Muito diferente das procissões noturnas com sua marcha fúnebre e o enterro simbólico de Nossa Senhora do começo da festa, o cortejo sai alegre e a orquestra filarmônica toca em ritmo carnavalesco. Não se trata mais de um funeral
Por Antônio Reis Junior*
Dia 4: Terça feira, 15 de agosto de 2023
Acordei bem cedo nessa manhã chuvosa do Recôncavo e observei através da varanda-mirante do meu quarto a cidade despertar com a alvorada festiva e seu foguetório montado no Largo D’Ajuda. No café da manhã, a notícia inusitada: o Nordeste está sofrendo um apagão em todos os estados! Na verdade, quase todo o Brasil está fora do ar, sem energia. Espero que não atrapalhasse as festividades.
Desço o morro com passos cuidadosos na íngreme ladeira ainda com orvalho e entrei na cidade, mais uma vez, pelo largo da Casa de Câmara e Cadeia, atual Câmara Municipal, onde há uma exposição com o panteão dos orixás, lindamente paramentados, no espaço da antiga cadeia.
A alvorada começa às seis horas, anunciando – para esse dia dedicado a assunção da virgem, sua elevação aos céus – uma mudança nos festejos, agora mais profanos, onde se come e bebe com samba de roda.
Aparentemente, a parte mais sagrada da festa ficou concentrada nos primeiros dias que evocavam a “dormição” da Virgem, as cerimônias fúnebres. E o que se revela nesse momento é que na Festa da Boa Morte os ritos sagrados e festejos profanos se misturam e se alternam. Hoje, vamos celebrar a vida e deixar para trás aquela postura compungida e os gestos contidos nas missas e procissões noturnas. Agora, ao que parece, a alegria poderá se manifestar mais livremente, como um insumo para comemorar a vida, a sua renovação. São as primeiras impressões do dia.
Cachoeira é uma cidade em que os conventos, as capelas e as torres das igrejas marcam a paisagem, ao mesmo tempo em que os batuques dos terreiros nos morros que reverberam nas ruas mostram que o catolicismo e o candomblé, em um movimento sincrético em alguns casos, não têm limites muito definidos, tudo parece estar presente o tempo todo. Sobretudo durante a festa, nos corpos, gestos, cantos e balangandãs das mulheres negras da irmandade.
Às 10 horas da manhã, tem início a missa na Igreja da Matriz do Rosário, com a presença da prefeita de Cachoeira e do governador do Estado, que há pouco pousou de helicóptero no estádio municipal. Trata-se da solenidade de assunção da virgem. O povo lota a igreja no ambiente incensado pelo padre e acompanha emocionado a liturgia.
Permaneço na porta da igreja, espremido entre os presentes. Ao final da missa, o andor é erguido. Júbilo! Aplausos! Salve Nossa Senhora da Glória! Até então deitada, agora a santa está de pé, vivíssima, com os braços estendidos à frente, altiva. E se prepara para sair as ruas.
Quem é ateu e viu milagres como eu, sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar... como não lembrar de Caetano no Recôncavo?
Muito diferente das procissões noturnas com sua marcha fúnebre e o enterro simbólico de Nossa Senhora do começo da festa, a procissão agora sai alegre e a orquestra filarmônica toca num ritmo carnavalesco. Não se trata mais de um funeral.
Parece possível ouvir na festa o grito de liberdade dos escravizados evocando a abolição, o desejo de uma morte sem martírio, uma boa passagem para o Orum, momento cuidadosamente preparado pelo Axexê, a cerimônia realizada após o ritual fúnebre aos iniciados do candomblé, a preparação da morte, a libertação do corpo e o início da vida além túmulo. Para aqueles submetidos à escravidão, que tiveram uma vida de suplícios, a morte também ganhava uma função libertadora.
Um homem negro, com roupas coloridas dos pés à cabeça, estampadas com flores verdes e amarelas, colar de contas azul de Ogum e branco de Oxalá, um lindo e comprido turbante, conduz a procissão parecendo abrir caminho na multidão, como um Exu. Ele toca um agogô de três bocas, muito presente nos terreiros e afoxés baianos, que emana um som metálico que se destaca em meio a profusão de cantos, vozes e rezas que tomam as ruas.
Assim, avançamos pelas ruas seculares de Cachoeira, molhadas pela chuva matutina, com a santa de braços abertos, mãos espalmadas para cima, carregada por mulheres da irmandade e suas becas brancas, vermelhas e pretas. Da Igreja do Rosário, seguimos até a sede da irmandade onde a santa entra de costas para a casa e de frente para os devotos, em um frenesi total.
Os cortejos da festa têm enfrentado um sério problema nas andanças pela cidade: na tentativa tresloucada e desrespeitosa de conseguir o melhor registro fotográfico, algumas pessoas atrapalham a procissão esbarrando no andor, confinando a orquestra e obstruindo a passagem das irmãs. Me parece que trocam a experiência do rito – místico e religioso para alguns, festivo e cultural para outros – pela interação com celulares que inundam o cortejo. É o zeitgeist, espírito do nosso tempo. No afã de buscar a melhor imagem, abrem mão de uma vivência mais completa.
Já há a iniciativa de coletivos como a Casa Pretahub – que tem uma pousada na cidade – a Feira Preta e o Guia Negro em Cachoeira para orientar o público, pedindo respeito a cerimônia, sugerindo o uso de roupas brancas e, sobretudo, doações à comissão organizadora da festa e que podem significar importante contribuição financeira a irmandade.
Findada a procissão, na hora de comer, um problema: com o bug, sem dinheiro vivo não era possível consumir nada, e eu não tinha. Socorrido por um amigo, almocei uma suculenta maniçoba e mais tarde um abará da Dona Nice, que fica com sua tenda na orla do Rio Paraguaçu, delicioso. Era preciso estar bem alimentado para os festejos noturnos.
Já no fim da tarde, entrei na Capela D’Ajuda, sentei nos bancos de madeira ao lado das irmãs que logo me ofereceram mungunzá em copinhos de plástico, além de raspas de coco e pipoca, muita pipoca. Bençãos eram distribuídas por elas aos chegantes. Mais tímido, permaneci no banco observando.
Ao lado de fora, as pessoas começam a se concentrar na porta da irmandade formando uma fila extensa para receber o cozido oferecido pelas irmãs. É um prato com um pedaço de carne desfiada acompanhada de batata e cenoura cozida. Comemos todos espalhados pelo largo, em pé ou sentado nos degraus de pedra ao lado da sede e a frente da capela.
Oferecer comida aos presentes é um gesto generoso da irmandade, que acolhe a todos e cria, assim, vínculos com os participantes. E também um ato que traz abundância e prosperidade, de acordo com elas, é uma tradição presente nos terreiros de candomblé de Cachoeira, e de outros lugares, que no fim das festas de santo, oferecem comida consagrada pelos orixás a todos. E isso é apenas um dos diversos papeis sociais que os terreiros desempenham, sobretudo nos subúrbios de Salvador e por toda a Bahia.
Depois de comer, vamos para o samba de roda! Os corpos balançam no largo, as saias rodam e a alegria toma conta do povo que dança sorrindo, uma maravilha! Tomando licor de jenipapo e tamarindo, ouvimos e dançamos extasiados ao som de Nega Duda:
De São Francisco do Conde
Ecoou
A voz da filha de Xangô
Samba de roda
Tradição e amor
Salve o Recôncavo
Rainha de Angola chegou
Cantora deslumbrante, de voz potente, estremeceu Cachoeira e arrebatou a multidão, fica difícil traduzir em palavras. Nega Duda integra o bloco Ilu Obá de Min, talvez o mais representativo grupo musical e cênico de matriz africana de São Paulo e que tem também suas raízes no Recôncavo.
As irmãs ganham o largo e dançam ao som do samba. Ver essas mulheres octogenárias rodopiando sobre o chão irregular de pedras seculares, sua longevidade e vitalidade majestosa, emociona. E a festa segue com Ilha de Maré, composição de Walmir Lima difundida na voz de Alcione, agora interpretada por outra cantora:
Ah, quando eu cheguei no Bonfim minha senhora
Da carroça enfeitada eu saltei
Com água, flores e perfume
A escada da colina eu lavei
Aí foi que eu sambei, compadre
Aí foi que eu sambei, comadre.
Extasiado, com pernas e quadris latejando, voltei à minha hospedagem superando a ladeira. É preciso descansar, os dois dias de festa estão por vir, e o samba de roda vai agitar a cidade.
*Antônio Reis Junior é historiador e professor
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