O tom inicial de celebração da presença de 8 mil indígenas no acampamento, nesta edição histórica de 20 anos, logo mudou para a indignação contra o Marco Temporal e as reiteradas pautas anti-indígenas de setores do Parlamento. Foram manifestadas queixas contra o lento processo de demarcação do atual governo
Segundo dia – Segunda-feira, 22 de abril de 2024
Por Antônio Reis Júnior*, de Brasília
Após a abertura do Acampamento Terra Livre 2024 no domingo, acordamos cedo nessa segunda e nos dirigimos rapidamente à Funarte, local onde o ATL está montado. Um dia quente no outono seco de Brasília. Passamos pela Torre de TV, onde ainda havia as marcas dos festejos do aniversário da cidade na véspera. Estávamos estrategicamente localizados a dois quilômetros da diversa e multiétnica “aldeia” indígena que se formou no centro da capital, onde mais de 200 povos congregavam e, sobretudo, faziam política.
Ao entrar na ATL, encontramos Txai Suruí, liderança indígena do povo Suruí de Rondônia, advogada e ativista, com atuação significativa na contenção do avanço predatório do agronegócio sobre a Terra Indígena (TI) Uru Eu Wau Wau em seu Estado, herdeira da luta contra o desmatamento da Amazônia, causa abraçada por seu pai, Almir Suruí.
Txai estava acompanhada de Thiago Karai Djekupe, ou Thiago Guarani, arquiteto e urbanista, outra aguerrida liderança do povo Guarani Mbyá da TI Jaraguá na cidade de São Paulo que, em 2023, liderou um ato contra a aprovação do Marco Temporal, bloqueando a Rodovia dos Bandeirantes.
Após uma rápida conversa, Ligia Rocha, minha companheira, representando o coletivo de bordadeiras Linha de Sampa, presenteou as lideranças com bordados “Sem demarcação, não há democracia”, que foram imediatamente fixados em suas roupas. Presenças fundamentais no ATL 2024, Txai e Thiago iriam, dias depois, reunir-se no STF com o ministro José Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para tratar do direito inegociável de demarcação e lembrá-lo que, após a aprovação pelo Congresso em outubro de 2023 do Marco Temporal, a violência nos territórios só tem aumentado.
O sol se erguia no céu queimando nossa pele enquanto nos dirigíamos a tenda principal para acompanhar os eventos anunciados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Por todos os lados, surgiam cantos de muitas vozes, danças ritmadas e coreografas, o chacoalhar dos maracás, invariavelmente acompanhados de batidas de pés que levantavam uma fina poeira. Eram as delegações que se aproximavam da tenda, com presença marcante e melodias que nos arrebatavam. É preciso estar presente, sentidos aguçados, e misturar-se para vivenciar essas manifestações.
Fiquei dividido, pois a fruição estética e política dessas performances de apresentação das delegações acontecia simultaneamente ao início da coletiva de imprensa em uma tenda menor ao lado da principal, e que eu não podia perder, tendo em vista o propósito de escrita deste diário.
Diante de inúmeros jornalistas da grande imprensa, como a Globo, o SBT e a EBC, dos comunicadores das mídias indígenas e de organizações diversas como o Instituto Socioambiental (ISA), as lideranças se ajeitavam nas cadeiras para o início da coletiva.
Lá estavam Kleber Karipuna e Dinamam Tuxá, coordenadores executivos da Apib, representando, respectivamente, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos e Organizações do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme); Alberto Terena do Conselho do Povo Terena; Kretã Kaingang da Articulação dos Povos Indígenas (Arpin) da Região Sul; Lorival Guarani Kaiowá pela ATY Guaçu, do Mato Grosso do Sul, além de representantes da Arpin Sudeste e da Comissão Guarani Yvyrupa. Assim, diante de nós, estavam representadas as sete organizações regionais da luta dos povos indígenas no Brasil, coordenadas nacionalmente pela Apib.
O tom inicial de celebração da presença de 8 mil indígenas no acampamento, nesta edição histórica de 20 anos, logo mudou para a indignação contra o Marco Temporal e as reiteradas pautas anti-indígenas de setores do Parlamento. As queixas com a morosidade do atual governo com a demarcação das Terras Indígenas – apenas duas homologadas nessa gestão, em terras da União: Aldeia Velha na Bahia e Cacique Fontoura em Mato Grosso – foram manifestadas.
“Não é batendo papinho com governador, não é comprando terra, que se vai garantir o direito constitucional dos povos indígenas aos seus territórios originários”, alertou Kleber Karipuna, em uma fala que ecoou em outras lideranças, algumas mais contundentes, como Kretã Kaingang que denunciou a violência promovida contra os Kaingang por milícias armadas organizadas por fazendeiros e com a cumplicidade ou omissão do Estado de Santa Catarina.
“Caça ao bugre”
A fala de Kretã evoca a histórica violência promovida contra os Kaingang, não só em Santa Catarina, mas também na conquista do Oeste de São Paulo desde o fim do século XIX, quando fazendeiros e colonos se armaram para a “caça ao bugre”, com o apoio do Estado e suas políticas colonizatórias voltadas ao assentamento de imigrantes e a extensão da malha ferroviária. Dessa forma, promoveram o roubo de suas terras, a disseminação proposital de doenças, a extinção de suas aldeias e o extermínio de seu povo. O que ouvimos, é a continuidade dessa prática atualmente. As reparações são urgentes.
Dinamam Tuxã lembrou e cobrou o governo Lula, que criou o Ministérios dos Povos Indígenas liderado por Sonia Guajajara, para o cumprimento da promessa de demarcar 14 Terras Indígenas, de realizar a desintrusão das áreas já homologadas, além de finalizar as 23 demarcações que, segundo ele, já estão juridicamente prontas para esse fim.
Findada a coletiva de imprensa, fiz o credenciamento para a cobertura colaborativa da ATL ouvindo a recomendação de não fotografar crianças indígenas sem a autorização dos pais.
As lideranças foram à tenda principal e subiram ao palco para uma apresentação pública. As delegações, concentradas nessa grande “casa indígena”, no centro da aldeia-acampamento, prestigiaram seus representantes, aplaudindo efusivamente todos os presentes.
Saímos do acampamento para procurar um almoço e Brasília, novamente, me pareceu, pelo menos ali no entorno do Eixão, um lugar inóspito para o pedestre, diferente do que veríamos depois nas superquadras e suas áreas residenciais, arborizadas, tranquilas e com serviços variados.
Mulheres Biomas
De volta ao ATL, no início da tarde, retornamos à tenda principal quando subia ao palco Célia Xakriabá, doutora em Antropologia, a primeira mulher indígena eleita deputada federal pelo estado de Minas Gerais, pelo Psol. Forjada na luta pela defesa da TI Xakriabá em Minas, desde a adolescência, está organicamente envolvida com a mobilização indígena.
A integrante da chamada Bancada do Cocar – que no ano de 2022 elegeu cinco representantes para a Câmara federal, embora nem todos política e ideologicamente alinhados – fez uma fala contundente, sobre a importância da preservação da memória e do patrimônio cultural dos povos originários e do reconhecimento das sabedorias ancestrais. É preciso “mulherizar” e “indigenizar” a política, fazendo eco também a Sonia Guajajara e seu empenho para “aldear” a política institucional.
Chegamos ao fim da tarde e saímos da tenda encontrando conhecidos que vieram de São Paulo para participar da ATL e circulamos pelos espaços das sete instituições regionais, todas com uma programação própria, além da plenária organizada pela Apib.
Uma cena me despertou a atenção: um grupo de mulheres Yanomami, com algumas crianças, sentadas em círculo na grama à frente de suas barracas, comiam um peixe moqueado enquanto conversavam. Ali, estavam em sua aldeia, pareciam abstrair a capital federal, o Eixo Monumental com seus prédios oficiais e suas vias expressas com fluxo constante de carros e ruídos urbanos.
Saímos mais uma vez do acampamento, passando por um curioso canto limítrofe da ATL onde ambulantes vendiam roupas, potes de plástico, churrasquinho, e uma diversidade de produtos industrializados que também despertavam interesse. Um pequeno camelódromo que poderia estar em qualquer centro comercial urbano.
À noite, um pouco cansados de caminhar nas idas e vindas entre hotel e ATL, fomos à tenda da Coiab, uma indicação do amigo antropólogo Cássio Inglês de Souza, que destacou a programação e os eventos muito concorridos da associação.
Antes de chegar, nos deparamos com uma pequena aglomeração de indígenas que cantavam e faziam uma dança circular muito efusiva. Nos aproximamos e vimos Sonia Guajajara dançando de braços dados com um homem de cocar, corpo pintado de preto jenipapo e vermelho urucum, com expressivo grafismo. Lá estava a ministra, mergulhada entre seu povo, no meio do acampamento, entre as barracas, rompendo os protocolos e sendo acolhida afetivamente entre seus pares, uma bonita cena.
Quando chegamos à Coiab, teria início uma sessão de cinema com a exibição do documentário Amazônia, uma nova Minamata? do consagrado cineasta Jorge Bodansky, protagonizado por Alessandra Korap, uma liderança do povo Munduruku do estado do Pará, que vive em aldeias distribuídas pela Bacia do Rio Tapajós.
Alessandra conta que, temerosa do avanço do garimpo ilegal em território indígena Munduruku e os seus enormes riscos à saúde de seu povo, sobretudo pelo consumo de peixes contaminados por mercúrio, convocou médicos e pesquisadores da Fiocruz coordenados pelo neurologista Erick Jennings para uma pesquisa em diferentes aldeias. O diagnóstico apresentado pela equipe é assustador: quase sem exceção, todos os indivíduos apresentavam altos índices deste metal pesado no organismo.
A pergunta do título do filme faz referência a Minamata, uma região no Japão que nos anos de 1950 foi contaminada por mercúrio com consequências devastadoras a população local. Sabíamos do problema, mas ouvir Alessandra e assistir ao documentário, nos revelou o tamanho e a complexidade inimaginável desse problema e nos abalou profundamente. Nos pareceu que, de fato, estamos à beira de um cenário distópico na região do Tapajós, senão por toda a Amazônia, se o garimpo ilegal não for imediatamente contido.
Assim, melancólicos, voltamos ao hotel, embora com um fio de esperança de que uma potente mobilização como essa da ATL possa, efetivamente, projetar um futuro melhor. A conferir.
Acompanhe o relato do primeiro dia e do terceiro.
*Antônio Reis Júnior é historiador, professor universitário, autor de livros didáticos e colaborador da Página22