Atuar na educação do público, em vez de trabalhar com o banal e o vulgar, é o objetivo que deveria nortear a mídia e a publicidade, defende o diretor do Sesc-SP
Por Amália Safatle
Somente o avanço na educação básica e a aplicação da ética na divulgação da informação e das manifestações artísticas tornarão efetiva a comunicação no Brasil, fazendo dela um instrumento para a sustentabilidade. Essa é a visão de Danilo Santos de Miranda, que desde 1984 dirige uma das mais atuantes e reconhecidas instituições culturais no Brasil, o Serviço Social do Comércio (Sesc) em São Paulo – entidade do Sistema S do qual o governo federal pretende subtrair recursos para financiar programas de formação profissional. É na comunicação e no diálogo que Miranda aposta para também superar esse impasse.
O aumento da informação sobre temas ambientais e sociais é perceptível, mas a TV e o rádio – meios que atingem quase a totalidade dos brasileiros – estão comunicando de forma efetiva a sustentabilidade?
Uma das grandes questões ligadas à sustentabilidade é o problema da comunicação. Houve avanço na quantidade de informação, mas ainda há uma qualidade que precisa ser atingida. Ela precisa ser mais profunda. Existem fatos, existem interesses, e muitas vezes os interesses alteram os fatos. Mais que a comunicação, a publicidade trabalha de forma pouco responsável.
Recentemente, um grande anunciante, ao fazer propaganda de seu programa de preservação ambiental, foi obrigado pelo Conar (Conselho de Auto-regulamentação Publicitária) a retirar o anúncio. Porque era falso, ou pelo menos uma afirmação parcial, reduzida, em relação ao estrago feito na outra ponta. Houve pouca repercussão, muita gente não teve conhecimento disso. Como se trata de anunciante poderosíssimo, há interesse de que isso não seja divulgado.
Mas (a retirada) foi uma atitude exemplar e que teria um caráter de orientação da população. Essa empresa pública, que deveria trabalhar na perspectiva educativa também, foi punida, mas esconde isso de maneira muito clara.
Por serem concessões públicas, a tevê e o rádio, embora comerciais, também deveriam ter esse caráter educativo?
A mesma coisa. É business, precisa continuar existindo, mas tem de cumprir aquilo acordado no contrato de concessão, que estabelece compromissos de ordem pública – colocados muito claramente, e que muito claramente não são cumpridos. Alguém me disse uma vez: “Televisão não tem que educar, só divertir”.
Mas a educação pode se dar através da diversão também.
Claro, e os meios são suficientemente capazes e muito bem preparados para se utilizar dos mecanismos mais avançados para usar a linguagem do entretenimento a fim de entreter e educar de forma inteligente, não agressiva – como é, por exemplo, essa história de merchandising em novela, que é uma coisa ridícula. Inclusive me parece que isso tem um componente inconstitucional.
Um conhecido meu, ligado ao mundo publicitário, defende a tese de que é ilegal. Porque qualquer ligação entre um produto dentro de um fato ficcional não pode ser feita de modo a pegar a pessoa desprevenida. Na França, o intervalo comercial é anunciado. Interrompe-se a programação e se escreve: “Publicité”, e aí vem a publicidade. Em veículos impressos, quando é informe publicitário, tem de avisar: “Informe publicitário”. E na televisão ainda tem o merchandising social, que é uma coisa, eu diria, desprovida de bom senso. Qualquer instituição nesse campo tem compromissos educacionais. Nós, por exemplo, somos instituição de caráter privado, mas temos vínculo com o interesse público.
Quem precisa cobrar isso?
A sociedade e seus representantes: o Estado e o governo. A sociedade diretamente, quando pode, e para isso existem as organizações mais diversas. Eu acho grave, sobretudo, o problema das crianças. Um ex-publicitário me revelou que toda publicidade, absolutamente toda, mesmo aquela que não parece destinada à criança, é destinada à criança ou ao adolescente, aquele que está em formação, o consumidor potencial – mais passível de uma mensagem que o consumidor efetivo. Isso é deturpar o objetivo da ciência da comunicação, das manifestações artísticas, para transformar as pessoas em consumidores.
Nos filmes de animação, o tema ambiental é bastante presente e aparece de forma cada vez mais complexa. Ao mesmo tempo, as crianças são bombardeadas pelo consumismo.
Meio ambiente até pouco tempo era importante para poucas pessoas. Hoje é importante para muitas pessoas. O desejo é que se torne importante para todas as pessoas. O processo de criação voltado ao imaginário infantil já acontece. Conheço famílias em que as crianças é que são portadoras da mensagem ambiental. É a filha, de 8, 9 anos, que diz para o pai não fumar, para separar o lixo etc.
Agora, a publicidade trabalha de maneira predatória, sempre foi assim, deseducativa, perigosa. Um dos grandes problemas na comunicação chama-se publicidade. A publicidade enganosa, seja em conteúdo, seja em conceito.
Mas ela não age sozinha, existe a empresa que contrata a agência para produzir aquilo, e aprova a campanha.
Acho que é deseducativa dos dois lados, mas muitas vezes o publicitário vai além do que a empresa pede, porque há uma idéia de que os publicitários são os grandes gurus da sociedade.
A empresa dá carta branca para eles?
Totalmente. Publicitários são chamados a opinar sobre aspectos com os quais aparentemente não têm nada a ver. Muitas vezes o erro de algumas campanhas, de algumas tentativas no campo social e cultural, é considerar a publicidade como alavanca principal. A alavanca principal é a comunicação e a comunicação nem sempre é contemplada adequadamente pelo mundo da publicidade. Comunicação ética, cuidadosa, educativa, é a comunicação efetiva.
Com relação ao conteúdo, mensagens mais educativas e de maior qualidade trariam a audiência de que os canais comerciais precisam?
Existem formas muito inteligentes de fazer atividades de caráter educativo sem comprometer a audiência. Você pega minisséries muito bem-feitas pela televisão, sobre histórias e fatos brasileiros – caras, é verdade, sem apelo comercial – e que têm excelente resultado e audiência. Em relação à qualidade, vivemos um país em que o padrão educacional é bastante rudimentar. Em razão disso, tudo que é feito e oferecido diz respeito a atender um tipo de público com o nível de informação o mais baixo possível.
Nivelando por baixo?
Cada vez mais. Há tevês que não trabalham com o fácil, com o banal, com o vulgar. Mas trabalhar com o fácil, o banal e o vulgar para ter audiência é uma maneira pouco civilizada de conviver com a sociedade.
O público brasileiro, a grande massa, é pouco exigente com essa qualidade, ou sua inteligência é subestimada pelos meios de comunicação?
É subestimada. Isso também é proveniente de um padrão educacional baixo. Nosso problema central, centralíssimo, é educação básica. O Brasil tem um alto percentual de analfabetos, de 10%. E temos uma população, grande mesmo, com analfabetismo funcional, que sabe ler a placa do ônibus, mas não entende duas frases.
É preciso investimento em educação básica, e toda a sociedade se engajar nesse processo, todas as entidades, instituições, meios de comunicação. Aí a questão da sustentabilidade – a visão das pessoas diante de seu entorno, de si mesmo, perspectivas etc. – torna-se outra.
É também por causa desse analfabetismo, funcional ou não, que as pessoas recorrem a meios como tevê e rádio?
Sim, recorrem à tevê, ao rádio, à comunicação fácil, imediata, em que a empatia, a beleza, tem a ver com o desejo de imitação, que começa na criança, sobretudo. Então há uma certa infantilização na comunicação da grande massa. Isso tem a ver com a proposta, que acho inclusive ideológica, de criar condições para manter o que está aí do jeito que está.
Isso independe de corrente, não tem esquerda, nem direita, nem centro, mas há uma ideologia do estabelecido que vai garantir a continuidade do modelo existente, que é opressor, exploratório, que ameaça a boa convivência entre as pessoas. Mas avançamos, antes era muito pior.
As tecnologias de comunicação e de expressão cultural relativamente novas, como as da internet (YouTube, blogs), são capazes de descentralizar esse modelo?
Os suportes estão se tornando muito numerosos. Rapidamente você pode dizer o que pensa, na hora que pensa, para quem você quiser.
Com isso, tem uma democratização começando?
Tem um processo avançado, que percorre parte da sociedade, é claro. Achar que já nos tornamos dominadores desse processo tecnológico não é verdade. Tecnologias mais simples como o celular se disseminaram bastante. Mas as mais sofisticadas, como computador, a criação de uma linguagem, já exigem certa alfabetização especializada – embora já não se imagine uma casa de classe média sem computador. A tendência é que se tornem mais baratos e entrem na vida de todos.
A tecnologia está vindo, o vídeo, o áudio, tudo está se tornando compactado em linguagens muito próximas umas das outras e isso é muito bom do ponto de vista da popularização da informação. Agora, há uma quantidade abusiva, descontrolada, da informação. Sobretudo a desnecessária, supérflua. O grande segredo não é mais ter ou não ter informação, e sim que informação eu quero e que informação eu não quero ter.
Nunca tivemos tanta informação disponível?
Nunca, e, sobretudo, na velocidade com que chega. Hoje você vê ao vivo um terremoto na China. Houve um fenômeno interessante em São Paulo: um incêndio grave em uma fábrica em Moema, e alguém, inadvertidamente, ao comunicar a polícia, disse que um avião tinha caído. Essa notícia correu o mundo, rapidamente. Sites atrás de detalhes sobre o novo avião que tinha caído em São Paulo. Então, veja: é uma informação rápida – e falsa.
Mas se de um lado tem essa pletora, de outro lado significa uma forma de conscientização. Saber o que você faz, quais as conseqüências do que faz, quem está fazendo a mesma coisa, qual a repercussão disso no resto do mundo, é novo – isso é fantástico! O nível de consciência aumenta demais. Isso, para a sustentabilidade, é fundamental.
Diante dessa maior consciência, o fato de vivermos em uma sociedade mais complexa, com mais atores interagindo em uma rede globalizada, ajuda para a solução dos problemas socioambientais?
Muito. O pensamento complexo revela que não existe uma verdade absoluta, definitiva. As coisas são encaradas sob os mais diversos pontos. Quando você levanta uma opinião e muita gente a confronta, enxergando-a sob os mais diversos pontos de vista, estamos enriquecendo o debate, transformando um fato que talvez fosse muito simples em uma verdade mais complexa, com nuances, timbres, territórios novos sendo analisados a partir daquele fato. Isso tem a ver com nossa capacidade de enxergar melhor as coisas e também com todo esse aparato ferramental à disposição, seja pela tecnologia, seja pela capacidade de usá-la.
A sociedade caminha para uma sofisticação maior e uma capacidade de enxergar isso de maneira mais completa. O conhecimento avança de forma exponencial, e a humanidade é hoje quase capaz de resolver qualquer problema. Já somos capazes de produzir alimentos para dez vezes a população, mas, por outras razões, não fazemos isso. Parte substancial da humanidade não tem acesso ao minimum minimorum dos alimentos. Olha que contradição fantástica.
Ou seja, a questão do conhecimento está dominada, mas a moral, não?
A questão toda é ética. Porque falta esse componente que perpassa todas as ações do ser humano. Quando discuto cultura, ela está vinculada à ética, porque se pode usar a cultura como ferramenta contra a sociedade. O mesmo com a informação.
Mas quando a produção cultural é descentralizada, regionalizada, diminui o risco do seu uso para a dominação, certo?
É verdade. A globalização tem aspectos positivos para a humanidade à medida que se participa de um processo universal. Você sabe que tudo isso faz parte de um momento histórico importante, está conectado em rede, maior ou menor, íntima ou não, superficial, não importa, com o mundo todo. Mas essa globalização só vai ter sentido se acompanhada da preocupação permanente com a valorização do diverso, do local, do próximo, do que está à minha volta, daquilo do qual eu participo, do qual eu sou agente e paciente do processo.
Essa ligação – essa tensão, até, eu diria, pois a tensão pode ser positiva, ela pode produzir luz – entre o local e a globalização faz parte desse entendimento. Trabalhar com esses dois pólos de maneira integrada é o grande segredo das políticas culturais e tem sido objeto de muita consideração.
No Brasil?
No Brasil, a consciência se dá à medida que há ações que valorizam o local, os pontos de cultura, a ação que o Ministério da Cultura tem tido em nível nacional. Há um esforço. No Maranhão, há mais de 200 grupos e entidades que realizam a festa do boi em uma perspectiva de pura autenticidade. Diferentemente dessa mediação dos meios de comunicação, é uma coisa direta. Isso me encanta.
Ao mesmo tempo, tem a conexão com o mundo inteiro. Do ponto de vista internacional, a grande sacada diz respeito à diversidade cultural, que não foi tão valorizada no passado e agora é retomada.
Porque se globalizou a cultura.
A globalização dominou tudo, inclusive a cultura. É a mentalidade do aeroporto, que é igual em Xangai, em Nova York, em São Paulo. A contrafacção é a diversidade. Existe uma declaração universal para valorização da diversidade cultural que foi lançada e assinada no Brasil por mais de 170 países, no Fórum Cultural Mundial.
Foi uma reação?
Exato. Porque há a idéia da cultura somente como mercadoria. Há uma discussão interessante sobre a participação das questões culturais no âmbito da Organização Mundial do Comércio ou da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Alguns acordos internacionais, sobretudo liderados pelos EUA, propõem que o filme, a música, o teatro, a dança sejam parte de acordos comerciais, enquanto a França e outros países – e o Brasil entrou nessa fortemente, é um dos líderes dessa proposta – trabalham com a idéia da chamada exceção, ou seja, a cultura está fora disso.
Essa é a visão que precisa preponderar. Claro que precisa ter indústria criativa, produzir, vender seu produto, mas isso faz parte de um processo em que a identidade seja preservada, porque ela é a origem do produto.
Em relação ao projeto de lei que retira recursos do Sistema S, qual a probabilidade de ser aprovado?
Acredito que não prospere, pelo menos do jeito que está, porque tem contradições muito graves. Na prática, eles não consideram que nossa ação tem caráter educativo, porque senão não tentariam retirar nenhum recurso dela, e eles não consideram o trabalho no plano da educação profissional como relevante para o País.
“Eles” é o Ministério da Educação?
É uma parte do governo, não todo ele. Então há uma discussão, e na discussão tenho muita confiança de que sejam revistas essas posições. Por isso acho que não prosperam, porque a lógica, o bom senso, a obviedade é tão clara, que não consigo entender por que insistem dessa maneira.
E para mim a grande questão brasileira não é a educação profissionalizante, que tem sua importância também, mas é a educação básica, como disse. A partir daí, o restante não digo que virá naturalmente, mas virá.