Indicadores jogam luz sobre a maior e mais complexa região do País e revelam características cruciais para a compreensão de realidades locais e tomadas de decisão certeiras. É disso que trata o mais recente webinário promovido pela rede Uma Concertação pela Amazônia e Página22
Por Magali Cabral
O índice mais célebre no mundo, o Produto Interno Bruto (PIB), que mede o desempenho econômico de países e regiões subnacionais ao longo de um período, foi criado nos anos 1930 e adotado internacionalmente já na década seguinte. Apesar de sua importância enquanto unidade de medida comparável entre os países, o PIB tem suas limitações. Ignora, por exemplo, desigualdade social, degradação ambiental, perda de biodiversidade, entre outras dimensões igualmente importantes para a sociedade. Além disso, reconstruções a partir de tragédias ambientais como inundações e incêndios movimentam a economia, assim como a indústria da segurança lucra com a criminalidade, ajudando a elevar o PIB.
A fim de medir o bem-estar social de suas populações, os países adotaram globalmente, nos anos 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que abrange três dimensões – saúde, educação e renda. Mas, assim como o PIB, o IDH também não tem o alcance necessário para responder aos desafios atuais. Por exemplo: existem vários países não democráticos com altíssimo IDH. A partir dos anos 2000, inicia-se então a busca por indicadores capazes de captar múltiplas dimensões em territórios de alta complexidade, como é o caso da Amazônia.
Para debater a importância e as características de ferramentas mais recentes capazes de “radiografar” e comparar regiões em temas mais sensíveis, a rede Uma Concertação pela Amazônia e a Página22 promoveram, no último dia 9, o webinário Amazônia em Dados: outras perspectivas para o desenvolvimento. O evento é parte da série Notas Amazônicas, cujo propósito é identificar caminhos para o desenvolvimento sustentável da região, e pode ser assistido no YouTube da Página22. O encontro contou com a participação de especialistas em ciência de dados, meio ambiente e políticas públicas do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), do MapBiomas, e do Índice de Progresso Social (IPS Brasil). A mediação ficou a cargo do coordenador de Redes do Laboratório de Cultura Digital da UFPR/MinC, Jader Gama.
A própria Concertação, representada no webinário pela gestora de Conhecimento, Georgia Jordão, fomenta atualmente uma iniciativa de integração de dados, a Amazônia Legal em Dados, plataforma com mais de 50 indicadores em 11 temas relacionados ao desenvolvimento dos nove estados da região. “A partir do acesso público e gratuito à plataforma, é possível obter uma visão integrada sobre demografia, emissões de gases de efeito estufa, educação, saúde, conectividade, em um total de 11 temas. Os dados compilados ali são extraídos de banco de dados públicos, por exemplo, da Pnad Contínua, do IBGE, do Observatório do Clima, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, entre outros”, informa Jordão.
O pesquisador associado do Imazon e diretor do IPS Brasil, Beto Veríssimo, conta que no processo de busca por novos indicadores que pudessem medir a qualidade de vida de forma multidimensional, acadêmicos da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e da Universidade de Oxford, no Reino Unido, lançaram em 2014 o Índice de Progresso Social (IPS). O índice engloba 12 métricas: moradia, saneamento, telecomunicação, nutrição, cuidados médicos básicos, saúde avançada, bem-estar, meio ambiente, direitos individuais, liberdade, acesso a educação superior e segurança.
A partir disso, o IPS vem sendo aplicado regionalmente nos 772 municípios da Amazônia Legal, mas só em julho deste ano foi lançado o primeiro levantamento em âmbito nacional. A condição social de cada um dos 5.570 municípios brasileiros foi medida e o País alcançou no IPS global 68,90 pontos, ocupando a 67ª posição no ranking entre 170 países, liderados por Dinamarca (90,30), Noruega (90,32) e Finlândia (89,96). Na América do Sul, estão à frente do Brasil em progresso social o Chile (78,43), a Argentina (77,19) e o Equador (69,56).
Amazônia em destaque
Os dados obtidos pelo IPS sobre a Amazônia nos últimos 10 anos, somado a outros indicadores públicos, reavivam as preocupações com o futuro da região. Segundo Veríssimo, reforçam a existência de uma tripla crise na região, sem precedentes na história – crise ambiental, com desmatamento, queimadas e garimpo; crise econômica, com metade da população vivendo abaixo da linha da pobreza; e crise social, decorrente em grande parte das duas primeiras.
“A Amazônia é hoje o território socialmente mais pobre do País, condição que um dia já foi atribuída à região Nordeste”, destaca Beto Veríssimo.
Os dados sobre a crise socioambiental vivida na Amazônia, tanto na plataforma da Concertação como na do IPS, estão amparados em dados públicos e abertos, produzidos por redes colaborativas diversas, entre as quais o MapBiomas, que monitora o uso da terra para promover o manejo sustentável dos recursos naturais e o combate à mudança climática.
De acordo com a coordenadora científica, Julia Shimbo, o MapBiomas trabalha com séries históricas de mapas (desde 1985), abrangendo todo o território brasileiro. São quase quatro décadas que mostram as transformações no uso do solo em todos os biomas brasileiros. A plataforma permite visualizar essas transformações ano a ano, com pastagens avançando sobre as áreas florestais, ou exploração mineral crescendo em áreas protegidas, entre outros recortes oferecidos. Para ver as imagens em uma quase animação, basta deslizar um botão ao longo da linha do tempo abaixo do mapa no link indicado acima.
“O processamento dessas imagens – explica Shimbo – é feito pixel a pixel, com uso de inteligência artificial e processamento na nuvem. A cada ano, geramos uma nova coleção de mapas, com atualizações até o último ano corrente, atualmente em 2023, com melhorias e maior detalhamento dos mapas e inclusão de novas classes”.
Os dados disponibilizados pelo MapBiomas permitem contabilizar que nas últimas quatro décadas a Amazônia brasileira perdeu mais de 53 milhões de hectares de vegetação nativa, a maior parte associada a conversão de floresta em pastagem. “É uma mudança muito rápida para o período pesquisado”, assinala a cientista.
Em áreas protegidas, que representam mais da metade dos remanescentes florestais no bioma, as imagens revelam que o desmatamento chega a um milhão de hectares – as Terras Indígenas são as mais conservadas, registrando perdas de vegetação nativa inferiores a 1%, contra 28% de perdas em áreas privadas.
Os mapas revelam também que várias dessas comunidades seguem ameaçadas pelo avanço do garimpo. Segundo Julia Shimbo, 92% da área garimpada no País estão na Amazônia. Desse total, 10% invadiram Terras Indígenas, principalmente em territórios Kayapó, Munduruku e Yanomami. Como o bioma amazônico representa mais de 60% da superfície de água do País, a maior parte dos garimpos está localizada a até 500 metros de corpos d’água, provocando impactos sociais graves decorrentes da poluição.
Secas severas, cada vez mais longas e frequentes, também estão registradas nos mapas e guardam forte relação com o fogo, outra ameaça importante. Mais de 19% do bioma já queimou pelo menos uma vez. Deste percentual, 70% queimaram mais de uma vez. “O fogo não era tão frequente, mas hoje já contribui com os índices de degradação florestal, além de prejudicar a saúde da população”, afirma Shimbo.
A redução do desmatamento, superior a 60%, segundo o último relatório anual do MapBiomas, ajuda a impedir que a situação se agrave. Mas só isso já não reverte o cenário de transformação pelo qual passa a Amazônia. Entre as soluções possíveis, Shimbo cita o fomento de negócios em bioeconomia, o investimento em ciência e a recuperação de grandes áreas florestais.
Medindo a biodiversidade
Fazer a recuperação de uma área florestal também requer dados. E aqui entra em cena um terceiro ente científico, o Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), uma comunidade que atua em rede, desde 2000, coletando, armazenando e gerindo informações sobre a biodiversidade brasileira. A diretora associada da iniciativa, Dora Lange Canhos, trouxe ao evento alguns dados sobre o SpeciesLink, plataforma desenvolvida pelo Cria para agregar as informações sobre as coleções biológicas coletadas no Brasil e no mundo, todas elas abertas aos interessados.
“Temos 18 milhões de registros no SpeciesLink, sendo que 300 mil espécies estão representadas com amostras e 6 milhões com imagens associadas. Nosso carro-chefe são as plantas, mas temos dados de animais e de fungos”, informa Dora Lange.
Além dos dados de ocorrência de espécies, o sistema indexa informação e imagens de georreferenciamento, obtidas junto ao MapBiomas. Os registros de herbários identificam a espécie, fazem a descrição da amostra, dizem se é endêmica ou nativa, mostram a localização e a data da coleta, entre outras referências. O Cria então indexa a essas informações os dados georreferenciados do MapBiomas. Conforme a coordenada geográfica da espécie no SpeciesLink, o pesquisador utiliza a linha de tempo do MapBiomas para saber se uma determinada amostra, eventualmente coletada em área de vegetação natural, estaria hoje em uma área antrópica, isto é, alterada pela ação humana. “Desse modo – diz Lange –, eu posso estimar uma possível perda de biodiversidade naquele local que estou pesquisando”.
O Cria também permite que sejam feitos recortes espaciais, inclusive para a região amazônica. Sabe-se, por exemplo, que hoje existem 624 mil registros botânicos no bioma com 32 mil espécies distintas. Uma análise das áreas que em 1985 eram naturais e hoje estão antropizadas, revela que, em tese, podem ter sido perdidas 37% das espécies registradas no Cria. “Sempre pode haver uma árvore isolada em algum lugar antropizado, mas como mata, não mais”, explica.
Ao mesmo tempo que mostra as perdas de espécies provocadas pela antropização, a plataforma também permite identificar as espécies que devem ser utilizadas na restauração de uma determinada área do bioma, além de informar se sementes e mudas podem ser encontradas, e em quais viveiros.
Aplicações e impacto local
Ao questionamento da mediação do evento sobre a possibilidade de movimentos cidadãos se apropriarem dos dados do IPS e utilizá-los para transformar realidades locais, Beto Veríssimo responde que “sim, os dados produzidos são capazes de empoderar os agentes da sociedade, bem como apoiar gestores públicos, ou contribuir com o setor privado no planejamento de seus investimentos sociais voluntários obrigatórios”.
Veríssimo explica também que a metodologia IPS não incorpora dados econômicos em suas avaliações. “Não medimos investimentos nos setores pesquisados, apenas os resultados. Não quero saber quanto foi gasto em segurança, me interessa saber apenas os resultados obtidos com segurança pública para o cidadão”, afirma.
Desse modo, é possível comparar a qualidade dos serviços entre cidades com a mesma performance econômica. Parintins (AM) e Itaituba (PA), por exemplo, são municípios com praticamente a mesma renda per capita e a diferença de resultados sociais é imensa entre os dois, com Parintins bem à frente em bem-estar social.
“O IPS é um radar que fica na frente do gestor mostrando que falta de dinheiro não é mais desculpa, pois existe um município no mesmo território, eventualmente com menos renda, entregando resultados melhores. Não há nem sequer a possibilidade de se questionar a veracidade das informações, uma vez que a própria gestão é quem produz os dados. Quem conhece gestão pública sabe que essas informações são geradas localmente”, afirma.
Em outro exemplo, Veríssimo conta que Caxambu (MG) está entre os 20 municípios com melhor posição no IPS Brasil. Já Colniza (MT), um município da Amazônia Legal, aparece entre os 20 piores. Os dois municípios têm o mesmo PIB per capita e basicamente a mesma população. De posse dessas informações, os gestores têm de iniciar uma busca para entender porque Colniza entrega um resultado tão inferior a outro município em condição similar.
Demanda por dados
Sobre a demanda por informações no MapBiomas, Julia Shimbo diz: “A equipe não imaginava que um conjunto de dados de mapas de cobertura e uso da terra pudessem ser tão úteis e aplicáveis para diferentes áreas de conhecimento e setores da sociedade, desde escolas, órgãos públicos e universidades, até bancos que não querem financiar empresas envolvidas com desmatamento”. Ela conclui que essa grande procura acabou resultando em uma plataforma bastante amigável, sempre atualizada e atenta aos feedbacks de usuários.
No caso do Cria, Dora Lange lamenta que a integração de informações técnicas no nível local seja um pouco mais complexa. A primeira grande barreira para tornar o acesso aos dados mais palatável é o uso de nomes científicos para identificar as espécies. Os pesquisadores ainda não encontraram uma maneira de fazer diferente, pois em um país nas dimensões do Brasil, é muito comum que o nome popular de uma planta no Sudeste seja atribuído a outra planta no Nordeste. Isso criaria um ruído de comunicação.
Embora o foco do Cria esteja voltado até agora à comunidade científica e aos gestores de políticas públicas, Lange reconhece a importância de se pensar no envolvimento do cidadão comum, principalmente das crianças.
“Temos que mostrar às crianças a riqueza da biodiversidade para que criem paixão pela natureza, que se reverterá em preservação e conservação no futuro. Estamos abertos a sugestões sobre como melhorar o acesso aos nossos dados”, arremata Lange.
Como gestora de conhecimento, Georgia Jordão classifica o webinário “Amazônia em Dados” como um belo ensaio de três iniciativas importantes: o Cria, que consegue medir a biodiversidade, algo extremamente difícil; o MapBiomas, hoje uma das plataformas mais respeitadas no mundo e que já exporta a sua competência; e o IPS, a maior plataforma subnacional feita no mundo.
“Muitas vezes, as informações extraídas dessas redes podem não ser muito animadoras, mas o conhecimento dos fatos proporcionado por esses indicadores é fundamental para a busca de soluções criativas para problemas complexos e motivo para celebrarmos a nossa capacidade de inovação”, conclui Jordão.