Diante dos embates que envolvem STF, o Executivo e a bancada ruralista no Parlamento, a mobilização indígena luta para a derrubada final do Marco Temporal, lei que significaria um desastre para centenas de povos. A peleja está em curso e, sem pressão da sociedade civil, o resultado poderá ser trágico para a conquista definitiva dos territórios indígenas sob litígio
DIÁRIO DO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE
Quarto dia – Quarta-feira, dia 24 de abril de 2024
Por Antônio Reis Júnior*, de Brasília
O dia do retorno é sempre diferente quando estamos viajando, já há um movimento que vai nos fazendo pensar na volta, em nossa vida corriqueira. Vou levar duas imagens distintas de Brasília na memória, pensando a cidade: o Eixo Monumental, sua escala gigantesca e seu entorno inóspito; e as superquadras, arborizadas e tranquilas, com seus prédios com térreo de uso público e permeáveis às pessoas. No entanto, importa aqui menos a cidade e mais o resultado desta imersão em um acampamento no centro da capital ocupada por mais de 8 mil indígenas, representando mais de 200 povos, dos 305 existentes no Brasil, de todas as regiões do País.
Nessa quarta-feira, ainda vamos acompanhar a programação do 20º Acampamento Terra Livre, bastante arrebatados pela marcha de ontem, quando a Cobra do Tempo deslizou pelo Eixão e ocupou o Congresso na Sessão Solene de 20 anos da ATL, presidida por Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Célia Xakriabá, as mulheres que protagonizam as políticas indígenas no Brasil.
Estamos há quatro dias em Brasília na ATL e há muita articulação política ocorrendo, capitaneada por lideranças da Apib e representantes das sete instituições regionais que integram a mobilização nacional. Inúmeras reuniões entre lideranças e representantes de bancadas de senadores e deputados, encontros com ministros do STF, e pressão – necessária e urgente – pelo atendimento das pautas. Há um enfrentamento do legado de práticas anti-indígenas, algumas históricas de longa duração e, outras, que vieram como consequência dos quatro anos de governo Bolsonaro que levaram a cabo uma política devastadora para inúmeros povos, sobretudo os Yanomami em Roraima.
Voltamos à plenária na tenda principal do acampamento pela manhã e sentimos, mais uma vez, a vibração dos maracás nas mãos de mulheres, crianças e homens a cada fala que hoje tematiza a saúde e a educação escolar indígena. No período da tarde, com os encontros coordenados pela Apib, a agenda do clima, a biodiversidade e os preparativos para a COP 30 em Belém, em 2025. Isso tudo será assunto para debate e deliberações.
Ao longo do dia, um ato no acampamento foi realizado em memória de Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, do povo Hã hã hãe do Sul da Bahia, assassinada no dia 21 de janeiro no município de Potiraguá. Esse crime revelou ao País a existência de uma milícia organizada por fazendeiros sob a alcunha de “Movimento Invasão Zero”, que já tinha precedente de violência em outro episódio, também na Bahia, quando o grupo armado, acompanhado de policiais militares, cercou e atacou famílias do Movimento Sem Terra em área destinada à Reforma Agrária.
Luiz Uaquim, pecuarista e produtor de cacau, coordenador geral do movimento que tem 15 mil filiados e atua em 12 estados, nega participação no crime e a classificação de “milícia” a sua organização, que tem CNPJ e braço político com representação no Congresso por meio da criação da “Frente Parlamentar Invasão Zero” presidida pelo deputado federal Ricardo Salles (PL-SP).
A ocupação de terras – historicamente usurpadas por fazendeiros e grileiros – protagonizada por indígenas, é chamada por lideranças na ATL de autodemarcação. É uma estratégia para a retomada de territórios ancestrais e uma forma de pressionar o governo federal e Funai a acelerar a regularização das Terras Indígenas.
No ato, foi anunciada a reunião que se realizará amanhã, quinta-feira, 25 de abril, entre o presidente Luís Inácio Lula da Silva e 40 lideranças indígenas. Desde segunda-feira, quando o ministro do STF, Gilmar Mendes, recolocou a questão do Marco Temporal para o debate, a despeito da decisão já tomada de inconstitucionalidade da lei aprovada pela Câmara Federal, o clima é tenso.
Ou seja, ao determinar a conciliação em ações sobre o Marco Temporal, reabrindo o debate antes da decisão final da Corte, a sensação para as lideranças é de insegurança. A medida foi vista como muito preocupante.
Ciente dos embates que envolvem STF, o Executivo e a bancada ruralista no Parlamento, representada por ações protocoladas pelo PL, PP e Republicanos que querem manter a validade do projeto da Lei nº 14.701, a mobilização indígena luta para a derrubada final do Marco Temporal que significaria um desastre para centenas de povos. A peleja está em curso e, sem pressão da sociedade civil, o resultado poderá ser trágico para a conquista definitiva dos territórios indígenas sob litígio.
A tensão, acompanhada de frustração, justifica-se pelo anúncio do Governo Federal, dias antes, de um recuo nas demarcações. A Apib esperava pela homologação – o trâmite final para a finalização dos processos demarcatórios – de seis terras de um total de 14 territórios que aguardavam apenas a assinatura do presidente. O que ocorreu, em 18 de abril, é que apenas duas foram homologadas: na Bahia, onde conflito entre indígenas e produtores rurais escalou nos últimos meses, e em Mato Grosso.
A justificativa oficial foi que o governo federal, atendendo a pedido de governadores, precisa de mais tempo para a desintrusão (retirada de não indígenas das terras) que envolve complexas questões jurídicas. Kretã Kaingang, que integra a coordenação executiva da Apib, já citado nesse diário, uma liderança combativa do estado de Santa Catarina, fulminou:
“Nosso tempo é agora, urgente e inadiável. Enquanto se discutem marcos temporais e se concede mais tempo aos políticos, nossas terras e territórios continuam sob ameaça.”
A fala de Kretã revela a consciência dos riscos e ameaças à espreita. Mais tarde, saberíamos que um casal Xokleng de Santa Catarina, que participava da ATL, teve seu filho Hariel Paliano de 26 anos, assassinado em área de conflito de demarcação de terras no Estado. A violência contra indígenas é uma permanência histórica com nenhuma ruptura neste país.
Nos aproximamos do fim do dia e é chegada a hora de partir ao aeroporto de Brasília para o retorno a São Paulo. A ATL segue com sua programação, e com inúmeras atividades, de cunho político e cultural, até sexta feira. Nós, nos despedimos aqui.
O sentimento é de urgência. A imersão no acampamento, a participação nas plenárias, na marcha, na sessão do Congresso Nacional, e mesmo nas conversas informais nas tendas das delegações, nos eventos culturais, rezas e pajelanças, cantos e danças, nos impactou profundamente e nos deu a certeza de que, nós brancos, como sociedade civil, devemos emergencialmente somar forças nessa mobilização indígena nacional.
Este diário, modestamente, procura dar um pouco de visibilidade à ATL, ecoando as falas e ações tão expressivas e potentes dos povos indígenas do Brasil, que dão enorme contribuição ao País, sobretudo no grave momento de mudança climática em que o planeta enfrenta.
*Antônio Reis Júnior é historiador, professor universitário, autor de livros didáticos e colaborador da Página22
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