Jovens lideranças mobilizam comunidades ribeirinhas para melhores condições de vida e proteção dos recursos naturais no Amazonas
Lucas, Henrique e Gabriel são agentes ambientais voluntários na comunidade ribeirinha São Raimundo, município de Carauari, no Médio Juruá, Amazonas. O primeiro, 23 anos, preocupa-se com um dos mais recentes desafios amazônicos: o lixo. O segundo, 22, chama atenção para os riscos à biodiversidade que garante o sustento das famílias. E o último, de mesma idade, realça a importância de práticas de roçado contra o desmatamento, na perspectiva de um novo horizonte para a Amazônia diante da mudança climática – tema que chega com maior força a áreas remotas pelas mãos e vozes das novas gerações, como “Gretas” da maior floresta tropical do planeta.
Eles compartilham não apenas o sobrenome – Cunha, o mesmo de praticamente todos no povoado, descendentes de uma mesma família que por lá chegou para explorar recursos da floresta no ciclo econômico da borracha, que marcou profundamente a região. Como líderes de influência na localidade e entorno, o trio integra uma das frentes de educação do programa Território Médio Juruá, gerenciado pela Sitawi junto a organizações comunitárias, com recursos da Coca-Cola, Natura e Agência Americana para o Desenvolvimento (Usaid).
“Fazemos mutirões envolvendo escolas e famílias para a instalação de lixeiras em pontos estratégicos e coleta de resíduos, com reaproveitamento do que é possível”, conta Lucas, ao lembrar que as comunidades precisam resolver o problema sozinhas, pois a prefeitura não recolhe o lixo fora da sede municipal. Em áreas distantes, a logística é um grande entrave à destinação correta dos resíduos, que acabam queimados ou enterrados lá mesmo.
O acesso da população ribeirinha a produtos industrializados, fator associado a conquistas de renda e melhor qualidade de vida, requer soluções para as embalagens, sobretudo plásticos, de modo que o destino não seja o quintal das casas ou os rios e igarapés. “Melhorou muito a consciência dos moradores, com novos hábitos que viram rotina na vida ribeirinha”, aponta Lucas.
Vigilância dos lagos e orientação contra o desmatamento
“Olho para o futuro da Amazônia e vejo que pode dar certo”, concorda Henrique, admitindo que “trabalhar com o ser humano não é fácil, mas vemos mais gente abraçando a causa”. A tarefa inclui visitas a comunidades no apoio à vigilância para proteção dos lagos, ricos em quelônios e pirarucu, recursos da biodiversidade que representam importante fonte de proteína e renda na região. “Fomos capacitados para orientar e evitar conflitos, não apenas em relação a invasores, mas entre os próprios moradores”, explica o agente ambiental.
A motivação para o trabalho voluntário, diz Henrique, está em “pensar diferente e receber em troca o aplauso de pessoas felizes pela melhor moradia e pela natureza bem conservada, pois sobrevivemos dela”. Ele e os demais do grupo funcionam como braço direito das organizações sociais junto às lideranças mais experientes e aos gestores das unidades de conservação, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari, onde vivem. “Sem o devido controle dos impactos, a natureza é rápida na resposta”.
Uma prioridade é justamente a luta contra o desmatamento, conforme enfatiza Gabriel, dedicado a orientar as comunidades a aproveitar o máximo dos roçados com o mínimo de danos, reaproveitando áreas já alteradas. “O desmatamento prejudica não só a fauna e flora, como a nós mesmos”, adverte. O agente assiste na TV às notícias sobre o mundo preocupado com o futuro da Amazônia e orgulha-se pela contribuição que dá nas áreas protegidas do Médio Juruá. “Vivemos uma jornada de aprender e repassar aos outros”, completa.
Sonhos e projetos de vida ficam nas comunidades ribeirinhas, guardiãs da biodiversidade, e não no êxodo para os atrativos das cidades. Mas há desafios pela frente, conforme indica a Maria Cunha, 26 anos, uma das duas mulheres entre os 12 agentes ambientais voluntários da comunidade São Raimundo. “Apesar de muitos avanços, falta empoderamento feminino e maior incentivo da própria comunidade”, revela.
Ela diz que as mulheres extrativistas são guerreiras e não medem esforços para enfrentar obstáculos: “Ao mesmo tempo, temos maior sensibilidade e paciência para explicar temas novos, como a mudança climática que já sentimos na pele, porque as chuvas mudaram e já é difícil prever a época de plantar”. Na visão de Maria, é necessário cobrar responsabilidade dos governantes para a redução urgente do desmatamento, uma vez que a floresta “corre o risco de não ser uma alternativa de qualidade de vida”.
“Estamos fazendo a nossa parte”, diz a agente ambiental, interrompida pelo piado estridente ao pé de uma árvore cheia de ninhos de japu, pássaro amazônico que passou a viver mais próximo das comunidades, provavelmente em busca de alimentos mais fáceis do que na floresta.
Legado de lutas sociais
“Mobilizadora social e voluntária por vocação”, como ela própria se reconhece, Maria faz parte de um time de jovens que perderam o medo de falar. Ao contrário de tempos atrás, gostam de expor ideais em público, juntar pessoas. “A educação é a única forma de sensibilizar e manter os recursos naturais, mas falta muito ainda”, admite. Para ela, é “necessário formar multiplicadores e pessoas mais preparadas para cuidar da Amazônia no futuro”.
Maria e o grupo de agentes ambientais voluntários honram a herança de luta social deixada pelo Movimento de Educação de Base, da Igreja Católica, que na década de 1960 mobilizou os extrativistas para libertá-los dos “padrões” que se diziam donos dos seringais. De geração em geração, a região tornou-se conhecida pelo legado da organização social, chave para a criação de áreas protegidas para uso sustentável com projetos de fornecimento de insumos naturais para empresas e parcerias para melhoria das condições de vida.
“Grupos que debatiam questões bíblicas abordavam temas de interesse das comunidades, como meio ambiente, violência doméstica, gravidez na adolescência e necessidade de lideranças jovens”, conta Raimundo Cunha, 29 anos, presidente da Associação dos Moradores Extrativistas da Comunidade São Raimundo. Até que um dia o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) levou para o Juruá ações desenvolvidas em outra região do Amazonas: o projeto Jovens Protagonistas, que previa a formação de agentes locais como forma de sensibilizar os comunitários contra a pesca ilegal que ameaçava de extinção espécies importantes ao sustento das comunidades.
Suporte aos gestores das reservas ambientais
Sem o apoio direto dos moradores na vigilância, o controle é difícil. “Até uma denúncia chegar ao órgão fiscalizador os infratores retiram os animais e vão embora”, diz Raimundo. Após interrupção por falta de recursos e mudanças no governo federal, a iniciativa foi abraçada pelo programa Território Médio Juruá, com ênfase na formação de jovens para fortalecimento das organizações sociais, educação ambiental e proteção de quelônios com suporte ao controle de desova. Atualmente, 150 agentes ambientais voluntários atuam em comunidades de reservas e terras indígenas da região, com atividades que vão desde a mobilização para eventos até a solução de problemas locais como apoio aos órgãos de fiscalização.
O trabalho envolve a discussão com professores sobre métodos de educação integrados à cultura das comunidades, além de abordar práticas produtivas sustentáveis. “Trabalhar nisso desde cedo na juventude aumenta a chance de levarem os recursos naturais à sério quando adultos”, ressalta Raimundo, ao observar que as atuais gerações estão se preparando para segurar o bastão das lideranças mais antigas. Ele lembra os ensinamentos do avô, Joaquim Cunha, seringueiro de 86 anos que dizia “nunca ter precisado matar uma árvore para alimentar os filhos” – até porque vinha delas a renda da família, com a extração de látex. Raimundo adverte: “Devemos muito aos pioneiros da região, mas de uns tempos para cá o legado estava sendo esquecido, com riscos de uso predatório da biodiversidade”.
Uma das parcerias destinadas a manter a história viva consistiu nas viagens de intercâmbio para jovens do Juruá ampliarem horizontes, conhecendo modelos de cooperativas no Rio Grande do Sul e Acre, o que resultou na confecção de um guia sobre práticas produtivas no WhatsApp. Da galinha caipira aos sistemas agroflorestais de cultivo, o desafio é mostrar que podem produzir sem agredir o meio ambiente”, destaca Enoque Ventura, supervisor de projetos da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), parceira do programa Território Médio Juruá. “Além do aumento da renda familiar, o grupo desenvolve uma nova postura de representar as comunidades”, completa.
A instituição conduz na região o Programa Dicara, que nasceu com a proposta de ampliar um antigo projeto da Associação de Moradores Agroextrativistas da RDS do Uacari (Amaru) envolvendo oficinas socioeducativas e atividades esportivas destinados a jovens moradores de unidades de conservação. Hoje a iniciativa abrange 45 comunidades, no total de 1,2 mil crianças e adolescentes beneficiados por ações de saúde preventiva, cursos de música e informática e assistência à cidadania, com destaque para a formação de agentes ambientais mirins, de 12 a 17 anos.
“O objetivo é investir no surgimento de novas gerações de agentes de transformação”, explica Fabiana Cunha, coordenadora do programa. “Mais do que nunca, o engajamento juvenil dos povos tradicionais da floresta é considerado um forte aliado na busca por melhorias na qualidade de vida dentro e fora das comunidades”.
Educação mais próxima à realidade ribeirinha
No Programa Território Médio Juruá, uma estratégia inovadora tem base na comunidade Campina, no Núcleo de Conservação e Sustentabilidade Bertha Becker – homenagem à geógrafa brasileira que marcou o pensamento sobre a Amazônia no século XX. É a Casa Familiar Rural (CFR), modelo baseado na pedagogia da alternância, em que os alunos revezam 15 dias na escola e 15 dias em suas casas nas comunidades, levando os aprendizados técnicos para campo. “Percebemos que precisávamos de uma educação diferenciada, mais próxima da realidade ribeirinha”, explica o pedagogo Adão Ferreira, ligado à Amaru, organização social que desde 2011 se mobiliza com visitas à aplicação do modelo em outras regiões brasileiras.
“As atividades vão além das salas de aula e motivam o aluno a questionamentos e a uma postura participativa”, observa Adão. Inicialmente, em 2019, a CFR funcionou com cursos de qualificação em adubação do solo, manejo de açaí e cultivo e desenvolvimento da mandioca, entre outros temas, mas para 2021 o plano é ofertar a educação de nível médio, em paralelo ao técnico, de três anos. “É uma chance ímpar para jovens atualmente expostos a problemas sociais como drogas e violência”, afirma o pedagogo. Além disso, acrescenta, “a educação é pivô da conservação dos recursos naturais”.
“A qualidade chama atenção em relação ao ensino convencional do município, pois vai além das disciplinas normais e conversa com o que praticamos no dia a dia”, diz Ednázio dos Santos, aluno da CFR que destacou na aprendizagem e hoje está na coordenação das atividades junto aos demais jovens para o repasse de técnicas às comunidades.
Curso universitário dentro de uma Unidade de Conservação
Uma segunda novidade é a chegada do primeiro curso superior em área remota da Amazônia profunda: Pedagogia do Campo, ofertado pela Universidade do Estado do Amazonas, no núcleo da FAS na comunidade Bauana, às margens do Juruá. A iniciativa é uma resposta à recorrente demanda por professores que vivam nas comunidades e entendam as realidades locais, superando desafios como a difícil logística de deslocamento fluvial da cidade para a escola e falta de empatia com o estilo de vida ribeirinho.
“É uma conquista não somente minha, mas de todas as instituições que lutaram durante muitos anos por isso”, comemora Érica Figueiredo, moradora da comunidade Nova Esperança, na Reserva Extrativista Médio Juruá, orgulhosa como aluna da primeira turma do curso. Ela conta que foi longa a trajetória tentando uma oportunidade de fazer uma faculdade: “Tive o incentivo de pessoas importantes, vi que não era um bicho de sete cabeças e, como filha de agricultor e carpinteiro, posso agora ter um destino diferente”.
Aos 12 anos, Érica viu-se obrigada a deixar a companhia dos pais para estudar na cidade e agora poderá ganhar o diploma universitário sem sair da unidade de conservação em que vive. O sonho é a especialização em psicopedagogia para o trabalho em projetos com crianças para que percam a timidez e tornem-se adultos com autonomia de decisão, reforçando, assim, o ambiente histórico de transformações que marca o Médio Juruá.
[Fotos: Divulgação. As imagens foram realizadas antes da pandemia do novo coronavírus]