As pessoas seguiam compungidas, e logo todos cantavam com as irmãs. Como um funeral, nesse dia de rito sagrado, a atitude diante da boa morte era contida, de devoção e contrição. Estamos em um momento inicial absolutamente sagrado da festa. A celebração da morte, o canto, para alguns esperançoso, podia indicar a passagem e o descanso da alma
Por Antônio Reis Junior*
Dia 2: Domingo, 13 de agosto, Maragogipe, Bahia
Planejando o retorno a Cachoeira antes do início da Festa da Boa Morte, contratamos um guia quilombola morador da vila São Francisco do Paraguaçu, localizada às margens do rio, e partimos em um pequeno barco do terminal hidroviário de Maragogipe, cidade vizinha. A ameaça de uma tempestade escureceu a manhã do domingo e colocou sob suspeita a partida. Convencidos pelo guia e o barqueiro e com as nuvens levadas longe pelo vento, zarpamos do píer. Navegando pelo Paraguaçu, alcançamos, em cerca de uma hora, as ruínas do Convento Santo Antônio do Paraguaçu, uma monumental edificação construída por franciscanos no século XVIII, um antigo noviciado.
A presença da edificação de paredes grossas de arenito desgastadas pelo tempo, marca o aparecimento das ordens religiosas católicas em lugares isolados e imprevisíveis no vasto território. Foram instituições como essa que difundiram o catolicismo na Bahia, depois praticado pelas irmandades negras como a Boa Morte, a do Rosário, entre outras.
Do convento, onde foi utilizado largamente o trabalho escravo, caminhamos até a vila de São Francisco do Paraguaçu, uma comunidade remanescente de quilombo. Lá, depois de longo processo de luta, a comunidade está agora na iminência de receber a titulação definitiva de suas terras, sempre em perigosa peleja com os grandes proprietários locais. Isso, contado por Rabicó, a liderança da comunidade, que nos recebeu para uma conversa após o almoço de moqueca de camarão com delicioso pirão e farofa.
Curiosamente, essas duas visitas – ao convento a ao quilombo – trazem os dois elementos fundamentais para pensar a formação de uma irmandade negra: o catolicismo e a conquista da liberdade entre africanos escravizados.
Ou seja, a partir da conversão de africanos ao catolicismo, sobretudo entre alforriados, é que se deu a criação dessas confrarias leigas de devoção a um santo, e que se tornaram muito populares no Brasil – ao mesmo tempo em que seguiram com suas raízes africanas e sua ancestralidade, praticando os cultos que originaram o candomblé. Até onde puder apurar, as irmãs têm sua origem identitária nas religiões de matriz africana, são ialorixás e nascidas em terreiros de Salvador e do Recôncavo.
No meio da tarde, voltamos a Cachoeira para irmos à festa marcada às seis horas. Antes, jantamos uma maniçoba, preparada e oferecida por muitos restaurantes. Chegamos à sede da irmandade, um belo sobrado com fachada de cor rosa claro com seis portas e janelas. Na parte de trás, no largo D’Ajuda, três portas e janelas pintadas com um vermelho vibrante.
Conversando na calçada com os chegantes, uma irmã me contou sobre o peditório. Trata-se da prática de circular pela cidade nas semanas anteriores à festa, com uma sacola vermelha a tiracolo com o símbolo da irmandade estampado, para recebimento de doações. Assim, caminhando pelas ruas, com seus vestidos rendados, brancos, vermelhos e pretos, o pano da costa sobre o ombro, os colares de búzios, contas e pérolas, e outros balangandãs, pedem uma contribuição financeira a todos. E, desta maneira, a comunidade colabora na realização da festa.
Enfim, chegou a hora!
A festa se inicia com o translado da imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, que sai de sua sede e se dirige à Capela D’Ajuda, onde ocorre uma rápida celebração. O povo se aglomera na rua, quer sentir, ver de perto, integrar o cortejo. Muita emoção com a aparição da santa.
Salve Nossa Senhora! Vozes e cantos se ouvem, e ela vem deitada no andor carregado por quatro homens com o acompanhamento das irmãs que avançam em uma coluna sobre a rua, portando longos castiçais de velas grossas.
Segui a procissão que homenageava as irmãs falecidas, e evocava a memória daquelas que dedicaram sua vida à irmandade.
“Com a sua proteção, senhora da Boa Morte, abençoe essa missão, virgem mãe, senhora nossa”
O cortejo noturno me provocou uma postura reverente, silenciosa. As pessoas seguiam compungidas, e logo todos cantavam com as irmãs. Como um funeral, nesse dia de rito sagrado, a atitude diante da boa morte era contida, de devoção e contrição. Estamos em um momento inicial absolutamente sagrado da festa. A celebração da morte, o canto, para alguns esperançoso, podia indicar a passagem e o descanso da alma.
Por volta das oito horas, as irmãs entraram na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte para participar de uma missa de Réquiem pelas irmãs falecidas. O povo não coube na capela. Acompanhei da rua, observando através das portas abertas a realização da missa.
Desta maneira, encerrou-se o primeiro dia da festa. Por ora, são as homenagens fúnebres que imperam. O canto, a reza, a comoção. O cortejo da procissão. Outras de caráter mais festivo e profano são anunciadas para os próximos dias.
Assim, voltei com o corpo cansado da jornada do dia sob um chuvisco que deixava ainda mais fresca a noite do inverno baiano, caminhando no calçamento de pedras molhadas que refletem a luz amarela dos postes da rua, e voltei para a casa onde me hospedei.
Muito estava por vir ainda.
*Antônio Reis Junior é historiador e professor
(Acesse aqui o primeiro dia e o terceiro)