Literatura foi o principal tema do segundo webinar da série Notas Amazônicas, promovida pela rede Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com a Página22. O evento procurou entender o papel da cultura e das artes na construção de imaginários amazônicos e até que ponto isso se conecta com o desenvolvimento da região
Por Magali Cabral
A palavra falada ou escrita sempre acha um jeito de tocar as pessoas e, ao tocá-las, provoca sensações e alimenta imaginações sobre realidades muitas vezes distantes e desconhecidas. Uma boa parte da população brasileira, por exemplo, nunca visitou a Região Amazônica, mas ouve ou lê histórias sobre esse imenso território e cultiva um imaginário que pode – ou não – se parecer com as múltiplas realidades locais. Essas percepções despertadas pela literatura, pela poesia e até pela música teriam um papel a desempenhar no movimento por um desenvolvimento sustentável da Amazônia, que conserve as suas características naturais e culturais?
Para tentar responder esse questionamento, a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com Página22, Livraria Travessia e Editora Fósforo, promoveu em 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, o segundo webinar da série Notas Amazônicas, intitulado Ver de dentro, ver de fora, com ênfase em literatura.
Foram convidados três escritores de estilos literários distintos, mas com histórias narradas na região Norte – duas amazônidas, a paraense Monique Malcher e a poeta amazonense Rayane Lacerda, e o paulista José Henrique Bertoluci. O livreiro Rafael Lutty, gerente e coordenador de curadoria na Livraria Travessia, em Belém, no Pará, conduziu o debate, aberto ao som de Minha Aldeia, uma composição musical do acreano Sergio Souto, em parceria com Almir do Amaral Maia.
“Quando se discute a Amazônia, o mais comum é abordar a parte física da região, seu bioma e sua biodiversidade. As letras trazem o tecido social para a pauta do desenvolvimento sustentável e nos ajudam a pensar na diversidade social e cultural da Amazônia”, explica a secretária executiva da Concertação, Fernanda Rennó que, juntamente com a também secretária executiva Lívia Pagotto, apresentaram o evento.
“Entrava no barco, como se entrasse na vida das mulheres da minha família. Mergulhava fundo na encantaria. As embarcações eram lugar estranho e ao mesmo tempo meu território”. Esse trecho do livro de contos de Monique Malcher Flor de Gume (Ed. Jandaíra), ganhador do prêmio Jabuti 2021 na categoria contos, dá uma pista de que a Amazônia é o espaço geográfico onde se desenrolam suas histórias sobre três gerações de mulheres ribeirinhas de sua família.
Por ter nascido em Santarém, no interior do Pará, e por ser mulher, Malcher carregou por muito tempo a certeza de que seus escritos nunca seriam muito lidos. Hoje, ela comemora o engano: “Essa certeza me enganou por algum tempo, muito provavelmente porque não via outras pessoas do meu lugar serem publicadas. Escritora era uma palavra que parecia não caber em mim, muito pela minha vivência no Norte”, afirma.
Ironicamente, foi por ter conseguido expor tão bem a sua ancestralidade amazônica feminina, que Flor de Gume não acumula poeira nas prateleiras das livrarias. Para escrever, a autora explica que busca os “sons” nortistas da sua infância porque é sua intenção transportar o imaginário dos leitores para aquele lugar de natureza e também de urbanidade. Escolher falar da sua vivência na Amazônia lhe rendeu a classificação de “escritora regional”, o que a incomoda em certa medida.
“Sou dividida em duas moniques: uma olha para a criação [Flor de Gume] e gosta de ver ali uma história local, e outra que se incomoda porque o sentido da titulação ‘escritora regional’ soa como algo que aparta e exclui daquilo que é brasileiro, que é mundial”. Na ausência de um debate mais aprofundado sobre o conceito de regionalismo, Malcher prefere classificar sua literatura como política e brinca: “Não tenho um facão na mão, mas trago comigo as palavras”.
Já a jovem poeta e slamer Rayane Lacerda carrega forte e deliberadamente seus versos de regionalismo. É uma espécie de resposta à xenofobia que, para ela, persiste em relação aos povos do Norte e do Nordeste. Assim como Malcher, Lacerda demorou a acreditar que seria reconhecida como escritora poeta. O movimento Slam, festival mundial de declamação de poesia em espaços públicos, foi a sua grande porta de entrada no universo literário, bem como a de tantos outros poetas, em sua maioria periféricos, que não conseguem romper facilmente o crivo das editoras de livros.
Até o Slam chegar ao Amazonas, Rayane Lacerda se considerava uma poeta anônima, embora tivesse publicado o poema O Estupro de Josefina, na revista local Sirrose, e ter visto o seu poema A Filha do Vento ocupando páginas de uma coletânea de poetisas amazonenses.
“Desde o primeiro momento em que assumi a escrita poética, decidi levar comigo não só o regionalismo, mas a minha vivência enquanto mulher, mãe de três filhos e estudante do curso de Ciências Sociais, com matrícula trancada na Universidade Federal do Amazonas por necessidade de conciliar maternidade e trabalho”.
Essa carga materna, somada ao acúmulo de atividades diárias, é extravasada para a ponta de sua caneta, ou para a ponta da língua quando nos palcos do Slam Amazonas: “Sou ribeirinha mesmo/Filha de dona Maria Indígena Coariense/Com imigrante mato-grossense/Sou fruto da miscigenação/Me chame de Filha do Vento/Deixe que eu me apresente”.
Enquanto a literatura de Malcher e os poemas de Lacerda veem a Amazônia de dentro, a literatura de Bortoluci, em seu livro de estreia O que é meu (Ed. Fósforo, 2023), é fruto de seu próprio imaginário, construído quando era ainda criança e vivia no interior de São Paulo. “As primeiras memórias que tenho da Floresta Amazônica, dos seus rios e estradas, de indígenas e ribeirinhos, vêm das histórias contadas por meu pai [caminhoneiro]. Narrativas de suas viagens pela região ajudaram a compor meu vocabulário infantil, minha geografia sentimental, a mitologia de um país que parecia infinito”, conta.
O escritor explica que seu livro é narrado por alguém que observa de fora e que se importa, pois existe um interesse humano e cultural por essa região tão fundamental para o País e para a humanidade. Seu pai, por sua vez, também vivenciou a Amazônia como uma pessoa de fora. Ele estudou apenas até a quarta série (atual Ensino Fundamental) e aventurou-se como caminhoneiro em um momento em que a ditadura militar iniciava um processo de expansão das estradas, gerando enormes problemas que persistem até hoje.
Seu pai transportava material para a construção de rodovias, como a Transamazônica, ou levava carga para outras obras de infraestrutura da região. Para Bortoluci, essa expansão promovida pelos governos militares criou cascatas de violência e muito menos desenvolvimento para a região do que se poderia esperar. “Em vários aspectos, gerou subdesenvolvimento”, afirma.
Ver de dentro, ver de fora
Provocados a extrapolar o tema da literatura e abordar seus imaginários de futuro, os convidados do webinar e o mediador falaram do desenvolvimento que gostariam de ver chegar à Amazônia. O livreiro Rafael Lutty destaca a importância de se pensar na criação de um processo de escuta das pessoas comuns do território. Em sua opinião, já existe muita gente de fora estudando e pesquisando a Amazônia, mas as pessoas que vivem e constroem o território não estão sendo ouvidas como deveriam.
Lutty entende a dificuldade em conseguir sensibilizar um cidadão amazônida, que tem um cotidiano para gerir, a respeito de temas complexos como a multiplicidade de identidades amazônidas ou a sustentabilidade.
Segundo ele, essa pessoa que, como ele, acorda cedo, pega ônibus desde a periferia até o centro de Belém para trabalhar o dia inteiro, provavelmente não faz esse percurso pensando em como poderia contribuir para o desenvolvimento sustentável da região. Mas com certeza ela gostaria de viver em uma cidade mais bem estruturada que facilitasse o seu dia a dia. “É preciso muita sensibilidade para conduzir essa conversa com os que vivem dentro. Não podemos continuar sendo invisibilizados”, contesta Lutty.
Antes de falar sobre o futuro que se quer para a Amazônia, Bortoluci sugere fazer o luto da palavra “desenvolvimento” que, em grande medida, na sua versão tradicional, foi um instrumento de destruição das florestas, de construção de cidades desiguais, de violência contra os povos tradicionais.
“Pensar desenvolvimento hoje é sobretudo pensar em descolonizar, para usar um termo do momento. Descolonizar a própria concepção de desenvolvimento para pensá-lo a partir de conceitos que coloquem a Amazônia no centro de um projeto de país”, afirma o autor.
A seu ver, não resta dúvida de que a Amazônia é a maior riqueza brasileira, não só por sua rica floresta e biodiversidade que precisam de proteção, mas também por toda a cultura que abriga, tanto a urbana quanto a dos povos indígenas e das populações tradicionais. Por tudo isso, Bortoluci imagina um futuro que faça jus a essa riqueza e justiça às violências cometidas ali em nome do desenvolvimento.
Para Monique Malcher, é impossível dissociar o trabalho literário do futuro que se quer ali. No futuro imaginário, as escolas ribeirinhas estão bem equipadas com móveis e material didático e os professores são bem remunerados. Na vida real, as políticas públicas não navegam rio adentro até as escolas. Mas as palavras, sim. “A palavra sempre dá um jeito. Passa por debaixo da porta”, diz Malcher, ela mesma uma fornecedora de livros para escolas públicas de Santarém.
O futuro que se quer para a Amazônia pode estar dito na literatura – livros, poesias faladas, zines, histórias contadas por gente de dentro ou por gente de fora: “Essas palavras em geral trazem um componente político e identitário, mas também mostram o nosso jeito de ser feliz nesses espaços”, conclui a escritora.
Acesse também o primeiro webinar da série Notas Amazônicas, sobre inovação, e leia a reportagem.