Mais que afetar uma profissão, a crise do jornalismo pode impactar a sociedade democrática, enquanto o conteúdo de qualidade, livre e investigativo não encontrar meios de sustentação financeira nesta era digital e pós-industrial
Ser jornalista nunca foi fácil, mas já foi bem mais estimulante. Hoje o profissional das mídias impressas convive com uma crise provocada pela necessidade de transpor o velho modelo de negócio analógico – deixando no passado alguns séculos de lucros, sucesso e poder – para a era pós-industrial, um mundo sem rotativas em que a informação insiste em ser predominantemente digital e livre. A percepção de que essa crise, que é global, chegou finalmente ao Brasil ficou mais contundente nos últimos meses, com o fechamento de publicações e suplementos, corte de investimentos em reportagens, demissões em massa e a crescente precarização do trabalho dos repórteres, portando ou não o crachá de uma grande empresa – o que engloba desde os profissionais “com carteira” até o exército crescente de freelancers fixos e avulsos.
Adicione-se a esse cenário mais um complicador: quem precisa da intermediação de jornalistas quando os aparatos tecnológicos hoje existentes permitem que qualquer pessoa transmita um fato ao vivo, em cores, em alta definição e sem cortes diretamente ao receptor conectado à internet? As manifestações em série que se originaram em São Paulo – com uma surpreendente adesão em massa aos protestos do Movimento Passe Livre, após a brutal repressão policial a manifestantes e jornalistas nas passeatas realizadas na capital paulista no dia 13 de junho – e se agigantaram rápida e inesperadamente país adentro puseram mais combustível na discussão sobre as deficiências do jornalismo atual.
A chamada grande mídia demorou a compreender o que se passava nas ruas e, além de ter sido rechaçada por manifestantes durante a cobertura dos protestos, foi reiteradamente “furada” por blogs e redes sociais.
Críticas à cobertura dos grandes veículos e ao que se chama de monopólio da informação foram endossadas na Assembleia Popular Temática – Democracia na Mídia, reunida no fim de junho no vão livre do Museu de Arte (Masp), em São Paulo (assista aqui).
O cerne da crise do modelo de negócio de mídia impressa estaria na convergência dos anunciantes, a principal fonte de receita dos veículos impressos, para o meio eletrônico, onde em tese os recursos se pulverizam (mais em Entrevista com Eugênio Bucci). Ou seja, a receita publicitária arrecadada em versões eletrônicas de jornais e revistas é insuficiente para subsidiar redações bem estruturadas, sem as quais o jornalismo perde a sua essência investigativa – em outras palavras, perde qualidade.
Mas, de acordo com dados da Associação Mundial de Jornais e Publishers (Wan-Ifra, na sigla em inglês), a crise estrutural no meio impresso, pelo menos por enquanto, parece circunscrita aos Estados Unidos e à Europa. A receita publicitária nos jornais da América Latina foi a que mais cresceu no mundo em 2012, aponta levantamento divulgado no mês passado pela entidade. O faturamento com anúncios subiu 9,1%, acumulando alta de 37,6% desde 2008. A circulação dos jornais na região aumentou 0,1% no último ano.
O Brasil está entre os países que contribuíram com esse desempenho. O Projeto Inter-Meios, que mede investimentos em mídia no Brasil, registrou aumento de 1,8% em 2012 na circulação de jornais, atingindo uma média diária de 4,52 milhões de exemplares. A receita publicitária somou R$ 3,39 bilhões, uma alta de 0,67% em relação ao faturamento de 2011. Esse crescimento é atribuído ao aumento da venda dos jornais populares, com preço em banca inferior a R$ 2, resultado da expansão da renda e da maior alfabetização da população.
Embora creia que a opção digital feita em todo o mundo seja irrecorrível e incontornável, o jornalista e escritor Alberto Dines, fundador do site Observatório da Imprensa, diz, sem rodeios, que “essa crise brasileira tem algo de artificial”. Para ele, ao contrário dos Estados Unidos, onde há uma internet muito mais atuante, no Brasil ainda não é o caso de crise de modelo de negócio. Os jornais e revistas brasileiros resolveram antecipar o apocalipse anunciado para daqui a 20 ou 30 anos pegando carona nos cortes de páginas e de pessoal feitos em abril pelo jornal O Estado de S. Paulo. “Os cortes no Estadão não tiveram relação com revolução digital e, sim, com o custo de um grande endividamento estimulado ainda durante o regime militar”, interpreta Dines.
Segundo ele, em vez de aproveitar a fragilidade do concorrente para investir em qualidade e crescimento, como certamente o fariam as indústrias de outros segmentos, a mídia nacional optou pelo desinvestimento. “Dois meses depois da reforma do Estadão, Folha de S.Paulo, Valor, revista Trip, Rede Record e Editora Abril [1] também anunciaram fortes cortes de papel, cadernos e pessoal”, recorda Dines. “Aproveitaram o ‘enxugamento’ do rival para compactar suas edições e nivelar por baixo.”
[1] No primeiro semestre de 2013, segundo dados extraoficiais publicados na imprensa, as demissões alcançaram 50 profissionais no Estadão, 40 na Folha, 50 no Valor, 14 na Trip, 400 na Rede Record e 70 na Editora Abril.
Esse “apocalipse” mencionado por Dines já causou muitos estragos materiais e imateriais no jornalismo dos Estados Unidos e da Europa. Um ensaio publicado no ano passado pelo Tow Center for Digital Journalism, da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, de Nova York, intitulado “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos novos tempos”, aponta que, ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos, caíram a receita publicitária nos veículos impressos e também a qualidade da cobertura jornalística em geral. “E podem afundar ainda mais antes de melhorar”, alerta o relatório de 196 páginas, escrito pelos professores Chris Anderson, Emily Bell e Clay Shirky.
A Revista de Jornalismo ESPM, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, publicou em edição especial [2] a íntegra desse dossiê traduzido para o português por considerar que, embora as análises se atenham ao jornalismo apenas dos Estados Unidos, trata-se de um documento essencial aos jornalistas interessados em compreender melhor os desafios atuais e as perspectivas para a profissão.
[2] Edição n° 5, ano 2, de abril, maio e junho de 2013. Saiba mais sobre a revista.
ERRO DE ORIGEM
Na visão da diretora de conteúdo digital do jornal Valor Econômico, Raquel Balarin, a indústria jornalística brasileira já está em busca de um novo modelo de negócios para tentar recuperar nos novos meios de distribuição a receita que gradualmente deixa de ser obtida com o jornal impresso. Ela explica que houve um erro de origem. As empresas jornalísticas começaram no meio digital entregando seu conteúdo de forma gratuita e, com isso, desvalorizaram sua principal matéria-prima. “Agora, tentam novas formas de gerar receita, como o paywall (cobrança pelo acesso aos textos digitais), mostrando que a produção de conteúdo de qualidade custa caro.” Seu diagnóstico é o de que ainda demora um pouco para os jornais alcançarem um equilíbrio. (Acesse a íntegra da entrevista feita por email com o Valor [3]).
[3] Além de para o jornal Valor, a reportagem também enviou perguntas por email para a Folha, a revista Trip e a Editora Abril, mas não recebeu resposta. A reportagem também tentou contato com o Estadão, sem sucesso.
O nó maior para a adaptação das empresas jornalísticas às novas fronteiras está na dificuldade de alterar o curso de uma organização que ainda é obrigada a diariamente colocar um produto impresso em circulação e que também é muito boa no que faz. O jornalista e professor de jornalismo on-line Carlos Castilho, colaborador do site Observatório da Imprensa, faz uma reflexão sobre esse impasse. O jornalismo contemporâneo, segundo ele, enfrenta hoje dois tipos de medo: o da perda da segurança de um modelo que há décadas representa uma vantagem competitiva e o medo das incertezas do futuro. “A realidade já demonstrou que o primeiro leva à paralisia, o que pode ser fatal para uma empresa jornalística nos dias de hoje. Medo por medo, talvez a melhor opção seja apostar na mudança”, sugere Castilho.
O sociólogo e comentarista da emissora de rádio CBN Sérgio Abranches concorda. Afinal, o momento é de intensa transformação e adotar uma postura conservadora é a atitude menos apropriada. “É mais arriscado que surfar nas ondas da mudança. Nesses momentos é preciso certa dose de ousadia”, aconselha. Abranches entende que a crise do jornalismo representa um tópico dentro de um processo de transformação que está em curso no mundo. “É algo igual ou maior que o Renascimento.” Portanto, pode levar anos sem que se consiga prever muita coisa sobre o futuro. Mas uma coisa é certa: “Nós estamos presenciando um desmoronamento da atual ordem social-política-econômica”.
Os autores do dossiê do Tow Center também declaram que “a velha ordem caiu por terra”. Dizem, por exemplo, que não há como olhar para organizações como o Facebook e o YouTube e encontrar ali alguma coerência com a antiga ordem industrial. Do mesmo modo como não dá para olhar novas experiências no jornalismo sem fins lucrativos – como o trabalho de Andy Carvin na National Public Radio (NPR), dos Estados Unidos, durante a Primavera Árabe – e acreditar que o jornalismo está seguro em mãos de empresas voltadas para o lucro. E ainda: “Não há como olhar para a cobertura de manifestações de protesto feita com celulares e para experiências de financiamento coletivo de reportagens (Kickstarter)[4] e acreditar que só profissionais e instituições da imprensa podem tornar a informação pública”.
[4] A Kickstarter é a maior plataforma on-line do mundo de crowdfunding – doações coletivas, de indivíduos ou empresas, para financiar projetos. No Brasil, a mais conhecida é a Catarse.
MAIS UM ATOR
Em 2004, o conceituado professor universitário e jornalista americano Philip Meyerc lançou o livro Os Jornais Podem Desaparecer?, em cujas páginas calculou que a edição do último jornal impresso generalista nos Unidos ocorreria em 2043, daqui a exatos 30 anos. Alguns anos depois o escritor reformulou a previsão e admitiu vida mais longeva ao jornal impresso. Mesmo que o meio desapareça, por razões que vão desde o consumo excessivo de papel à dificuldade de distribuição, o jornalismo permanecerá. É no que acredita o jornalista e professor de ciências da comunicação Caio Túlio Costa. “Durante mais de 500 anos a sociedade precisou do jornalista para fazer a mediação entre os fatos e os leitores e continuará fazendo, só que não mais como ator principal. Ele precisa entender que agora é só mais um ator.”
A questão é como sobreviver nessa realidade de incertezas e “vacas magras”. Dias depois das recentes demissões seriais na imprensa brasileira, o jornalista e blogueiro Bruno Torturra denunciou a precarização do trabalho do repórter em um texto, exaustivamente compartilhado entre jornalistas nas redes sociais, intitulado “O ficaralho” – o título é uma releitura para a expressão “passaralho”, que no jargão jornalístico refere-se à lista de demissões (mais na reportagem “Jornalismos possíveis”). O site americano CareerCast.com, embora não preze o rigor cientíco, corrobora o testemunho de Torturra. Recentemente classicou o jornalismo como a pior profissão do mundo, entre 200 outras, levando em conta os seguintes critérios: ambiente de trabalho, salário, nível de estresse, exigência física e condições de contratação.
Em sua coluna dominical no jornal Folha de S.Paulo, a ombudsman Suzana Singer também fez um desabafo na semana dos anúncios das reestruturações de vários veículos sobre o fechamento de vagas no seu próprio jornal. A informação da direção da Folha foi a de que as redações do futuro deverão ser cada vez mais enxutas, assim como o produto impresso. Para a ombudsman, estruturar um jornal menor, mas mais sofisticado para fazer frente às informações gratuitas oferecidas na internet, com uma equipe reduzida e menos experiente, encarregada também de manter um site de notícias 24 horas, é uma fórmula difícil de ser bem-sucedida. E arremata: “Aos que acreditam que o jornalismo de qualidade faz bem à democracia resta torcer para que a travessia (para um novo modelo de negócio) dê certo”.
E torcer também para que o cenário dos EUA não se repita por aqui: de 2007 para cá, as vagas em redações de jornais encolheram 27% e hoje se empregam menos jornalistas do que em 1978. São dados de tirar o sono também de estudantes de jornalismo que, além de ainda não receberem uma formação centrada no empreendedorismo, chegarão ao mercado de trabalho com poucas chances de emprego (leia mais sobre formação de jornalistas). E o que dizer do aprendizado prático? Onde encontrar os jornalistas experientes que nas redações povoadas do século passado complementavam a formação dos novatos, os chamados “focas”?
No fim de junho, Leonardo Sakamoto, professor de jornalismo da PUC-SP e coordenador da ONG Repórter Brasil, promoveu uma palestra para debater com os alunos “o fim do jornalismo”. A proposta era debater alternativas para a profissão fora das grandes redações. Boas reportagens custam caro e conseguir financiá-las fora do domínio das grandes empresas de jornalismo é um caminho desconhecido cheio de senões. “O crowdfunding, por exemplo, é uma possibilidade, mas não dá para fazer toda a semana”, ponderou.
O diretor-executivo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Guilherme Alpendre, presente ao evento, identificou dois casos bem-sucedidos de jornalismo sem fins lucrativos: o da rádio NPR e o da ProPublica (agência de notícias independente), ambas com sede em Nova York. A NPR, segundo ele, é nanciada por doações do governo dos EUA, dos ouvintes e de fundações. “Consegue angariar cerca de US$ 7 milhões”, destacou. Há caso de fundações que, por exemplo, financiam o funcionamento de toda uma editoria na emissora quando o tema é convergente. “Uma fundação com finalidade de diminuir a diferença entre ricos e pobres – financia a editoria da NPR que cobre desigualdades sociais pelo mundo”, exemplificou Alpendre.
Já a ProPublica, embora aceite publicidade, tem como principal fonte de financiamento a filantropia, em especial um endowment (doação de um montante por uma família), que deve durar em torno de cinco anos.
Leonardo Sakamoto reconhece que será difícil contar com mecenato no Brasil. No entanto, já começaram a surgir alguns projetos independentes. É o caso da Pública, uma agência de reportagem e jornalismo investigativo, criada pela jornalista Natalia Viana, com apoio de um grupo de fundações sem fins lucrativos [5]. As reportagens são publicadas no próprio portal da Pública ou negociadas com publicações de venda em banca (mais em “Prenda-me, se for capaz”).
[5] Climate and Land Use Alliance (Clua), Fundação Carlos Chagas, Fundação Ford e Open Society Foundations.
Outro grupo de jovens jornalistas criou recentemente o movimento Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, que prega o “midialivrismo”, um jornalismo de contraponto à tradicional forma como as notícias chegam ao grande público. O grupo tentava mobilizar jornalistas para um debate em que seriam propostos modelos de jornalismo cooperativo na semana que marcou o início das manifestações pelo País. O encontro foi adiado e o grupo Ninja seguiu fazendo cobertura dos protestos pelo canal #PosTV de transmissão de conteúdo on-line, por meio de TwitCasting, um serviço de streaming por rede 3G ou 4G de celular, alcançando enorme visibilidade nas redes sociais (mais em “Jornalismos Possíveis”).
“O bom dessa era é que existe a possibilidade de competição do pequeno com o grande”, afirma Rodrigo Velloso, diretor de conteúdo da plataforma YouTube em San Francisco (EUA) e ex-diretor da Playboy na Editora Abril. “É o outro lado da moeda, o lado vibrante.” Ele cita o bem-sucedido programa de notícias diário SourceFed produzido por uma equipe enxuta de repórteres nos EUA e distribuído no YouTube. Eles financiam o dia a dia com publicidade na própria plataforma e, como produzem conteúdo de qualidade, às vezes se associam a uma rede de TV e compartilham o faturamento.
O estudo do Tow Center diz que o mais importante da fase de adaptação talvez seja mesmo reconhecer que estamos em meio a uma revolução – uma mudança tão grande que a estrutura atual da sociedade não tem como contê-la sem ser alterada por ela. Nesse sentido, quem sabe uma passagem pelo pensamento heideggeriano[6] , que dedica boa dose de esforço à reflexão dos impactos da técnica e da tecnologia na vida humana, guarde uma boa inspiração para este momento.
[6] Relativo ao filósofo alemão Martin Heidegger.
O professor de filosofia da Escola de Comunicações e Artes da USP, Clóvis de Barros Filho, explica que Martin Heidegger trata de dois tipos de razão: a objetiva e a instrumental. A primeira diz respeito ao destino que o homem (indivíduo ou sociedade) quer para si. A segunda, aos meios que vai utilizar para alcançar o destino. “Para Heidegger temos uma imensa capacidade para produzir meios (tecnologia), mas não sabemos bem para quê. Acumulamos os meios, mas não nos ocupamos mais da reflexão sobre para onde queremos ir”, afirma Barros Filho.
Um elemento para essa reflexão, que, aliás, o Tow Center já iniciou, pode ser a discussão do jornalismo enquanto instrumento fundamental à democracia. “A única razão para que tudo isso importe, e não só para quem segue trabalhando no que antigamente chamávamos de indústria jornalística, é que o jornalismo – exposição de fatos que alguém, em algum lugar, não quer ver publicados – é um bem público essencial.” Colaboraram: Amália Safatle, Mônica C. Ribeiro e Thaís Herrero.
Você conhece os instrumentos usados no jornalismo de tempos atrás que ilustram esta reportagem? Leia mais e descubra para que serviam.
[:en]Mais que afetar uma profissão, a crise do jornalismo pode impactar a sociedade democrática, enquanto o conteúdo de qualidade, livre e investigativo não encontrar meios de sustentação financeira nesta era digital e pós-industrial
Ser jornalista nunca foi fácil, mas já foi bem mais estimulante. Hoje o profissional das mídias impressas convive com uma crise provocada pela necessidade de transpor o velho modelo de negócio analógico – deixando no passado alguns séculos de lucros, sucesso e poder – para a era pós-industrial, um mundo sem rotativas em que a informação insiste em ser predominantemente digital e livre. A percepção de que essa crise, que é global, chegou finalmente ao Brasil ficou mais contundente nos últimos meses, com o fechamento de publicações e suplementos, corte de investimentos em reportagens, demissões em massa e a crescente precarização do trabalho dos repórteres, portando ou não o crachá de uma grande empresa – o que engloba desde os profissionais “com carteira” até o exército crescente de freelancers fixos e avulsos.
Adicione-se a esse cenário mais um complicador: quem precisa da intermediação de jornalistas quando os aparatos tecnológicos hoje existentes permitem que qualquer pessoa transmita um fato ao vivo, em cores, em alta definição e sem cortes diretamente ao receptor conectado à internet? As manifestações em série que se originaram em São Paulo – com uma surpreendente adesão em massa aos protestos do Movimento Passe Livre, após a brutal repressão policial a manifestantes e jornalistas nas passeatas realizadas na capital paulista no dia 13 de junho – e se agigantaram rápida e inesperadamente país adentro puseram mais combustível na discussão sobre as deficiências do jornalismo atual.
A chamada grande mídia demorou a compreender o que se passava nas ruas e, além de ter sido rechaçada por manifestantes durante a cobertura dos protestos, foi reiteradamente “furada” por blogs e redes sociais.
Críticas à cobertura dos grandes veículos e ao que se chama de monopólio da informação foram endossadas na Assembleia Popular Temática – Democracia na Mídia, reunida no fim de junho no vão livre do Museu de Arte (Masp), em São Paulo (assista aqui).
O cerne da crise do modelo de negócio de mídia impressa estaria na convergência dos anunciantes, a principal fonte de receita dos veículos impressos, para o meio eletrônico, onde em tese os recursos se pulverizam (mais em Entrevista com Eugênio Bucci). Ou seja, a receita publicitária arrecadada em versões eletrônicas de jornais e revistas é insuficiente para subsidiar redações bem estruturadas, sem as quais o jornalismo perde a sua essência investigativa – em outras palavras, perde qualidade.
Mas, de acordo com dados da Associação Mundial de Jornais e Publishers (Wan-Ifra, na sigla em inglês), a crise estrutural no meio impresso, pelo menos por enquanto, parece circunscrita aos Estados Unidos e à Europa. A receita publicitária nos jornais da América Latina foi a que mais cresceu no mundo em 2012, aponta levantamento divulgado no mês passado pela entidade. O faturamento com anúncios subiu 9,1%, acumulando alta de 37,6% desde 2008. A circulação dos jornais na região aumentou 0,1% no último ano.
O Brasil está entre os países que contribuíram com esse desempenho. O Projeto Inter-Meios, que mede investimentos em mídia no Brasil, registrou aumento de 1,8% em 2012 na circulação de jornais, atingindo uma média diária de 4,52 milhões de exemplares. A receita publicitária somou R$ 3,39 bilhões, uma alta de 0,67% em relação ao faturamento de 2011. Esse crescimento é atribuído ao aumento da venda dos jornais populares, com preço em banca inferior a R$ 2, resultado da expansão da renda e da maior alfabetização da população.
Embora creia que a opção digital feita em todo o mundo seja irrecorrível e incontornável, o jornalista e escritor Alberto Dines, fundador do site Observatório da Imprensa, diz, sem rodeios, que “essa crise brasileira tem algo de artificial”. Para ele, ao contrário dos Estados Unidos, onde há uma internet muito mais atuante, no Brasil ainda não é o caso de crise de modelo de negócio. Os jornais e revistas brasileiros resolveram antecipar o apocalipse anunciado para daqui a 20 ou 30 anos pegando carona nos cortes de páginas e de pessoal feitos em abril pelo jornal O Estado de S. Paulo. “Os cortes no Estadão não tiveram relação com revolução digital e, sim, com o custo de um grande endividamento estimulado ainda durante o regime militar”, interpreta Dines.
Segundo ele, em vez de aproveitar a fragilidade do concorrente para investir em qualidade e crescimento, como certamente o fariam as indústrias de outros segmentos, a mídia nacional optou pelo desinvestimento. “Dois meses depois da reforma do Estadão, Folha de S.Paulo, Valor, revista Trip, Rede Record e Editora Abril [1] também anunciaram fortes cortes de papel, cadernos e pessoal”, recorda Dines. “Aproveitaram o ‘enxugamento’ do rival para compactar suas edições e nivelar por baixo.”
[1]No primeiro semestre de 2013, segundo dados extraoficiais publicados na imprensa, as demissões alcançaram 50 profissionais no Estadão, 40 na Folha, 50 no Valor, 14 na Trip, 400 na Rede Record e 70 na Editora Abril.
Esse “apocalipse” mencionado por Dines já causou muitos estragos materiais e imateriais no jornalismo dos Estados Unidos e da Europa. Um ensaio publicado no ano passado pelo Tow Center for Digital Journalism, da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia, de Nova York, intitulado “Jornalismo Pós-Industrial: Adaptação aos novos tempos”, aponta que, ao longo dos últimos anos nos Estados Unidos, caíram a receita publicitária nos veículos impressos e também a qualidade da cobertura jornalística em geral. “E podem afundar ainda mais antes de melhorar”, alerta o relatório de 196 páginas, escrito pelos professores Chris Anderson, Emily Bell e Clay Shirky.
A Revista de Jornalismo ESPM, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, publicou em edição especial [2] a íntegra desse dossiê traduzido para o português por considerar que, embora as análises se atenham ao jornalismo apenas dos Estados Unidos, trata-se de um documento essencial aos jornalistas interessados em compreender melhor os desafios atuais e as perspectivas para a profissão.
[2] Edição n° 5, ano 2, de abril, maio e junho de 2013. Saiba mais sobre a revista.
ERRO DE ORIGEM
Na visão da diretora de conteúdo digital do jornal Valor Econômico, Raquel Balarin, a indústria jornalística brasileira já está em busca de um novo modelo de negócios para tentar recuperar nos novos meios de distribuição a receita que gradualmente deixa de ser obtida com o jornal impresso. Ela explica que houve um erro de origem. As empresas jornalísticas começaram no meio digital entregando seu conteúdo de forma gratuita e, com isso, desvalorizaram sua principal matéria-prima. “Agora, tentam novas formas de gerar receita, como o paywall (cobrança pelo acesso aos textos digitais), mostrando que a produção de conteúdo de qualidade custa caro.” Seu diagnóstico é o de que ainda demora um pouco para os jornais alcançarem um equilíbrio. (Acesse a íntegra da entrevista feita por email com o Valor [3]).
[3] Além de para o jornal Valor, a reportagem também enviou perguntas por email para a Folha, a revista Trip e a Editora Abril, mas não recebeu resposta. A reportagem também tentou contato com o Estadão, sem sucesso.
O nó maior para a adaptação das empresas jornalísticas às novas fronteiras está na dificuldade de alterar o curso de uma organização que ainda é obrigada a diariamente colocar um produto impresso em circulação e que também é muito boa no que faz. O jornalista e professor de jornalismo on-line Carlos Castilho, colaborador do site Observatório da Imprensa, faz uma reflexão sobre esse impasse. O jornalismo contemporâneo, segundo ele, enfrenta hoje dois tipos de medo: o da perda da segurança de um modelo que há décadas representa uma vantagem competitiva e o medo das incertezas do futuro. “A realidade já demonstrou que o primeiro leva à paralisia, o que pode ser fatal para uma empresa jornalística nos dias de hoje. Medo por medo, talvez a melhor opção seja apostar na mudança”, sugere Castilho.
O sociólogo e comentarista da emissora de rádio CBN Sérgio Abranches concorda. Afinal, o momento é de intensa transformação e adotar uma postura conservadora é a atitude menos apropriada. “É mais arriscado que surfar nas ondas da mudança. Nesses momentos é preciso certa dose de ousadia”, aconselha. Abranches entende que a crise do jornalismo representa um tópico dentro de um processo de transformação que está em curso no mundo. “É algo igual ou maior que o Renascimento.” Portanto, pode levar anos sem que se consiga prever muita coisa sobre o futuro. Mas uma coisa é certa: “Nós estamos presenciando um desmoronamento da atual ordem social-política-econômica”.
Os autores do dossiê do Tow Center também declaram que “a velha ordem caiu por terra”. Dizem, por exemplo, que não há como olhar para organizações como o Facebook e o YouTube e encontrar ali alguma coerência com a antiga ordem industrial. Do mesmo modo como não dá para olhar novas experiências no jornalismo sem fins lucrativos – como o trabalho de Andy Carvin na National Public Radio (NPR), dos Estados Unidos, durante a Primavera Árabe – e acreditar que o jornalismo está seguro em mãos de empresas voltadas para o lucro. E ainda: “Não há como olhar para a cobertura de manifestações de protesto feita com celulares e para experiências de financiamento coletivo de reportagens (Kickstarter)[4] e acreditar que só profissionais e instituições da imprensa podem tornar a informação pública”.
[4] A Kickstarter é a maior plataforma on-line do mundo de crowdfunding – doações coletivas, de indivíduos ou empresas, para financiar projetos. No Brasil, a mais conhecida é a Catarse.
MAIS UM ATOR
Em 2004, o conceituado professor universitário e jornalista americano Philip Meyerc lançou o livro Os Jornais Podem Desaparecer?, em cujas páginas calculou que a edição do último jornal impresso generalista nos Unidos ocorreria em 2043, daqui a exatos 30 anos. Alguns anos depois o escritor reformulou a previsão e admitiu vida mais longeva ao jornal impresso. Mesmo que o meio desapareça, por razões que vão desde o consumo excessivo de papel à dificuldade de distribuição, o jornalismo permanecerá. É no que acredita o jornalista e professor de ciências da comunicação Caio Túlio Costa. “Durante mais de 500 anos a sociedade precisou do jornalista para fazer a mediação entre os fatos e os leitores e continuará fazendo, só que não mais como ator principal. Ele precisa entender que agora é só mais um ator.”
A questão é como sobreviver nessa realidade de incertezas e “vacas magras”. Dias depois das recentes demissões seriais na imprensa brasileira, o jornalista e blogueiro Bruno Torturra denunciou a precarização do trabalho do repórter em um texto, exaustivamente compartilhado entre jornalistas nas redes sociais, intitulado “O ficaralho” – o título é uma releitura para a expressão “passaralho”, que no jargão jornalístico refere-se à lista de demissões (mais na reportagem “Jornalismos possíveis”). O site americano CareerCast.com, embora não preze o rigor cientíco, corrobora o testemunho de Torturra. Recentemente classicou o jornalismo como a pior profissão do mundo, entre 200 outras, levando em conta os seguintes critérios: ambiente de trabalho, salário, nível de estresse, exigência física e condições de contratação.
Em sua coluna dominical no jornal Folha de S.Paulo, a ombudsman Suzana Singer também fez um desabafo na semana dos anúncios das reestruturações de vários veículos sobre o fechamento de vagas no seu próprio jornal. A informação da direção da Folha foi a de que as redações do futuro deverão ser cada vez mais enxutas, assim como o produto impresso. Para a ombudsman, estruturar um jornal menor, mas mais sofisticado para fazer frente às informações gratuitas oferecidas na internet, com uma equipe reduzida e menos experiente, encarregada também de manter um site de notícias 24 horas, é uma fórmula difícil de ser bem-sucedida. E arremata: “Aos que acreditam que o jornalismo de qualidade faz bem à democracia resta torcer para que a travessia (para um novo modelo de negócio) dê certo”.
E torcer também para que o cenário dos EUA não se repita por aqui: de 2007 para cá, as vagas em redações de jornais encolheram 27% e hoje se empregam menos jornalistas do que em 1978. São dados de tirar o sono também de estudantes de jornalismo que, além de ainda não receberem uma formação centrada no empreendedorismo, chegarão ao mercado de trabalho com poucas chances de emprego (leia mais sobre formação de jornalistas). E o que dizer do aprendizado prático? Onde encontrar os jornalistas experientes que nas redações povoadas do século passado complementavam a formação dos novatos, os chamados “focas”?
No fim de junho, Leonardo Sakamoto, professor de jornalismo da PUC-SP e coordenador da ONG Repórter Brasil, promoveu uma palestra para debater com os alunos “o fim do jornalismo”. A proposta era debater alternativas para a profissão fora das grandes redações. Boas reportagens custam caro e conseguir financiá-las fora do domínio das grandes empresas de jornalismo é um caminho desconhecido cheio de senões. “O crowdfunding, por exemplo, é uma possibilidade, mas não dá para fazer toda a semana”, ponderou.
O diretor-executivo da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Guilherme Alpendre, presente ao evento, identificou dois casos bem-sucedidos de jornalismo sem fins lucrativos: o da rádio NPR e o da ProPublica (agência de notícias independente), ambas com sede em Nova York. A NPR, segundo ele, é nanciada por doações do governo dos EUA, dos ouvintes e de fundações. “Consegue angariar cerca de US$ 7 milhões”, destacou. Há caso de fundações que, por exemplo, financiam o funcionamento de toda uma editoria na emissora quando o tema é convergente. “Uma fundação com finalidade de diminuir a diferença entre ricos e pobres – financia a editoria da NPR que cobre desigualdades sociais pelo mundo”, exemplificou Alpendre.
Já a ProPublica, embora aceite publicidade, tem como principal fonte de financiamento a filantropia, em especial um endowment (doação de um montante por uma família), que deve durar em torno de cinco anos.
Leonardo Sakamoto reconhece que será difícil contar com mecenato no Brasil. No entanto, já começaram a surgir alguns projetos independentes. É o caso da Pública, uma agência de reportagem e jornalismo investigativo, criada pela jornalista Natalia Viana, com apoio de um grupo de fundações sem fins lucrativos [5]. As reportagens são publicadas no próprio portal da Pública ou negociadas com publicações de venda em banca (mais em “Prenda-me, se for capaz”).
[5] Climate and Land Use Alliance (Clua), Fundação Carlos Chagas, Fundação Ford e Open Society Foundations.
Outro grupo de jovens jornalistas criou recentemente o movimento Ninja – Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, que prega o “midialivrismo”, um jornalismo de contraponto à tradicional forma como as notícias chegam ao grande público. O grupo tentava mobilizar jornalistas para um debate em que seriam propostos modelos de jornalismo cooperativo na semana que marcou o início das manifestações pelo País. O encontro foi adiado e o grupo Ninja seguiu fazendo cobertura dos protestos pelo canal #PosTV de transmissão de conteúdo on-line, por meio de TwitCasting, um serviço de streaming por rede 3G ou 4G de celular, alcançando enorme visibilidade nas redes sociais (mais em “Jornalismos Possíveis”).
“O bom dessa era é que existe a possibilidade de competição do pequeno com o grande”, afirma Rodrigo Velloso, diretor de conteúdo da plataforma YouTube em San Francisco (EUA) e ex-diretor da Playboy na Editora Abril. “É o outro lado da moeda, o lado vibrante.” Ele cita o bem-sucedido programa de notícias diário SourceFed produzido por uma equipe enxuta de repórteres nos EUA e distribuído no YouTube. Eles financiam o dia a dia com publicidade na própria plataforma e, como produzem conteúdo de qualidade, às vezes se associam a uma rede de TV e compartilham o faturamento.
O estudo do Tow Center diz que o mais importante da fase de adaptação talvez seja mesmo reconhecer que estamos em meio a uma revolução – uma mudança tão grande que a estrutura atual da sociedade não tem como contê-la sem ser alterada por ela. Nesse sentido, quem sabe uma passagem pelo pensamento heideggeriano[6] , que dedica boa dose de esforço à reflexão dos impactos da técnica e da tecnologia na vida humana, guarde uma boa inspiração para este momento.
[6]Relativo ao filósofo alemão Martin Heidegger.
O professor de filosofia da Escola de Comunicações e Artes da USP, Clóvis de Barros Filho, explica que Martin Heidegger trata de dois tipos de razão: a objetiva e a instrumental. A primeira diz respeito ao destino que o homem (indivíduo ou sociedade) quer para si. A segunda, aos meios que vai utilizar para alcançar o destino. “Para Heidegger temos uma imensa capacidade para produzir meios (tecnologia), mas não sabemos bem para quê. Acumulamos os meios, mas não nos ocupamos mais da reflexão sobre para onde queremos ir”, afirma Barros Filho.
Um elemento para essa reflexão, que, aliás, o Tow Center já iniciou, pode ser a discussão do jornalismo enquanto instrumento fundamental à democracia. “A única razão para que tudo isso importe, e não só para quem segue trabalhando no que antigamente chamávamos de indústria jornalística, é que o jornalismo – exposição de fatos que alguém, em algum lugar, não quer ver publicados – é um bem público essencial.” Colaboraram: Amália Safatle, Mônica C. Ribeiro e Thaís Herrero.
Você conhece os instrumentos usados no jornalismo de tempos atrás que ilustram esta reportagem? Leia mais e descubra para que serviam.