Engajamento feminino rompe preconceitos no manejo sustentável de um dos principais ativos da biodiversidade amazônica
A cadeia produtiva do maior peixe de escamas do mundo, com seus dois a três metros e até 200 quilos, ganha cores especiais na comunidade São Raimundo, em Carauari (AM), distante cinco a sete longos dias de barco da capital amazonense, Manaus. Após a captura do pirarucu nos lagos e o transporte fluvial até uma base flutuante na localidade, no início da temporada de pesca, em setembro, um estratégico time de 30 mulheres entra em cena para fazer o tratamento e garantir a qualidade do produto que chegará à mesa do consumidor e ao cardápio de chefs de cozinha que valorizam a iguaria amazônica nas grandes cidades, inclusive do centro-sul do País.
“Como os peixes são capturados à noite, porque na luz do dia a água é clara e eles não entram facilmente nas redes, a nossa rotina no tratamento para retirada das vísceras começa às 23h e vai madrugada adentro até umas 11h da manhã”, conta Irlene Cunha, 49 anos, coordenadora do trabalho, que exige habilidade no facão, cuidados de higiene e qualificação em cursos de boas práticas – tarefa nas demais comunidades realizada exclusivamente por homens. “Somos admiradas por isso”, orgulha-se a ribeirinha, lembrando que, antes do manejo sustentável do pirarucu, iniciado na região em 2009, a mulher estava restrita ao trabalho doméstico ou à roça.
Em 2020, durante uma semana de trabalho, a equipe de Cunha tratou os 390 pirarucus que a comunidade tinha permissão de retirar com finalidade comercial para obter renda, mantendo o equilíbrio da espécie e os estoques naturais para a próxima safra. Além dela, a filha atua na atividade com a função de controlar a planilha de produção, e o filho ajuda a descarregar os botes e fazer a pesagem do peixe. “Cada um ganhou R$ 2.040, devidamente guardados para reformar a casa”, revela.
Apoiada pelo Programa Território Médio Juruá (PTMJ), gerenciado pela Sitawi com recursos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (Usaid), Natura e Coca-Cola, a cadeia produtiva do pirarucu abre novos espaços de empoderamento e oportunidades em região historicamente marcada pelo nível de organização social, condição essencial à atração de parcerias. “É um processo que exige união e não se faz de uma hora para outra”, explica Maria Santa do Nascimento, 38 anos, moradora da comunidade São Raimundo.
Ela, que antes tinha a função de cozinhar para os manejadores durante a captura do pirarucu no lago, atualmente integra a equipe de mulheres no trabalho da evisceração. A roça de mandioca para fazer farinha e a coleta de sementes para extração de óleos vegetais complementam a renda da ribeirinha, que migrou da cidade para a floresta e lá encontrou melhores condições de vida.
O manejo sustentável do pirarucu envolveu 209 famílias em 17 comunidades no Médio Juruá, com produção total de 91 toneladas, no ano passado. “É crescente o aprimoramento da gestão dos estoques pelo território”, afirma Suzy Barros, coordenadora de projetos da Associação dos Produtores Rurais da Carauari (Asproc), responsável pela atividade no âmbito do PTMJ, com o objetivo de melhorar a produção e promover preços justos com acesso a novos mercados para ribeirinhos que vivem em unidades de conservação e ajudam a protegê-las.
Com a pandemia de Covid-19, o manejo ganhou regras dentro de um protocolo para reduzir riscos de contágio, definido coletivamente pelas organizações que integram o Fórum Território Médio Juruá, em cooperação com a prefeitura. “Isso foi possível graças à estrutura implantada pelo PTMJ ao longo dos últimos anos, como acesso à internet e radiofonia, que permitiu melhor comunicação entre comunidades distantes e o planejamento do manejo de pirarucu na pandemia, incluindo testes rápidos de Covid-19 nos grupos que se deslocaram da cidade para as comunidades, além da presença de equipes de saúde em campo”, observa Barros.
O atual plano, segundo ela, é finalizar a obra de um entreposto com frigorífico capaz de estocar 200 toneladas, apoiado pelo PTMJ, na perspectiva de reduzir custos de logística e aumentar ganhos para os manejadores. Em 2020, foi alcançado um preço de R$ 7,83 por quilo, conforme valor estipulado pelo subsídio federal da Política de Garantia de Preços Mínimos para Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), tendo em vista que o pescado ilegal causa desvalorização do produto.
“Devemos garantir remuneração justa pelo processo de mais de 20 anos de vigilância e conservação da espécie pelas famílias”, ressalta a coordenadora. Para isso, diz Barros, “é necessário garantir a qualidade necessária para chegar a mercados exigentes, como o da alta gastronomia”. Um passo neste sentido foi dado com a criação da marca Gosto da Amazônia, gerenciada pela Asproc, de modo a valorizar o pirarucu selvagem de manejo.
Na comunidade do Roque, também no Juruá, 70 famílias participaram da pesca sustentável do pirarucu no ano passado. “É um ótimo complemento de renda e só não foi melhor porque já pegamos o rio cheio devido às chuvas e assim a quantidade diminuiu”, afirma o manejador Raimundo Pinto da Costa, o Cabico. Foram pescados 260 dos 352 peixes da cota autorizada.
O trabalho é desenvolvido com base em pilares como respeito aos limites toleráveis de exploração da espécie, viabilidade econômica e atenção às necessidades sociais dos grupos de pescadores, responsáveis pela contagem dos peixes na natureza para a definição das cotas de retirada junto ao órgão ambiental.
Além de proteger o pirarucu como fonte de sustento das famílias, a fiscalização dos lagos pelos moradores ajuda a conservar igualmente os quelônios, como a tartaruga-da-Amazônia e o tracajá. Em 2020, foram soltos 252 mil filhotes em 17 praias ao longo de rios, conhecidas como tabuleiros. O processo abrange a vigilância das áreas e monitoramento da postura e eclosão dos ovos para coleta, acompanhamento e soltura de volta na natureza após 60 dias. Em três comunidades, a associação local tem licenciamento para destinar uma parte dos filhotes à criação com fins comerciais.
“A atividade tem grande envolvimento comunitário, com gincana, festa, atividades educativas e capacitação de monitores”, revela Gilberto Olavo, gestor da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Uacari, onde o trabalho é conduzido em parceria com associações agroextrativistas, neste ano com cuidados especiais devido à pandemia de Covid-19.
Da andiroba ao murumuru
Além dos quelônios, a área é também palco da produção sustentável de óleos vegetais, em especial o de andiroba, além de manteiga de murumuru, fornecidos à Natura para compor cosméticos. “A atividade garante o sustento na entressafra da pesca do pirarucu e borracha”, destaca José Andrade, presidente da Amaru. Em 2020, a comercialização dos insumos vegetais para a indústria rendeu R$ 411 mil à associação, com repasse de R$ 198 mil aos comunitários, principalmente aos que atuam na coleta de sementes, base extrativista dessa cadeia. São 714 famílias, em 33 comunidades no Médio Juruá.
“Para 2021, o plano é expandir a produção de óleo de andiroba, aumentar a estrutura de armazenamento e dar continuidade à capacitação em boas práticas para garantia da qualidade da matéria-prima coletada na floresta, obedecendo indicadores previstos em contrato com a indústria”, diz Andrade. O processo de secagem das sementes e o rendimento na extração do óleo são os pontos de maior atenção.
As sementes são beneficiadas na EBC Bauana, empresa comunitária criada por um grupo de jovens empreendedores como projeto final de um curso técnico de produção sustentável realizado na RDS Uacari, em 2014. “Sem essa oportunidade, meu destino seria como o do meu pai: cortar seringa e trabalhar na agricultura”, destaca Vagner Menezes, à frente do negócio ao lado de Manoel Silva e Reginaldo dos Santos.
Com apoio da Fundação Amazônia Sustentável (FAS) para gestão e planejamento, a estratégia foi operar em parceria com a Amaru – organização responsável pela comercialização os óleos, manutenção do maquinário e remuneração dos empreendedores e fornecedores de sementes.
Em 2020, apesar da crise provocada pela pandemia, o faturamento atingiu R$ 350 mil, com a produção de 13 toneladas de insumos para a Natura. Agora, a ideia é avançar no varejo. Como forma de diversificação, a empresa criou recentemente a marca Menino dos Óleos, com embalagem de vidro e conta gotas, na perspectiva de ampliar o leque de matérias-primas vegetais, além da andiroba. “A iniciativa faz parte do desafio de disseminar a cultura empreendedora nessas áreas remotas da floresta, aliando economia e conservação”, explica Widney Mourão, coordenador de empreendedorismo da FAS.
[Fotos: Bernardo Oliveira/ Sitawi]
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