Abordagem que considera a relação entre tempo, pessoas e espaço se mostra fundamental para reconhecer e abraçar a complexidade de uma região como a amazônica
Por Amália Safatle
Em um dia de céu azul e sol radiante, com montanhas ao fundo, crianças se banham nas águas que interligam diversos agrupamentos de casas de um povoado indígena. Pessoas andam por caminhos de terra que circundam as habitações, em meio a árvores carregadas de frutos e de açaizeiros em flor.
Essa é uma forma de ver a Maloca do Contão, uma das comunidades indígenas em Roraima, retratada em obra de arte naïf pela artista plástica Carmézia Emiliano, da etnia Macuxi. Por um minuto, os 140 participantes da plenária “Amazônia é uma Paisagem”, realizada online em 26 agosto pela rede Uma Concertação pela Amazônia, são convidados a apreciar em silêncio essa obra de Carmézia e a exercitar, cada um, o seu próprio olhar sobre a cena – mostrando, assim, como podem ser múltiplas as visões e interpretações de uma realidade, como ensina a chamada abordagem da paisagem.
Mas, afinal, o que é paisagem e por que essa abordagem é tão necessária para abraçar a complexidade de uma região como a amazônica? Fernanda Rennó, doutora em Planejamento Territorial e Análise da Paisagem pela Universidade de Toulouse e integrante do Núcleo de Governança da Concertação, explica que na abordagem da paisagem, três dimensões se relacionam: o tempo, o espaço e as pessoas.
Ao longo do tempo, as pessoas – e o próprio tempo – transformam um determinado espaço. O resultado dessa interação é o território, delimitado pelas relações de poder de um grupo social. Quando uma pessoa encontra esse território, forma-se uma paisagem, que é uma construção social e subjetiva. Como cada pessoa tem uma relação diferente com uma paisagem, torna-se possível perceber as diferentes facetas de uma mesma realidade, compreender a sua complexidade e aprender a lidar com ela.
“Isso é muito rico do ponto de vista científico, pois permite ultrapassar a racionalidade, que sabemos ser limitada. A abordagem da paisagem é, portanto, um instrumento muito forte de contextualização territorial, que integra os dados existentes com os desejos e as percepções da população local, buscando sempre um alinhamento entre expectativas e possibilidades”, explica Rennó, durante a plenária da Concertação.
Também participam do encontro a agricultora familiar Maria Gorete Rios, proprietária do sítio Rancho da Pedra, na cidade de Novo Repartimento (PA); Valmir Ortega, diretor executivo da Belterra Agroflorestas e da Rio Capim Agrossilvipastoril; e o antropólogo Eduardo Brondízio, diretor do Centro de Análise de Paisagens Socioecológicas da Universidade de Indiana e do Programa Ambiente e Sociedade da Universidade de Campinas.
Brondízio discorre sobre como o conceito de paisagem, na prática, afeta a governança da região, considerando as dinâmicas territoriais e os desafios da interdependência na gestão de questões locais e regionais. Para isso, o professor de Antropologia recorre a um exemplo: a frase que ouviu de uma liderança indígena sobre o sucesso e os desafios do manejo do pirarucu implementado em sua comunidade. “Ele me falou: ‘Nós somos um galho que dá fruto e que gera novos frutos. Mas o nosso galho é parte de uma grande árvore, na qual a gente depende de galhos maiores para continuar o que estamos fazendo e para contribuir com essa grande árvore'”.
A analogia caracteriza a inter-relação social, ecológica e institucional de governança. A abordagem da paisagem traz todos esses níveis de uma maneira integrada e permite identificar os desafios de interconectividade entre os diversos níveis de governança – territorial, regional e nacional.
Há, segundo Brondízio, sistemas de governança territorial que cuidam bem do seu espaço, protegendo ilhas de biodiversidade e de diversidade sociocultural. Um caso emblemático é o do Parque Nacional do Xingu, um sucesso de gestão restrito a um local – mas não regional. “A governança daquela paisagem não é suficiente para lidar com os problemas que estão em outro nível. Por isso, é preciso pensar na transição de governança de nível específico para uma governança mais policêntrica. Isso significa governar corações e mentes, porque existem ideias muito diferentes de como essas unidades devem ser governadas”, diz.
O professor refere-se aos imaginários que ainda estão muito imbricados na consciência das pessoas em geral em relação à Amazônia. São ideias de ordem ocidental, colonial e neocolonial, que entendem a região como uma fonte de recursos naturais destinada a beneficiar quem está fora dela, enquanto deixam de ver, por exemplo, as potencialidades de sua bioeconomia. “As maneiras de ver a região refletem esses filtros e não necessariamente a realidade que está lá”, afirma.
Bioeconomia invisível
“A Amazônia é paisagem de uma bioeconomia ainda invisível, da qual a gente não consegue estimar o valor e, portanto, o subestima”, diz Brondízio, enquanto mostra uma foto aérea da Ilha do Marajó.
“Esta paisagem é normalmente referida como uma floresta nativa, onde as pessoas estão ali e esperam o açaí cair do pé para se beneficiar. Mas eu, que trabalho nesta floresta, a interpreto como uma das mais manejadas da região, com sistemas intensivos de produção agrícola. Contudo, ainda tenho colegas que não conseguem ver um sistema agrícola que vai além da floresta”.
A bioeconomia invisível começa na invisibilidade estatística. A seu ver, os dados existentes sobre a bioeconomia amazônica ainda são muito limitados para abarcar a escala dessa economia, sua importância no manejo territorial regional e nos serviços ambientais prestados (para saber mais, acompanhe o webinar “Amazônia em Dados”, da série Notas Amazônicas, a ser transmitido em 9 de setembro no YouTube da Página22)
A abordagem da paisagem, portanto, serve para tirar a realidade da invisibilidade, permitindo identificar suas potencialidades e desafios. Um deles é superar a ideia da Amazônia como floresta intocada e entender a paisagem por meio de suas crescentes conexões urbanas. Segundo ele, a formação de redes interurbanas está reconfigurando a região hoje e criando os caminhos de transformações no futuro.
Um exemplo dessa conexão entre a Amazônia florestal e a urbana vem da cadeia do açaí, que hoje ultrapassa a casa de milhões de reais por ano e prosperou devido à demanda de consumo de um centro como Belém. Isso mostra, segundo Valmir Ortega, da Belterra, a importância de incluir a rede de cidades na paisagem amazônica.
“Parte da bioeconomia regional se realiza, do ponto de vista de mercado, nos centros urbanos. O motor do mercado do açaí não é a Califórnia, e sim Belém, onde são consumidas algumas centenas de milhares de toneladas de açaí por ano. Foi graças ao consumo do belemense que o produto virou global, e não porque uma startup californiana passou por ali e descobriu um pé de açaí”, diz Ortega.
A riqueza na diversidade
Mais do que simplesmente olhar para uma atividade econômica produtiva, Ortega propõe uma mudança de olhar, que veja na diversidade e na complexidade as grande oportunidades de desenvolvimento da Amazônia. Para isso, será preciso superar a visão dominante que entende uma paisagem dominada por monoculturas como um sinônimo de sucesso econômico e de dominação da natureza.
“O desafio, portanto, é como reposicionar as oportunidades com base na diversidade, que é a grande riqueza que temos na Amazônia. E deixarmos de achar normal uma paisagem com milhões de hectares de pastagens degradadas”, afirma Ortega.
Essa mudança de chave, segundo ele, passa por uma batalha cultural, na qual é preciso demonstrar que a floresta também é desenvolvimento, oportunidade e meio para transformar a vida das pessoas de forma positiva. “É uma disputa de olhar sobre como a gente quer reconfigurar esses territórios.”
A paisagem de um sistema agroflorestal, explica ele, transforma-se de ano a ano. No primeiro, é uma grande plantação de banana e mandioca mas, a partir do segundo ano, muda de configuração – o que é difícil explicar para quem está acostumado a ciclos mais programáveis de monocultura, divididos entre o plantio, o crescimento e colheita de produtos como soja, cana e milho. Por isso, Ortega leva investidores a visitarem suas áreas de sistemas agroflorestais e compreenderem como se pode gerar riqueza a partir da diversidade.
Fora a geração de renda, as produções diversificadas, seja por meio de sistemas agroflorestais, seja por meio da restauração florestal, são necessárias para mitigar as crises do clima e da biodiversidade. “Diante de grandes manchas de monocultura que começam a dominar as bordas da Floresta Amazônica, o grande desafio é posicionar esse mosaico de diversidade em sistemas produtivos diferenciados, combinados com restauração ecológica. O objetivo é trazer para a paisagem uma funcionalidade ecossistêmica, ou seja, um fluxo gênico para a biodiversidade, e a proteção de água e solo”, diz.
Esses sistemas diferenciados são modelos produtivos orientados, por exemplo, para o cultivo de frutas e outros alimentos, para a prestação de serviços ambientais como carbono, para a exploração sustentável de madeira e fibra – e também para a produção pecuária, que pode ser conciliada com as demais atividades, ao contrário do que comumente se pensa.
Quem conta essa experiência é a agricultora familiar Gorete Rios, proprietária há 10 anos de um sítio em Novo Repartimento, cidade paraense que se originou de um acampamento de obras da Rodovia Transamazônica. Ela explica que o sítio fazia parte de uma área antropizada, mas a paisagem melhorou desde que ela adquiriu as terras.
“Primeiro, fiz uma calagem e em seguida comecei a plantar cacau e açaí. Com os sistemas agroflorestais, eu produzo em tempos diferentes. Quando não tenho uma coisa produzindo, eu tenho outra, além do gado que é rotacionado”, conta Rios.
Não só a paisagem melhorou, como também o rendimento. A produção, segundo ela, recebe assistência técnica da Fundação Solidariedad, organização contemplada pelo Fundo JBS pela Amazônia com o projeto RestaurAmazônia, que une Sistemas Agroflorestais (SAFs) de cacau, pecuária sustentável de cria e a conservação florestal. Por meio desse projeto, a produção pecuária conta com garantia de compra, enquanto a propriedade devidamente regularizada, com documentação – que é o caso de Rios – tem acesso a financiamento bancário. “Antes disso, era uma área largada”, diz.
A juventude em cena
Sarah Sampaio, que atua na empresa Amazônia Agroflorestal, produtora do café Apuí, questiona como conciliar a diversidade da sociobioeconomia com a necessidade de criar empreendimentos escaláveis, capazes de oferecer alternativas de renda principalmente para os jovens, que tantas vezes acabam em êxodo rural. Município no Sul do Amazonas, Apuí, conta ela, teve uma paisagem profundamente transformada devido à construção da Transamazônica, atraindo pessoas de diversos estados do Brasil em busca de terras mais baratas, e muitas vezes lançando mão da grilagem como forma de geração de renda e de acesso a terras para a produção pecuária extensiva.
“A distância dos centros comerciais e a dificuldade de logística dificultam muito a chegada de outras iniciativas e de outras organizações para atuar com alternativas de renda sustentável”, lamenta ela. Como financiar uma economia na escala necessária, sem cair na monocultura, e ainda retendo os jovens talentos é, portanto, uma questão importante que se coloca no campo da bioeconomia.
“O lugar comum é dizer que o jovem sai do campo para cidade em busca de maior convívio social e acesso à comunicação e à cultura. Essa talvez essa seja uma parte da questão, mas percebemos que o fator motivante para a saída é a falta de renda e de perspectiva do jovem na propriedade rural”, diz Ortega. Uma propriedade com um modelo produtivo de baixíssima produtividade impõe limitações a qualquer projeto de futuro economicamente viável para o filho e a filha do proprietário – sendo que as jovens sofrem especialmente no caso de um patriarcado mais autoritário.
Uma razão para essas dificuldades, na visão de Ortega, é a falta de crédito para atividades agroflorestais, ao passo que a agricultura convencional recebe altos subsídios do governo. “Mesmo sabendo que a renda bruta do cacau por hectare é bastante superior, é uma tarefa inglória obter crédito no banco, que prefere emprestar para o produtor de gado comprar mais cabeças. “Existe uma disputa cultural dentro das instituições bancárias e das instituições públicas, mas precisamos ter a ambição de impulsionar esse mercado para a escala dos bilhões”, afirma.
O que remete novamente à questão da paisagem e a interação das pessoas com o espaço. A Amazônia florestal passará a ser vista como produtiva? Ou a ideia de produção formada no imaginário brasileiro continuará remetendo à imagem de terra desmatada, “limpa”, sugerindo o total controle da natureza, mesmo que essa terra seja um pasto improdutivo?
Essa é a questão que, para Brondízio, toca profundamente no ethos do brasileiro, e definirá a paisagem que os jovens – cowboy, agricultor, seringueiro, ribeirinho, indígena, empreendedor – desenharão para os seus futuros.