Embora apresentem certa dificuldade de mobilidade, as anciãs, na roda aberta, rodopiam e cantam com uma vitalidade fenomenal. “Samba é a vida”, diz uma delas. É preciso vivenciar a festa, participar das cerimônias e dos rituais sagrados e profanos, celebrar com as irmãs, integrar os cortejos, acompanhar a procissão, comer o caruru e o mungunzá, se arrepiar com o canto sagrado e o batuque do samba de roda no Largo d’Ajuda, dançar miudinho. Enfim, viver os folguedos e folias presentes nesses cinco dias
Texto e fotos: Antônio Reis Junior*
Dias 5 e 6: 16 e 17 de agosto
Nessa quarta-feira, mais uma vez, a cidade acordou cedo com o foguetório disparado no Largo D’Ajuda. No entanto, não se viam mais as dezenas de ônibus estacionados na orla do Rio Paraguaçu pois parte importante dos visitantes, vindos de Salvador e de outras cidades do Recôncavo, havia partido. A terça-feira, feriado municipal, dia que marcou o início dos festejos mais profanos da festa, pareceu ter sido o ápice das celebrações da Irmandade da Boa Morte.
Ainda assim, ao descer para a cidade, um pouco mais tarde nessa manhã, com certo cansaço acumulado dos dias, e ao me dirigir a sede, a atmosfera festiva permanecia. É preciso sentir, ver e ouvir com atenção os significados presentes nas comemorações por meio dos cantos, danças, gestos e saudações que partem das irmãs e do público.
Como já lembrei neste diário, a festa rememora e celebra as lutas pelo fim da escravidão que marcaram o percurso da irmandade. Assim, ao festejar a morte e a vida, evoca o pedido das africanas escravizadas, convertidas ao catolicismo, pela abolição e por uma passagem serena para o além túmulo. Convictas na imortalidade da alma, a passagem traria a libertação do cativeiro e de todo o martírio que castigava os escravizados submetidos violentamente a essa condição.
Foi assim, portanto, que as alforriadas passaram a festejar a morte que as libertou de todo o sofrimento, venerando Nossa Senhora da Glória, sua dormição e assunção, com cantos, danças e banquetes na sede da Irmandade.
Curiosamente, hoje também é o dia de Omolu, orixá associado à enfermidade e à cura, que, para os iniciados, afasta a doença que leva a morte, uma entidade que aparece coberta com a palha da costa que esconde as marcas da varíola em seu corpo, e tem, como principal oferenda, a pipoca, muito presente na festa.
Não arrisco aqui inferir outros significados decorrentes dessas associações. Soube, por exemplo, que uma conhecida Juíza Perpétua, o maior cargo da irmandade, já falecida, foi devota desse orixá, assim como outros do panteão do candomblé, como Nanã, uma yabá (orixá com princípio feminino), que se faz presente em símbolos e saudações.
Este é um diário de uma vivência na Festa da Boa Morte, resultado de impressões subjetivas sujeitas a imprecisões, e não uma etnografia. É uma vivência motivada por curiosidade histórica e pela admiração das mulheres negras no Brasil e suas estratégias de resistência, expressivamente manifestadas por meio deste festejo.
Consulto a programação, distribuída em pequenos panfletos editados pela Casa PretaHub, já citada como um guia de boas práticas ao visitante que deve pisar devagar e se portar de forma respeitosa nas cerimônias. Nela está anunciado às 18h o banquete que será oferecido pela irmandade no Largo D’Ajuda – sempre lá – um suculento cozido e o caruru, além da pipoca, do coco e do mungunzá, compartilhado a todas as pessoas como uma forma de comunhão. E o tão esperado samba de roda, representado de maneira arrebatadora por Nega Duda na primeira noite profana.
O dia transcorre rápido com as conversas na sede da irmandade, ocupada por muita gente, sempre com celulares em punho buscando imagens. Uma irmã rememora a criação da irmandade em Salvador, na Igreja da Barroquinha, próxima à atual Praça Castro Alves.
Lá, por volta de 1810, mulheres negras alforriadas que frequentavam o templo e o terreiro Ayá Omi Asé Airá Intilê, reduto africano em Salvador, fundaram a confraria em um terreno atrás da igreja. Ao longo do século XIX, sofrendo perseguição política e intolerância religiosa – repressão que se acentuou após a Revolta dos Malês em 1835, um levante de africanos islamizados – fugiram de Salvador em direção ao Recôncavo e se estabeleceram definitivamente em Cachoeira, onde, tardiamente, na década de 1970, conquistaram a sua sede, a Casa Estrela, fundada pelas assim chamadas “irmãs do partido alto”.
Fim da tarde, a terra cora, e vamos ao largo!
A fila para comer o banquete preparado pelas irmãs já está formada, e é longa. Vale a pena aguardar. É parte integrante dessa “liturgia” tão democrática, acolhedora e generosa. Mesmo sob a chuva que começa a cair no início da noite. Para esperar, tomo mais uma vez o licor de jenipapo e, depois, o de tamarindo, mais azedinho e menos doce.
O samba de roda esquenta a noite fresca:
São Benedito é negro
Eu sou filho de Ogum
São Benedito é negro
Eu sou filho de Ogum
Vem vencer a demanda com Deus pai e Olorum
Vem vencer a demanda com Deus pai e Olorum
São Benedito é negro, eu sou filho de Nagô
São Benedito meu pai, ele é nosso protetor
É o grupo Filhos de Nagô-Rio Paraguaçu, agremiação cultural da cidade de São Félix, na outra margem do rio. As vozes são potentes, os agogôs e timbaus vibram ecoando no largo, assim como a viola e os pandeiros, e o coro de mulheres preenche todo o espaço, acompanhadas pelos ganzás. Tocam, cantam e dançam por longo tempo, com raras pausas, algo impressionante.
Logo a roda se abre, as irmãs vêm sambar, e o público, sobretudo as mulheres, com suas saias rodadas, deslizam sobre o calçamento de pedras acompanhadas de palmas ritmadas de quem conhece o repertório e se encanta com o samba de roda.
A coreografia acontece dentro do círculo de pessoas que naturalmente se forma. Ela é muito diversa, embora se destaque o “miudinho” dançado da cintura para baixo, um delicado sapatear com os pés colados ao chão. A dança coreografada lembra a chamada umbigada – de acordo com o pesquisador Tinhorão, de origem banto – quando uma dançarina convida outra a entrar na roda dando uma umbigada na parceira. Estamos falando aqui de uma expressão cultural tipicamente afrobrasileira, embora incorpore instrumentos musicais de origem portuguesa, como a viola.
O destaque fica para as anciãs que, embora apresentem, em alguns casos, certa dificuldade de mobilidade, na roda aberta, rodopiam, cantam e rebolam com uma vitalidade fenomenal. “Samba é a vida”, diz uma delas, a alegria do povo, que cura as dores do corpo e rejuvenesce a matéria, que se torna leve e flutua, tomada pela felicidade.
Já perto da meia noite, os homens cantam:
“Adeus gente
Adeus que eu já vou me embora
Adeus gente
Adeus, até outra hora”
E esse adeus anuncia o fim de mais uma noite festiva. As pessoas, extasiadas, despedem-se das irmãs que ainda permanecem na porta da sede da irmandade. Na noite seguinte 17 de agosto, a derradeira, tudo se repete, agora com o grupo Filhos do Caquende, nascido no bairro de mesmo nome, em Cachoeira.
A Festa da Boa Morte é patrimônio imaterial da cultura afrobrasileira, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Seus valores simbólicos, sua importância para a comunidade, são dignos de proteção. Por ser intangível e marcado pela efemeridade, pela fugacidade das diversas formas de expressão, modos de fazer, criar e viver, não há acervo material preservado a ser visitado na sede da irmandade, embora ainda possa ser constituído.
É preciso vivenciar a festa, participar das cerimônias e dos rituais sagrados e profanos, celebrar com as irmãs, integrar os cortejos, acompanhar a procissão, comer o caruru e o mungunzá, se arrepiar com o canto sagrado e o batuque do samba de roda no Largo d’Ajuda, dançar miudinho, enfim, viver os folguedos e folias presentes nesses cinco dias. Neste fim de noite de quinta-feira, tudo se acabou. Agora, só em agosto de 2024.
Este diário, embora possa interessar ao leitor, é apenas um retrato um pouco pálido de tudo que vivi nesses dias.
Mãe Bernadete, presente!
Na sexta-feira de manhã, embarquei na rodoviária de Cachoeira com destino a Salvador. No caminho, a estarrecedora notícia do assassinato da ialorixá e líder quilombola Bernadete Pacífico de 72 anos em sua casa-terreiro em Simões Filho, região metropolitana da capital. Em pouco tempo na Bahia, ouvi histórias de ameaças a quilombolas e ataques a terreiros de candomblé, uma triste permanência histórica de um país que criminalizou e reprimiu as ricas e diferentes formas de expressão cultural de matriz africana.
Que a Festa da Boa Morte e todas as formas de resistência da mulher negra no Brasil sejam celebradas e, oxalá, se fortaleçam e tenham vida longa! Mãe Bernadete, presente! Salve a Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte!
*Antônio Reis Junior é historiador e professor
(Acesse aqui o quarto dia)