A redução do desmatamento e o fim dos conflitos de terra na Amazônia dependem fundamentalmente de um bem executado processo de ordenamento territorial e regularização fundiária. O assunto foi tema de encontro promovido por Uma Concertação pela Amazônia, que propõe um fundo para destravar a agenda fundiária
Por Magali Cabral Arte Ueliton Santana
A implementação de diferentes políticas públicas em governos dos últimos 50 anos não conseguiu resolver as disputas por terra na região, ao contrário. Para o professor titular da Universidade Federal do Pará e doutor em Ciência e Desenvolvimento Socioambiental, José Benatti, essas intervenções, desconectadas umas das outras, só agravaram a situação: “Dependendo da fonte, entre 50 milhões e 60 milhões de hectares de terra estão em disputa hoje na região”, afirma.
Benatti foi um dos painelistas do encontro Ordenamento Territorial e Regularização Fundiária – entre Desafios e Oportunidades, promovido pela iniciativa Uma Concertação pela Amazônia, em parceria com o Instituto Governança de Terras, em 16 de outubro. Segundo ele, não se pode passar por cima dessa realidade e achar que novas políticas vão fazer desaparecer os conflitos que estão acontecendo no campo há tantas décadas”, diz.
Mas o evento também mostrou que o governo costura uma série de políticas para retomar iniciativas oficiais de ordenamento territorial e regularização fundiária (OTRF), processos considerados essenciais não só para coibir desmatamento ilegal na Amazônia e os conflitos de terra, mas também para promover o desenvolvimento sustentável da região.
Ordenamento territorial: Consiste no planejamento dos usos da terra em um determinado território, por exemplo, definição da área destinada à agricultura e pecuária, à conservação, ao uso urbano, à instalação de infraestrutura, ao reconhecimento e a proteção do uso da terra por comunidades tradicionais, dentre outros.
Regularização fundiária: Ato do Estado que estabelece direitos formais de propriedade ou concessão de direito real de uso a quem é de direito. No Brasil, o termo significa o reconhecimento do direito sobre a terra por indivíduos ou coletividades em terras públicas, com consequente destaque do patrimônio público e titulação em favor de entes privados.
O OTRF é um tema complexo, sobretudo porque vem cercado de atribuições burocráticas, que envolvem despachos, portarias, decretos, estudos, levantamentos de dados, além de muitos atores e órgãos públicos.
Dois itens dessa agenda ganharam destaque no evento: o Decreto nº 11.688, de 5 de setembro de 2023, que revigorou a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas Rurais Federais (sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar – MDAAF), e o lançamento da quinta versão do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), em 5 de junho. Nesta nova fase, o PPCDAm estabelece, além da meta de desmatamento zero até 2030, a destinação de 31 milhões de hectares de terras públicas federais com floresta até 2027, entre outras ações.
O secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMAMC), André Lima, é um dos responsáveis pelo cumprimento dessa meta e por retomar o processo de criação de Unidades de Conservação, que permaneceu estagnado nos últimos anos.
“Fizemos um grande levantamento por sensoriamento remoto, abrangendo 150 glebas de áreas de floresta públicas federais, com extensão superior a 50 mil hectares, e o apresentamos à recém recriada Câmara Técnica para futura destinação”, informa Lima.
Efetivamente, o governo já destinou 3,75 milhões de hectares para estudos do ICMBio, do Serviço Florestal Brasileiro [Ministério da Agricultura e Pecuária] e da Diretoria de Áreas Protegidas (DAP). E outros 3,8 milhões de hectares foram encaminhados para reconhecimento de territórios indígenas. Segundo Lima, mais de 10 milhões de hectares estão em vias de ter destinação proposta.
Ou seja, de 5 de junho, data do lançamento da nova fase do PPCDAm, até 25 de novembro, data da próxima reunião da Câmara Técnica, mais de 50% da meta de destinar 31 milhões de hectares já terá sido cumprida, de acordo com Lima. “Não se trata ainda de afetação da área [quando as terras já estão cumprindo efetivamente a finalidade pública à qual foram destinadas]”, ressalta. “Esses estudos ainda precisam ser feitos para, a partir daí, serem lançados os processos administrativos padrões, como consultas públicas, delimitação de áreas etc.”
União de prefeitos
Outro movimento em curso na Secretaria Extraordinária é levar o engajamento sobre questões fundiárias do âmbito interministerial para os territórios, onde as coisas de fato acontecem. Para isso, André Lima informa que o governo iniciou diálogos com prefeitos de municípios considerados prioritários – aqueles com as maiores taxas de desmatamento e de degradação florestal –, por meio do Programa União com os Municípios para Redução da Degradação e Desmatamento Florestal. “A ideia é trazer o poder político local para uma agenda mais proativa, com foco na regularização ambiental e fundiária”, afirma.
O critério “degradação ambiental” foi incluído no programa como elemento definidor de prioridade, por ser uma condição que normalmente precede o desmatamento. “É um indicador de para onde o desmatamento está avançando, e assim conseguirmos nos antecipar”, explica.
O Programa União com os Municípios é uma espécie de pacto firmado entre políticos locais e governo federal, segundo o qual haverá uma destinação de investimentos provenientes do Fundo Amazônia proporcional ao desempenho do município na redução do desmatamento e degradação florestal. Quanto mais caírem as taxas, maior o investimento no município. A ideia do governo, segundo Lima, é destinar nos próximos três anos até R$ 600 milhões ao programa.
Em sua participação no encontro, o secretário de Governança Fundiária, Desenvolvimento Territorial e Socioambiental do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDAAF), Moisés Savian, destacou o desafio de recriar o ministério que abriga sua pasta, extinto em 2016, com a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff.
“Neste ano, sem nenhum processo de transição governamental, colocamos de pé políticas que haviam sido redirecionadas ou extintas, como o Programa Nacional de Crédito Fundiário, organizada pelo Fundo de Terras e Reforma Agrária, e criamos a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas Rurais Federais”, comemora. Toda essa pressa não prejudica, segundo ele, os planos de longo prazo.
“Precisamos consolidar no Estado brasileiro uma estrutura fundiária que não privilegie quem atua no contexto de irregularidades e se beneficia com a grilagem”, frisa Savian.
Para isso, o MDA e o Incra estão construindo a Política Nacional de Governança Fundiária Federal. “Organizamos um seminário técnico científico para nos nutrir de informações objetivas sobre a questão fundiária brasileira”, diz Savian, adiantando que essa nova política deverá se basear em várias frentes, sendo uma delas a criação de um cadastro oficial sobre o uso do solo na Região Amazônica. “Não se faz gestão daquilo que não se conhece”, admite. “Temos vários cadastros que não dialogam entre si, que precisam de interação”.
Essa ausência de integração entre os cadastros foi ilustrada pelo presidente do Instituto Governança de Terras e facilitador do GT de OTRF da Concertação, Gabriel Siqueira, logo na abertura do evento. Ele apresentou um exercício mostrando a precariedade do acesso a informações sobre o uso do solo na Amazônia a partir das informações que compõem o cadastro oficial.
Não há um endereço onde as informações estejam organizadas. Existem camadas de diferentes formas de usos do solo dispersas em vários sites de órgãos governamentais. Por exemplo, a localização de terras indígenas homologadas e não homologadas está na base de dados da Funai. Os territórios quilombolas estão catalogados na base de dados do Incra. As Unidades de Conservação constam da base de dados do Serviço Florestal Brasileiro. Além dessas, existem ainda as áreas privadas e outras sobreposições de categorias fundiárias disponíveis, inclusive os vazios territoriais, perdidas em bases de dados dispersas em vários órgãos e organizações dos governos estaduais e federal.
Emergência climática
O professor José Benatti adicionou o tema da emergência climática às discussões. Ele diz que há muitas décadas o País busca, sem sucesso, soluções para a degradação ambiental, a violência no campo e o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. E agora se soma a essas questões o fator da emergência climática. O acadêmico defende a criação de uma instância de soluções de problemas socioambientais, em lugar de sistemas isolados que não conversam entre si.
“As diversas normas jurídicas de ordenamento do espaço apresentam soluções muitas vezes contraditórias, que mais ajudam a criar uma situação de insegurança social, econômica, ambiental e jurídica do que solucionar os problemas”, reclama.
A solução mais imediata tanto para conter o aquecimento global como para avançar nas questões fundiárias, a seu ver, é reconhecer e estimular direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia. Afinal, são eles que mantêm a floresta em pé. “Não podemos esquecer que já estamos em plena ebulição global”, segundo o próprio o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Haja vista que, enquanto rios secam na Amazônia, o Sul vive a calamidade das enchentes e inundações”.
Para Benatti não há tempo para meio termo: “Ou reconhecemos e estimulamos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, ou vão sobrar as cinzas de uma floresta, além de um processo cumulativo de diminuição de chuva e de biodiversidade”.
Conectividade, a ferramenta certa na hora certa
Territórios demarcados, de fato, são territórios mais conservados, concorda a assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas na Amazônia Brasileira (Coiab) e membro do CNJ Direitos Indígenas, Cristiane Baré. Em seu painel no evento, ela demonstrou entusiasmo com a possibilidade de reconstrução das políticas ambientais e indigenistas depois dos anos de retrocesso e de uma crescente invasão de territórios, retirada ilegal de madeira, contaminação dos rios e lençóis freáticos. “O nascimento do Ministério dos Povos Indígenas e a retomada da Funai, agora dirigida por uma parente, a doutora Joenia Wapichana, são um alento, mas é só o começo de uma jornada nada fácil”, afirma.
Baré enumera os empecilhos para a retomada das demarcações e homologações de terras indígenas, com destaque para o sucateamento da Funai. Para contribuir, a Coiab, a maior organização regional indígena do País, faz um monitoramento territorial de crimes ambientais e violência com recursos próprios. “A internet ajuda muito”, diz ela.
“Estamos instalando antenas pelos territórios para recebermos denúncias em tempo real. É uma forma colaborativa de ajudar a Funai nesse processo de reestruturação para retomar os processos de desintrusão [nome dado à retirada de quem não é originário da área legalmente demarcada como indígena] e de demarcação dos territórios indígenas”.
Outro desafio do movimento indígena mencionado por Baré é vencer a resistência do Congresso Nacional e de alguns governos estaduais da região, com perfis anti-minorias. “Não tenho como deixar de comemorar a vitória da derrubada do marco temporal no STF. Mas foi triste ver no dia seguinte os políticos ‘batendo na tecla’ do marco com PECs e projetos de lei, mesmo sendo inconstitucional”. Quanto à pressão de governos estaduais, ela cita o caso que envolve a empresa de fertilizante Potássio do Brasil, cujos planos de explorar potássio em terras do Amazonas tem o apoio oficial. “Continuamos resistindo como sempre, há 523 anos”.
Fundo para agenda fundiária
Enquanto o País se organiza para avançar com a agenda de OTRF em um ritmo mais ágil, seja porque ainda trabalha na reestruturação das instituições desmontadas ou por causa dos gargalos financeiros, o GT de OTRF da Concertação paralelamente vem contribuindo com a agenda. A elaboração do documento Ordenamento Territorial e Regularização Fundiária na Amazônia – do caos à superação, que traça um diagnóstico e apresenta os principais entraves do processo, levou a outra iniciativa. “Enquanto identificávamos os gargalos, percebemos que muitos tinham a ver com a questão orçamentária. Surgiu então a ideia de criar um fundo de catalisação da agenda fundiária”, conta Gabriel Siqueira.
A proposta é fazer um alinhamento com as instituições responsáveis por essa agenda no governo – Funai, Incra, ministérios, governos estaduais etc. –, levantar os pontos mais críticos e fazer aportes de recursos para destravar a agenda, seja na área de contratação de serviços, compra de equipamentos técnicos, entre outros. A ideia do fundo é, junto com as instituições públicas responsáveis, fazer essa grande lista de demandas, formar um conselho técnico científico e decidir onde é mais estratégica a alocação de recursos.
O grande parceiro e executor desses recursos, de acordo com Siqueira, será o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), um mecanismo financeiro nacional privado, sem fins lucrativos, com mais de 30 anos de experiência nessas dinâmicas. “Dentro do Funbio, abriremos uma nova carteira de recursos para captação e alocação pensando nos gargalos mais estratégicos”. A proposta, informa ele, está em fase de formalização legal junto ao Funbio.
A ambição do GT é captar mais de R$ 50 milhões por ano. No entanto, estima-se serem necessários mais de R$ 1,5 bilhão para concluir a destinação de terras públicas, com o reconhecimento de todos os territórios tradicionais indígenas e quilombolas. Ele afirma que já houve um primeiro apoio, da holding Itaúsa, e que outras organizações já começaram a fazer sondagens. “O desafio é grande e serão necessários anos de articulação entre a sociedade civil e governos até sanar tantos gargalos. Essa não será uma batalha de um governo só”, conclui Gabriel Siqueira.