Neto atribui parte da robustez desse início de gestão às trocas realizadas com os Grupos de Trabalho (GT) do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). “A interação com o PPCDAm e a proatividade dos GT foram marcantes e permitiram que déssemos essa arrancada inicial”, reconhece.
Exportação como teste de competência
“Ninguém mais duvida que o potencial da bioeconomia é gigantesco”, afirma Salo Coslovsky, professor da Universidade de Nova York (NYU), onde leciona disciplinas relacionadas à administração pública e desenvolvimento econômico e colaborador da iniciativa Amazônia 2030. O tema não é novo. Vinte anos atrás já se discutiam formas de aumentar as exportações de castanha, óleo de copaíba e outros produtos florestais da Amazônia. Ao longo desse período, Coslovsky crê que o Brasil não conseguiu marcar sua presença no mundo como se gostaria, apesar da fome dos consumidores internacionais por produtos da bioeconomia.
Isso é um problema porque a Amazônia é muito grande para depender só do mercado interno. Para ele, poucas empresas vão além do básico. São casos como os da Natura, com sua linha Ekos, que usa bioativos da Amazônia na composição de produtos para corpo e cabelo, ou da Wickbold, com sua linha de pães de castanhas. “A exportação é o grande o teste de competência. Conseguir vender localmente é relativamente fácil, mas competir com os melhores do mundo é quando o bicho pega. Acho que essa é a estratégia de bioeconomia que precisa ser contemplada”, afirma.
O desafio para os formuladores de políticas públicas é grande, na opinião dele. Se normalmente os setores produtivos por si só já trazem muitos desafios, nas cadeias produtivas da Amazônia a situação complica ainda mais. “O açaí do Pará é diferente do açaí do Amazonas. Quem produz cacau, não está exatamente no mesmo barco de quem mói cacau”, justifica Coslovsky.
“Temos a maior floresta nativa de bambu no Acre, é uma cadeia muito pouco incentivada…”, Clarissa Beretz, no chat
Para ele, entender os interesses e respeitar essas diferenças é importante para que a estratégia dê certo, ou a política ficará em um nível de generalidades em que todos concordam e nada avança de forma concreta. Nesse caso, o primeiro passo seria definir o que são os setores produtivos da Amazônia, uma vez que as cooperativas e as unidades de produção familiar não têm fôlego para se posicionarem no mercado de forma autônoma.
Outro desafio mencionado pelo professor da NYU é o do conhecimento. Quem conhece o mercado, os desafios do setor? Segundo ele, não é um professor universitário, nem um burocrata ou um especialista em administração pública. É quem está na linha de frente. Ainda assim, mesmo conhecendo o mercado melhor do que ninguém, cada produtor pensa uma coisa diferente. “Cria-se então um pântano [de informações] onde é preciso aprender a navegar”, recomenda.
Dadas essas premissas, Coslovsky diz que para estimular o desenvolvimento dos setores produtivos, o comum é o uso das ferramentas clássicas de política industrial de fomento econômico, como isenção, renúncia fiscal, subsídio e proteção de mercado. A história desses instrumentos, segundo ele, não é boa. “Às vezes dá certo, mas na maior parte não dá em nada. Essas medidas garantem uma renda enquanto estão sendo usadas mas não ensinam o produtor a pescar. São muito tentadoras mas pouco efetivas”.
“A Cultura é uma ferramenta muito potente e sustentável e pouco explorada, para geração de trabalho, renda e desenvolvimento social, ambiental e econômico”. Mariana Dupas, do chat
Para Pedro Neto, as questões levantas por Coslovsky também o afligem. Mas, a seu ver, o único elemento que pode reduzir a distância entre formulador de políticas e o produtor é exatamente a participação local. E isso já está consolidado. “Temos que ouvir tudo com muita atenção, enxergar cada arranjo como único e continuar aproximando das discussões essa turma que convive com a rigidez de marcos regulatórios sofre a ação do intermediário e enfrenta exigências governamentais supérfluas. Assim, mitigamos um pouco a lentidão desse processo de desenvolvimento”, observa.
Respondendo também à provocação do professor da NYU, Nabil Kadri afirma que o Brasil de fato ainda não conseguiu encontrar um modelo econômico que mantenha de pé a equação das atividades florestais, madeireiras ou não. Alguns países, segundo ele, já desenvolveram instrumentos muito adequados para colocar a bioeconomia florestal para rodar mas, no caso brasileiro, não se encontraram modelagens que gerem escala, preservação e ganhos sucessivos. Isso vai desde questões simples de modelagens financeiras para crédito até as mais complexas, como instrumentos de garantia que preveem carregar o financiamento por um prazo de maturação bem maior do que aquele feito em um projeto econômico convencional.
Aos que buscam as melhores fórmulas para deslanchar o desenvolvimento sustentável da Amazônia, Ronaldo Guedes contribui com uma inspiração. O ceramista cita o líder indígena, escritor e filósofo, Ailton Krenak, segundo o qual a construção do desenvolvimento econômico na Amazônia tem a ver com o entendimento das origens, dos caminhos percorridos até o momento atual.
“De um lado somos tão ricos em diversidade – afirma Guedes –, de outro, tão carentes de políticas públicas, de ações, de olhares, de atenção que possam ajudar a fortalecer as identidades dos povos da Amazônia. É essa identidade que norteará nossos projetos futuros: de onde viemos para onde queremos ir, que Marajó e que Amazônia queremos para nós e para os que virão?”, provoca o artista.