A conexão entre as duas convenções pode abrir os caminhos para uma equiparação em termos de importância e efetividade de ações. O Brasil é tido como o mais apto a promover essa convergência. Mas, para que isso se efetive e atraia financiamento, o País precisa quantificar seus ativos ambientais de modo a qualificá-los e torná-los ativos econômicos
Por Magali Cabral
Se do chão não se consegue enxergar os rios voadores que sobem ao céus amazônicos para desaguar em forma de chuva na região centro-sul do País, o espetáculo de dança desenhado pela coreógrafa e bailarina Rosa Antuña, que pode ser apreciado aqui, torna essa experiência possível por meio da arte. A performance do grupo Corpo de Dança do Amazonas foi fonte de sensibilização para os mais de 100 participantes da última plenária de 2022 de Uma Concertação pela Amazônia, realizada no dia 12 de dezembro.
O encontro virtual aproveitou a presença de membros da rede na 15a Conferência das Partes (COP 15) da Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade Biológica (CDB), em Montreal, no Canadá, para comentar o andamento das negociações e debater sobre as perspectivas de implementação de uma agenda integrada entre clima e biodiversidade. A plenária também ofereceu aos participantes uma retrospectiva do ano (ver quadro), cujo ponto forte foi o lançamento do documento 100 Primeiros Dias de Governo: propostas para uma agenda integrada das Amazônias, entregue ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, na ocasião da Conferência da ONU sobre Mudança Climática (COP 27), em novembro, no Egito.
O tema da biodiversidade figura entre os mais intrincados no contexto ambiental. Envolve, por exemplo, diferentes conceitos de conservação, que pode ser absoluta – sem a presença humana – ou não. Abarca questões como compartilhamento justo dos recursos naturais, tecnologia de sequenciamento genético digital de espécies vegetais e animais, restauração de paisagens, além de forte pressão financeira. Dada a complexidade dessas discussões, a tendência é ficarem restritas a especialistas.
Por isso, um dos papéis da Concertação, segundo seu cofundador e presidente do Conselho do Instituto Arapyaú, Roberto S. Waack, é justamente furar a bolha e aproximar essa agenda da sociedade civil, empresariado e mundo financeiro. Mediador do debate e entusiasta da ideia de conexão entre as convenções de clima e biodiversidade em âmbito global, ele crê que a iniciativa abriria os caminhos para uma equiparação dos assuntos em termos de importância e efetividade de ações.
Para o debatedor, Bernardo Strassburg, CEO da re.green, empresa de restauração em larga escala de florestas tropicais, o Brasil é o país mais relevante na intersecção dos temas do clima e da biodiversidade, principalmente a partir da perspectiva de voltar a ter uma presença ativa de governo nas discussões ambientais.
“É a oportunidade de o País se tornar o centro de gravidade dessa discussão, de ser o ‘G1 do mundo’ em biodiversidade”, diz Strassburg, fazendo referência ao grupo de países com as maiores economias do mundo.
Strassburg avalia que, de três anos para cá, passou-se a ter uma presença mais expressiva do setor privado nas convenções de clima, que começam a estar mais presentes também em eventos de biodiversidade. “Quinze anos atrás, víamos a presença apenas do setor acadêmico, sempre tentando empurrar os governos para o tema, e um setor privado ausente ou tentando empurrar a barra para baixo”, recorda.
O porquê dessa demora em cativar a sociedade para um debate tão importante quanto a biodiversidade pode estar na explicação do chefe do Departamento de Meio Ambiente e Gestão de Meio Ambiente do Fundo Amazônia do BNDES, Nabil Kadri. A Conferência de Montreal, segundo descreve, discute questões distintas dentro de três grandes objetivos. Um primeiro bloco está voltado ao tema da conservação de biomas. O segundo está relacionado ao uso sustentável e à repartição de benefícios, que traz uma carga relevante de metodologias e tecnologias, por exemplo, o sequenciamento genético digital. E, por fim, há a questão de soluções e implementações, que envolvem financiamento.
“Esses três grandes blocos e as 20 metas que estão em discussão não são nada triviais. Por isso, não conseguem ser traduzidos de maneira tão rápida quanto os temas da agenda climática”, afirma Kadri. Quando se fala em mitigação, já existe toda uma tecnologia para transformar gás metano em CO2 equivalente (cálculo que permite uma equivalência quantitativa de todos os gases de efeito estufa, caso do metano, com o dióxido de carbono, ou CO2). O mesmo vale para a mensuração de pegada de carbono. Na opinião de Kadri, por estarem em momentos distintos de maturidade dos instrumentos e reflexões metodológicas, é preciso cuidado na aproximação das duas convenções.
A ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, fellow sênior do Arapyaú e integrante do Grupo de Trabalho (GT) de Meio Ambiente do Gabinete de Transição do governo eleito, concorda e vai além. Para ela, outro desafio está no fato de o tema climático ser um drive muito mais poderoso, portanto, com tendência a se sobrepor à biodiversidade nesse “casamento”. Prova disso é o clima ter conseguido extravasar do próprio Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Por outro lado, a ex-ministra crê que, se há um país capaz de propor um novo caminho para a convergência entre as duas convenções, este país é o Brasil. “É parte da nossa ousadia, enquanto ator político internacional, querer trazer os dois assuntos juntos”. Mas, se o Brasil quiser de fato partir por esse caminho, tem uma lista de deveres de casa nada fáceis. Por exemplo, quantificar seus ativos ambientais de modo a qualificá-los e torná-los ativos econômicos. “É o que atrairá o financiamento”, atesta Teixeira.
A diretora de Políticas Públicas e Relações Governamentais da TNC Brasil, Karen Oliveira, trouxe para o debate a sua preocupação com o tema da conservação, que compõe um dos blocos de discussão em Montreal. O andamento da questão dos direitos dos povos indígenas e das comunidades locais é o ponto nevrálgico da Conferência, em sua opinião. “Estamos observando que talvez a negociação fique presa à meta 3, que trata do 30X30, e mencione a questão dos direitos apenas no preâmbulo da introdução do novo acordo [O termo 30X30 diz respeito ao objetivo de converter 30% do planeta em áreas protegidas até 2030]. Nós advogamos que a menção ao tema dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais esteja presente em todas as metas”, diz.
Como pagar a conta
Outra questão que suscita muitas discussões e divergências na COP 15 diz respeito ao financiamento dos objetivos. Trata-se de uma agenda muito mais dispendiosa que a agenda climática, no sentido stricto sensu, de acordo com Nabil Kadri. Para ele, os bancos públicos e privados, bem como o BID e o Banco Mundial, têm trazido ao debate questões nessa linha. “O exemplo básico é que, se reduzirmos a discussão para uma restauração com pouca diversidade, não custará caro. Já no caso de recompor uma paisagem com toda a sua complexidade e todo um tempo de maturação necessário, é muito mais trabalhoso e demanda muito mais recursos”, explica.
Para o chefe do Departamento de Meio Ambiente do BNDES, há uma certa relutância em se reconhecer essa necessidade de recursos mais significativos do que, por exemplo, uma transição energética. “É preciso que os agentes financeiros reconheçam que é, sim, necessária a mobilização de volumes muito mais significativos de recursos”.
Kadri lembra que as soluções da biodiversidade trazem, por exemplo, um fator social e cultural muito presente. Quando se pensa em paisagem e biomas, isso significa presença humana e, consequentemente, cultural, em interação com o ambiente. “Isso quer dizer que pode haver necessidade de reparações do ponto de vista do dano, quando ocorre, e da própria conservação com qualidade de vida, com melhoria das condições das pessoas que vivem no bioma”. Questões como essas representam alto custo financeiro.
Mas, na visão dele, também há consenso nos debates sobre financiamento. O principal deles é que os recursos precisam ser canalizados e executados de maneira mais simples e com menos amarração burocrática, como visto em alguns fundos globais. “Até porque – diz Kadri – estamos perdendo a biodiversidade hoje, presenciamos uma situação de insegurança alimentar. Não podemos esperar quatro ou cinco anos para liberar recursos, como em geral acontece”.
Para o agente do BNDES parece existir ainda um culto ao processo e ao fluxo. “É preciso dar uma roupagem mais leve e menos demandante ao financiamento”. Segundo ele, esse é um tema que vai e volta, talvez devido à agenda de construção de um novo Bretton Woods (sistema de regulação da política econômica internacional criado na cidade de Bretton Woods, estado de New Hampshire, nos Estados Unidos, sede da Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, em 1944, que contou com participação de 44 países, inclusive o Brasil).
A percepção de Karen Oliveira é de que o Brasil tem pressionado muito essa questão do financiamento durante as negociações de Montreal e espera-se, com isso, que o assunto evolua de forma mais proativa. “É um ponto-chave no avanço das negociações”, diz.
Como parte da iniciativa de sensibilização por meio da arte dos temas concretos trazidos na Concertação, enquanto corria o debate sobre a COP da Biodiversidade, o artista plástico amazonense, Raiz Campos, desenhava em grafite os frutos de guaraná que tão bem representam a diversidade amazônica.
O grafite foi aplicado sobre uma esteira indígena de fibras de arumã (espécie de cana), trançada por artesãos da etnia Baré. “Juntei as duas coisas que eu mais amo, o grafite e a arte indígena”, explica o artista plástico. A opção pela imagem do guaraná vem dos mistérios que a fruta carrega e que tantas lendas gerou. “Os murais que eu pinto trazem neles a força do guaraná. É o que me dá energia para trabalhar durante as madrugadas manauenses”, conta.
Para Fernanda Rennó, consultora do Instituto Arapyaú à frente dos GTs de Educação e Cultura da Concertação, o guaraná, além de sua carga simbólica e de ser parte da biodiversidade Amazônica, significa energia: “vamos precisar de muita para plantar as sementes que produzimos para 2023”.
O ANO QUE AINDA NÃO TERMINOU
Este ano, os 28 milhões de pessoas que vivem na Amazônia Legal viram mais de perto o que o resto do mundo também viu de longe: o acumulado de alertas de desmatamento da floresta bateu a pior marca da série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), quando faltavam ainda dois meses para a chegada de 2023. Sem contar as máculas deixadas pelo garimpo ilegal em solos e rios indígenas. Neste contexto desafiador, a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia se propôs a construir um plano integrado de desenvolvimento para o território, que traga como resultado o combate ao desmatamento, mas que garanta também prosperidade e qualidade de vida aos povos das florestas.
O documento 100 primeiros dias de governo: propostas para uma agenda integrada das Amazônias, elaborado de forma coletiva, sob coordenação da Concertação, foi lançado no Brasil em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo e com a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps). O evento, titulado de “Amazônia é Solução” ultrapassou 50 mil pessoas na audiência. Na arena internacional, o lançamento ocorreu durante a COP 27, onde o documento foi entregue a figuras-chave da política nacional e internacional.
Segundo a secretária-executiva da Concertação, Renata Piazzon, os eventos de lançamento em território nacional renderam mais de 200 inserções na imprensa. Na COP, foram mais 133 inserções e outras 105 trataram do documento em si. “A parceria com Estadão promoveu 11 milhões de impactos”, contabiliza Piazzon.
Atualmente, Piazzon e Izabella Teixeira integram o Grupo de Trabalho de Meio Ambiente do Gabinete de Transição do governo federal eleito, no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) em Brasília. Elas levaram quatro novas propostas complementares para serem acrescidas às 14 que compunham o documento original dos 100 Dias. São elas: instituir um Grupo de Trabalho para avaliar e propor a criação do Instituto de Tecnologia da Amazônia; transformar o Serviço Florestal Brasileiro em autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente; restituir os espaços de participação social no Conama; e autorizar concurso para o Ibama e o ICMBio.
“Queremos a partir do ano que vem ampliar esse trabalho de advocacy e consolidar o posicionamento da Concertação como um espaço que constrói em rede, numa articulação com diferentes atores, propostas voltadas para o desenvolvimento da Amazônia”, projeta Piazzon.