[Texto originalmente publicado pelo WWF-Brasil em Código Florestal – Haverá futuro?]
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Oswald de Andrade
Este artigo foi escrito em um 22 de abril, Dia da Terra, e também a data que os livros de História cunhavam como a do Descobrimento do Brasil. Ainda bem que hoje as escolas evitam essa expressão, talvez porque as novas gerações não engoliriam a versão contada pelos “vencedores”.
Versão que é violenta no próprio significado da expressão: “Descobrimento do Brasil”, como se, antes, este não existisse. Como se tivesse ganhado algum sentido e lugar no mundo somente após a usurpação das terras pelo explorador. Como se somente o europeu pudesse dar à luz este território.
Versão violenta também no seu sentido literal: descobrimento. O manto de vegetação foi descoberto para expor a terra nua, sem nenhum consentimento, como um estupro. De ferro, fogo, genocídio indígena e escravidão, vimos a história do País ser escrita, usando a tinta vermelha do pau-brasil.
Esse script sempre foi padrão nos quatro cantos do mundo. O macho branco europeu subjugou povos indígenas, comunidades tradicionais, sociedades autóctones nas Américas, na África, na Oceania, no Oriente Médio. Para isso, valeu-se da força e da técnica engendradas na cultura patriarcal, no sistema mercantilista em expansão e no pensamento cartesiano segundo o qual a natureza, e quem com ela vivia de modo interdependente, eram objetos apartados do sujeito econômico, o protagonista da cena.
Separados sujeito e objeto, estava dado o código para a dominação, em modo binário: o forte sobre o fraco, o vencedor sobre o vencido, o homem sobre a natureza, o patriarcado sobre as mulheres, a metrópole sobre a colônia, o Norte sobre o Sul, o Ocidente sobre o Oriente.
O velho roteiro ainda perdura no século 21 mas, felizmente, é cada vez mais questionado. Quem não viu o filme Martírio, de Vincent Carelli, vá ver. A crítica em geral o enquadra como uma película sobre a causa indígena – o sofrimento e a luta dos guarani-caiová, acossados até hoje pelo avanço do agronegócio sobre suas terras. Mas Martírio é mais que isso: trata-se de uma obra que, no fundo, retrata com maestria o choque de civilizações, culturas, crenças, valores, e conta a história, desta vez, pela ótica dos “vencidos”.
Para tornar mais curta uma história longa, pergunto: quem são os vencidos e os vencedores? Certamente não pode ser chamado de vencedor quem impôs um modelo econômico que vem corroendo as bases de sustentação da vida na Terra, ao tomar a natureza como objeto a ser dominado e ao perseguir um crescimento incessante e a qualquer custo, gerando externalidades ambientais e sociais.
Claro que o pensamento cartesiano foi e continua sendo útil para proporcionar os mais diversos avanços da técnica humana, como nunca antes na história da civilização, trazendo conforto, crescimento, eficiência, aumento da longevidade, inovações tecnológicas incríveis.
Mas é o pensamento complexo, trabalhando a noção de interdependência entre todos os seres vivos e os sistemas biofísicos da Terra, que dará alguma chance de recolocar essa civilização “evoluída” de volta no prumo. E, assim, dará alguma esperança de reverter os largos passos acelerados que a humanidade tem dado na direção do abismo.
Para ter ideia da tragédia que se avizinha, basta ver que a humanidade já cruzou diversas linhas fronteiriças do sistema da Terra: mudança do clima, perda de biodiversidade, acidificação dos oceanos, ciclo do nitrogênio e do fósforo, disponibilidade de água doce, entre outras (saiba mais aqui). O ser humano, portanto, já vive além da esfera da Terra e torna cada vez mais tênue o fio que o liga à sua casa. Só que no espaço sideral este ser desterrado ainda não tem onde morar.
Obviamente, a proposta não é retornar a 1500 ou qualquer outra data de um passado idílico no qual o ser humano, perfeitamente integrado ao ambiente, tinha na natureza tudo de que precisava. A ideia é revisitar sabedorias esquecidas. A proposta da sustentabilidade nada mais é que retomar a noção de interdependência, na qual não existem sujeitos nem objetos, fracos ou fortes; a força está na relação de equilíbrio entre todas as partes. Relação, portanto, é a palavra mágica.
Na era contemporânea – em que aquela visão eurocêntrica dominou o mundo (“o português vestiu o índio”), o mercantilismo evoluiu para um capitalismo globalizado sem precedentes e a crise socioambiental se instaurou de maneira dramática –, que relações é preciso resgatar, em busca de um modelo econômico mais inteligente? Como ligar os pontos do desenvolvimento de modo sistêmico e integrado, e não binário? O movimento pela sustentabilidade, com verdades e perguntas inconvenientes, veio trazer essas provocações.
Discutir a relação
E aí nos aproximamos do mote deste artigo: o Novo Código Florestal, que em maio de 2017 completou cinco anos da entrada em vigor, mas sem que as posições disputadas de forma aguerrida entre ambientalistas e ruralistas, desde os anos 1990, se pacificassem.
Com sua primeira versão criada em 1934, no governo Getúlio Vargas, e substituída no ano de 1965, em plena ditadura militar, o Código nasceu, basicamente, com o objetivo de regulamentar área de floresta nas fazendas (Reserva Legal), a fim de suprir madeira para suas atividades agrícolas e garantir o fornecimento de água por meio de mananciais protegidos. Simples assim.
Mas os ânimos foram se acirrando com o tempo com o despertar da sociedade para as questões socioambientais, como a destruição do verde e a violência contra indígenas e populações tradicionais em ritmo avassalador para dar lugar à produção agropecuária e a grandes projetos de infraestrutura em transporte, mineração e energia elétrica. A noção de que as mudanças no uso no solo impactavam diretamente no microclima local e no sistema climático global tornou a questão ainda mais complexa.
Ao ordenar o uso do território sob o ponto de vista da atividade econômica no campo e da conservação de áreas florestais, o Código representa imensa relevância estratégica para o Brasil, dado que o País simplesmente é potência mundial nos dois assuntos – agronegócio e florestas, com todos os seus serviços ambientais –, e tudo isso em dimensões continentais. Discutir essa relação, portanto, é uma das mais importantes agendas a que toda a sociedade deve atentar, ainda que divida atenções com a também crucial operação Lava Jato, hoje tomando grande parte do noticiário.
Um país cindido ao meio
Observe na figura abaixo como a lei determina ao território brasileiro separar o que é produção do que é conservação. O Novo Código Florestal não inventou essa cisão. Como vimos, ela é histórica e vem no esteio no paradigma do Velho Mundo. Mas o Novo Código veio reforçar a visão cartesiana do antigo ideário: floresta é floresta, plantação é plantação.
Fonte: Guia Prático para Atendimento ao Código Florestal
A questão é isso acontece no momento de uma mudança de pensamento, segundo o qual é necessário construir um modelo cada vez mais integrado de produção sustentável e uso inteligente dos recursos naturais.
O consultor José Carlos Pedreira de Freitas, da Hecta, qualifica essa cisão – reforçada por lei –, de um enorme equívoco conceitual, dado que a revisão do Código era uma oportunidade de ouro para preconizar o uso sustentável dos recursos. Mas, da forma como foi desenhado, o Código acaba concedendo aos fazendeiros uma licença para fazer o que quiser da área produtiva. É como dizer: “Desde que você não mexa aqui nesse pedaço de vegetação, no resto você faz o que bem entender”.
Com isso, os ruralistas sempre brigarão dentro e fora do Congresso para conquistar mais nacos de floresta, e as áreas defendidas pelos ambientalistas serão pressionadas pelo desmatamento e pela perda de sustentação biológica, com aumento das contaminações por agrotóxicos no solo e na água, desequilíbrios climáticos, mudança no regime de chuvas e por aí vai. No fim, todo mundo vai perder. Este ponto, embora visceral na prática do desenvolvimento sustentável, esteve fora da discussão e da definição do Código, e continua fora da sua implementação. “O mais incrível é que eu não ouço ninguém falar disso!”, exaspera-se.
Pedreira tem razões para se exasperar que extrapolam a visão técnica do consultor. Basta conhecer a sua história de vida, que, de certa forma, personifica boa parte da história do agronegócio no Brasil. Agrônomo, ele foi arregimentado na época da ditadura militar para “integrar” o Cerrado e a Amazônia. Na época, a forma que o governo encontrou para sua impor sua política nacionalista era promover a ocupação agrícola, de modo a não “entregar” o território aos estrangeiros. Ele, que tinha sido criado no interior, alienado do movimento de resistência à ditadura que fervia nas grandes cidades, mal sabia onde estava se metendo. A ordem, regada a incentivos e amplos subsídios do governo, era derrubar a floresta para plantar. “Se eu não desmatasse, não recebia o dinheiro para produzir”, conta.
Ele aprendeu rápido e impôs o velho paradigma à plantação de cacau e de seringa na Amazônia. Tirava a madeira de lei para vender e usava os troncos sem valor como pavio para pôr fogo no que restava. Com isso, acreditava-se também que os fungos que atacavam o cacau seriam dizimados. Mas, depois de algumas malárias, muitos prejuízos – não se podia plantar na Amazônia como se fazia no Sul, era preciso entender e respeitar o funcionamento da natureza –, começou a sua virada. Além disso, a relação com os empregados era praticamente de trabalho escravo, pois passavam três meses em barracas de palha na floresta, sem escola, refeitório, nada.
Chegou a defender o “paradigma antigo” na Eco92, representando os empresários da Amazônia. Mas percebeu que o caminho decididamente não era aquele. Passou a estudar a questão ambiental, e reorientou todo o seu pensamento. Hoje, consultor de sustentabilidade para o agronegócio e tendo vivido o outro lado, aprendeu a usar a força do adversário para transformá-lo. Essa história foi contada na reportagem “Por um novo paradigma”, autoria de Flavia Pardini, publicada em abril de 2006 na edição 4 da revista Adiante, que foi precursora da revista Página22.
Pedreira vê na sua experiência pessoal a mesma inflexão que cabe ao agronegócio fazer. Visceralmente ligado ao assunto, é enfático ao defender alternativas que permitam o uso sustentável de todo o território, como um robusto sistema de Pagamento por Serviços Ambientais e a disseminação de técnicas e práticas como a Agricultura de Baixo Carbono e a Integração Lavoura Pecuária Floresta. [Mais sobre baixo carbono nesta reportagem e mais sobre ILPF nesta entrevista.]
Os fazendeiros ligados ao “velho paradigma” sempre poderão dizer que essas novidades não funcionam em larga escala. Que gado é gado, soja é soja. Mas os ganhos de produtividade, combinados a ganhos ambientais, têm se mostrado promissores. E as inovações podem ir muito, muito além.
O case da Native (um antigo cliente de Pedreira) é prova inconteste do quanto é possível avançar não só na integração, como em formas revolucionárias de produzir de modo sustentável em larga escala. Leontino Balbo Jr., maior exportador de açúcar orgânico do mundo, tem desenvolvido o que chama de Agricultura Revitalizadora de Ecossistemas, aprendendo com a natureza como o próprio solo pode prover os insumos necessários para uma alta produtividade, em vez de aditivá-lo de fora para dentro com adubos, e como combater biologicamente as pragas, em vez de envenenar o ambiente com agrotóxicos.
Na fazenda das usinas São Francisco e Santo Antônio, em Sertãozinho (SP), convivem de forma interdependente canaviais, florestas, mananciais, formigas, fungos, bactérias e até animais de grande porte, formando uma cadeia alimentar com biodiversidade espantosamente superior à de áreas protegidas de conservação. [Leia sobre a Agricultura Revitalizadora de Ecossistemas em entrevista com Leontino Balbo Jr.]
É o que temos
Com os defeitos do atual Código, o fato é que este é o único que temos no momento. Depois de aprovado, em 2012, nem ambientalistas nem ruralistas ficaram totalmente satisfeitos com o resultado, mas havia uma certa resignação em seguir a lei e colocá-la em prática por meio do registro das propriedades no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e, em uma segunda etapa, pelo Programa de Regularização Ambiental (PRA), que, grosso modo, funciona como uma espécie de Termo de Ajustamento de Conduta.
Mas, no último ano, uma série de Ações Diretas de Inconstitucionalidade protocoladas no Supremo Tribunal Federal indica que o ponto está longe de ser pacífico, causando uma enorme incerteza jurídica, conforme apontam Annelise Vendramini e Paula Peirão, do programa de Finanças Sustentáveis do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces).
Diante da indefinição, o produtor evita fazer o PRA agora, à espera de definições de um Supremo cuja agenda está dominada pela Lava Jato. Isso leva o desmatador a continuar desmatando, até mesmo para garantir sua área “limpa” para produção, enquanto o imbróglio não se desfaz.
Sem regras claras para a regularização, o setor produtivo fica exposto a riscos de compliance (ou seja, de conformidade com a lei) e, com isso o setor financeiro, que teria grande papel em financiar a produção legal e até mesmo as bases de uma economia florestal sustentável, acaba se retraindo. Neste cenário, quem sai ganhando é o desmatador ilegal. E as exportações brasileiras perdem cacife, pois ficam associadas no mercado internacional a produção fora da lei e se tornam alvo fácil de barreiras não-tarifárias.
“O Novo Código Florestal não tem uma racionalidade, uma inteligência profunda. Por exemplo: não promove um mapeamento das áreas prioritárias para conservação, mais ricas biologicamente, e das áreas não prioritárias, que poderiam ser mais usadas para a produção”, avalia Luís Fernando Laranja, sócio da Kaeté Investimentos. “Mas como fazer o plano perfeito, especialmente diante das dimensões territoriais do Brasil? Ou se engessa um pouco e peca pela qualidade, determinando uma regra padrão para todas as propriedades, ou não se consegue controlar nada”, diz. A Kaeté é uma empresa de private equity que investe em projetos de uso mais sustentável dos recursos naturais, capazes de gerar impactos positivos para comunidades de baixa renda.
Agro é pop?
Na mídia, o que se tem visto é novamente uma artilharia de visões divergentes sobre o agronegócio, em vez de explorar os pontos de convergência entre produção e conservação – que é justamente a proposta do desenvolvimento sustentável. [Leia reportagem publicada em 2009 sobre possíveis pontos de convergência entre ruralistas e ambientalistas.]
Essa pressão faz parte de um contexto mais amplo de recrudescimento de forças conservadoras no País, que nos últimos anos têm buscado minar as salvaguardas ambientais, seja no Código Florestal, seja por meio da flexibilização do licenciamento e da fragmentação de áreas protegidas.
É bem representativa a cena do filme Martírio, que documentou a senadora Kátia Abreu discursando nestes termos: “Nós já tivemos um dia o MST, depois nós tivemos o Código Florestal e, agora, a questão indígena. Não queremos medalha pelo PIB, não queremos subir no pódio pelo PIB, nós queremos paz”. O filme denuncia justamente a violência cometida por forças produtivas contra os índios.
Com o aprofundamento da crise econômica, essas forças conservadoras ganharam mais cacife, orgulhosas do fato de que o agronegócio tem impedido uma recessão ainda mais grave, levando o País nas costas.
Mas, enquanto não houver um entendimento por parte dos ruralistas de que a conservação do ambiente joga a favor da produtividade agrícola, as forças em disputa causarão perdas para ambos os lados e para toda a sociedade.
“Este é um momento extremamente delicado, é preciso saber lidar com as diferenças ideológicas e trabalhar junto”, defende Paula Peirão, do GVces. Annelise Vendramini lembra que não existe solução simples: além do fim das incertezas jurídicas, são necessários o efetivo comando e controle para cumprimento da lei e uma matriz de incentivo para o desenvolvimento da economia florestal. Economia esta que aproveite as oportunidades em madeira legal; produtos florestais, como castanha; e remuneração por serviços ambientais – a contribuição da floresta para água, clima, proteção do solo e biodiversidade.
Segundo o programa de Finanças Sustentáveis do GVces, as instituições financeiras estão muito interessadas em trabalhar com recomposição vegetal e áreas de conservação, pois sabem que existe um enorme passivo ao passo que não haverá dinheiro público para investir no fortalecimento do capital natural brasileiro. Mas o setor financeiro, que pode ser uma poderosa alavanca em favor da conservação, precisa de segurança no marco legal para investir.
Enquanto isso, mais iniciativas empresariais caminham no sentido da produção integrada com a conservação. Uma dessas experiências é da Kaeté, de Luís Laranja, que está investindo em criação de peixes, de suínos e de aves em plena Floresta Amazônia. “Estou convencido de que criar galinha e porco na floresta faz todo sentido”, diz.
Este não é o senso comum, mas Laranja explica os benefícios para a produção, para a floresta, para o clima. Feita de forma intensiva, a produção ocupa áreas muito pequenas da propriedade rural, mas com alto valor agregado, pois aplica técnicas sofisticadas que aumentam a competitividade do negócio familiar.
Ao obter mais renda, o produtor não precisa mais desmatar as bordas da floresta, que geralmente seria aberta para a pecuária extensiva ou para plantar mandioca. “Em área irrisória, a renda saiu de 400/mês para 2 mil reais/mês. Este ano, vamos começar a segunda agenda: restaurar a floresta com esses criadores de galinha e de porco. Vamos fazer um business com restauração florestal, introduzindo culturas como açaí, cacau e coco no restante de sua propriedade”, conta Laranja.
O ganho climático deve-se ao fato de que a produção das carnes atende ao consumo local, reduzindo a pegada de carbono. O consumidor de Rio Branco, por exemplo, não precisará mais comprar a galinha que vem do Sul. “Metade dessa galinha é carbono do diesel do caminhão utilizado no transporte”. O próximo passo é vender para a população andina, que possui o hábito de comer carne suína – hoje fornecida basicamente pelos Estados Unidos.
A mídia tem o papel de disseminar casos como esse, para que deixem de ser pontuais e inspirem políticas públicas guiadas pela visão de que conservar e produzir são faces de uma rentável moeda, mas exigem um esforço de conciliação. Este é um descobrimento que ainda falta ao Brasil como um todo.