O Brasil é o país com maior potencial de liderar a economia alicerçada no capital natural, enquanto gera desenvolvimento com bem-estar para sua população e preservação de seu patrimônio ambiental. Daí a relevância da agenda de CT&I voltada à bioeconomia de base florestal. Cientes desta importância, dois institutos brasileiros – Arapyaú e Agni – uniram-se em torno da iniciativa “Estratégia para fortalecer CT&I em bioeconomia na Amazônia”, criada em 2023, que se dispôs a mergulhar no sistema de ciência, tecnologia e inovação da região amazônica. Apresentamos aqui as principais linhas e informações da estratégia, seguidas de uma reportagem que aprofunda o tema, mostrando o quanto esta agenda é chave para se reimaginar o desenvolvimento da região amazônica e da própria nação
[Apresentação]
Quem vê a pujança da soja no Brasil, item fundamental da balança comercial e um dos motores de crescimento do País, mal pode imaginar que, sete décadas atrás, o grão estava restrito a um clima temperado no Sul do País e apresentava baixos índices de produtividade. Mas, com o surgimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 1972, o cenário experimentou uma transformação sem precedentes, marcado pelo aumento da produtividade, adaptação da cultura ao bioma do Cerrado, tecnificação do plantio e impulsionamento da agroindústria.
Isso não aconteceu por mágica: resultou de um esforço direcionado a um objetivo, feito de forma coordenada, por meio de um investimento maciço e eficiente em ciência e tecnologia. Tal esforço resultou em inovações genéticas, formação de redes de pesquisa, bolsas de especialização no exterior, cooperação com pesquisadores americanos e criação de centros de pesquisa especializados.
O caso de sucesso da soja, impulsionado por política orquestrada pelo governo, tem pontos em comum com o projeto do Proálcool, que revolucionou o setor de combustíveis, também por meio de ações orquestradas, com objetivos bem definidos – na época, enfrentar com independência a crise mundial do petróleo – e investimento pesado em desenvolvimento científico e tecnológico. O Brasil coleciona ainda outros exemplos nessa linha, como a formação de uma indústria aeronáutica de excelência, mostrando a viabilidade de agregação de valor em um país conhecido como exportador de itens básicos.
Esses casos mostram que, se empregada em torno de metas e demandas da sociedade, a agenda de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) é capaz de gerar transformações profundas e duradouras. Os exemplos fazem parte de um passado autoritário e nacionalista, o que nos apresenta um desafio a mais: atender, dentro de um espaço democrático, a demandas urgentes como o enfrentamento da crise ambiental e climática, a fim de garantir um mundo mais seguro e próspero para as pessoas.
Um dos caminhos para isso é bem conhecido: o desenvolvimento de uma economia baseada na natureza. Mas não é simples quanto parece. Para substituir uma economia ainda muito calcada na matriz energética fóssil, amparada na extração de recursos e geração resíduos na ponta, por outra que seja circular, carbono zero, restaurativa e inclusiva socialmente, será preciso virar a chave do sistema. As formas de produzir e consumir terão de se reinventar, o que requer um esforço maciço em CT&I. Esforço este que requer recursos financeiros, capital humano, político e uma governança inteligente, capaz de promover sinapses entre pessoas, organizações, estados, regiões e países.
O Brasil é o país com maior potencial de liderar a economia alicerçada no capital natural enquanto gera desenvolvimento com bem-estar para sua população e preservação de seu patrimônio ambiental, daí a relevância da agenda de CT&I voltada à bioeconomia de base florestal.
Cientes dessa importância, dois institutos brasileiros uniram-se em uma iniciativa criada em 2023, que se dispôs a mergulhar no sistema de ciência, tecnologia e inovação da região amazônica, intitulada Estratégia para fortalecer CT&I em bioeconomia na Amazônia. Para isso, a iniciativa partiu de uma escuta com mais de 70 pessoas, entre atores locais e especialistas em C&T e bioeconomia de todo o Brasil, dos mais diversos setores: institutos de ciência e tecnologia e fundações de pesquisa, instituições acadêmicas, governos, empresas, bancos e organizações da sociedade civil. Ao diagnosticar o ecossistema de CT&I e bioeconomia na região, a estratégia identificou as frentes prioritárias de atuação. Uma série de diretrizes e alavancas capazes de impulsionar a bioeconomia amazônica foi definida, acompanhada de recomendações para implementação.
O entendimento é de que fortalecer CT&I na Amazônia fará avançar significativamente a geração de valor e de bem-estar, acelerando o desenvolvimento regional, na medida em que leva a maiores níveis de capital humano, à valorização dos ativos da biodiversidade e à maior competitividade econômica. A geógrafa Bertha Becker [1930-2013] não via para a Amazônia outra possibilidade de desenvolvimento que não fosse a formação de uma sociedade tecnológica.
A motivação por trás da iniciativa do Arapyaú e da Agni foi dar um passo anterior ao que geralmente a filantropia faz, que é financiar projetos. “Decidimos dar um passo atrás para encontrar os gargalos e as oportunidades de ciência e tecnologia olhando especificamente para a bioeconomia na Amazônia”, diz Veridiana Nakad, gerente de projetos da Agni. Para Lívia Menezes Pagotto, gerente-sênior de conhecimento do Instituto Arapyaú e secretária-executiva de Uma Concertação pela Amazônia, a principal conclusão após esse mergulho no tema é a necessidade de promover articulações.
“Se há uma palavra-chave nesta história, esta palavra é ‘pontes'”, diz Pagotto. Há um entendimento de que muitas iniciativas na Amazônia, embora boas, não estão coordenadas, o que dispersa os esforços e produz resultados menores do que poderia entregar. Essa descoordenação já havia sido ressaltada em uma rodada temática sobre C&TI promovida pela Concertação em 2022, quando uma ampla gama de atores envolvidos no assunto foram consultados. O encontro contribuiu para a formulação de propostas reunidas no documento 100 primeiros dias de governo: propostas para uma agenda integrada das Amazônias.
Pagotto observa que a Estratégia agora apresentada não tem o desejo de reinventar a roda. “Sabemos que bastante conteúdo já foi produzido. Muito do que fizemos foi uma revisão de literatura, uma revisão de planos e de estratégias anteriores para a Amazônia. Fizemos uma leitura das propostas que os atores da região já trouxeram”, diz.
A reportagem a seguir busca intensificar o debate sobre o desenvolvimento dessa estratégia, trazendo o contexto e as vozes de diversos atores que protagonizam a agenda de CT&I na região e se interessam pelo desenvolvimento da Amazônia e da bioeconomia brasileira.
Boa leitura!
[Reportagem]
Uma estratégia de CT&I para reimaginar o Brasil, a partir da Amazônia
Os brasileiros consomem ínfimos 0,3% do PIB em espécies da biodiversidade do País. O uso sustentável capital natural, entretanto, será chave para o desenvolvimento do Brasil na medida em que gera oportunidades estratégicas para a prosperidade e o bem-estar das pessoas, especialmente neste momento em que o mundo precisa de soluções para as crises ambiental e climática, o que faz da Amazônia um ponto de partida. Mas a economia da floresta somente será impulsionada com investimentos baseados no conhecimento, que por sua vez é gerado por ciência, tecnologia e inovação. Iniciativa dos institutos Arapyaú e Agni, a partir de diálogo com mais de 70 pessoas, propõe uma estratégia para potencializar a agenda de CT&I na Amazônia
Por Amália Safatle e Sérgio Adeodato
Gráficos José Roosevelt Junior | Mediacts
Um dos mais emblemáticos peixes amazônicos, o pirarucu adulto pesa cerca de 100 quilos e mede dois metros, podendo alcançar quatro metros e meio. Só no primeiro ano de vida, o peixe ganha impressionantes 15 quilos. Tamanha majestade simboliza a magnitude da região, exuberante, gigantesca, pródiga por natureza, embora cada vez mais ameaçada pela mudança do clima e pela destruição de hábitats. Conhecido como “bacalhau da amazônia”, um só espécime do peixe, desidratado e salgado, é capaz de nutrir por semanas uma família e tanto, o que faz dessa fonte de proteína um item estratégico na segurança alimentar da população local.
Mas é longe das águas onde a espécie se originou que o pirarucu tem sido criado em larga escala: mais exatamente na Flórida, Estados Unidos. Outro peixe originário da bacia amazônica, o tambaqui, alcança plaga ainda mais distante: a China, que se tornou seu principal exportador no ano passado. Com esses exemplos, o biólogo Adalberto Luis Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa), vaticina: “Em muito pouco tempo, nós vamos perder o bonde da história”.
O bioma amazônico, que se estende por praticamente todos os países do norte da América do Sul, representa uma área maior que a parte continental dos Estados Unidos e a Europa inteira, onde as atividades climáticas e tectônicas ocorridas durante milhões de anos resultaram no que há mais biodiverso no mundo. Val comenta que, somente no que se refere à ictiofauna, o bioma abriga cerca de 3 mil espécies, mas se contam nos dedos as que são objeto de pesquisa. Isso dá uma ideia do quanto falta para desvendar, conhecer, testar e desenvolver por meio de uma economia da floresta.
“A ciência é fundamental para conhecermos a região e entendermos como vão se dar os impactos da mudança climática. Mas, com os investimentos que temos hoje em ciência e tecnologia na Amazônia, não vamos a lugar nenhum”, lamenta Val, do Inpa.
O empresário Pedro Wongtschowski, membro do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e nome de referência em ciência e tecnologia no Brasil, corrobora. “É impressionante o grau de desconhecimento que temos no Brasil sobre a existência dos recursos minerais, sobre a biodiversidade, sobre as espécies vegetais e animais que existem na área, e até mesmo sobre águas, clima, vento. A quantidade de mestres e doutores por habitante na região amazônica é a menor do País, enquanto instituições de ciência e tecnologia na região, e mesmo as universidades públicas, encontram-se com classificação baixa na Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação]”. A formação de pesquisadores, entretanto, tem avançado significativamente na região (saiba mais em infográfico abaixo).
As questões enfrentadas em CT&I refletem o contexto desafiador da agenda de desenvolvimento na Amazônia como um todo, ao mesmo tempo em que oferecem a oportunidade de potencializar a prosperidade e o bem-estar na região.
“Não há nada de errado no DNA dos amazônidas, que não nos permita avançar como qualquer outro estado brasileiro, ou qualquer outro povo no mundo, como os americanos no Vale do Silício, ou os alemães em Berlim”, frisa o empresário Denis Minev, presidente do Grupo Bemol, em Manaus, e investidor na bioeconomia amazônica.
Desproporção
Uma métrica frequentemente citada entre especialistas é a seguinte: em ordens de grandeza, a Amazônia representa cerca 60% do território brasileiro, 13% da população, 9% do PIB e apenas 3% do investimento total de C&TI – sendo este último número apenas uma estimativa. “Isso evidencia a desproporção absurda entre a relevância econômica, a relevância territorial, a relevância populacional e o que é investido, sem falar o quanto a ciência e a tecnologia são centrais para um país que tem a biodiversidade e o capital natural como seu principal patrimônio”, afirma Roberto Silva Waack, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú. membro do Conselho da Marfrig e uma das principais lideranças da rede Uma Concertação pela Amazônia.
Para Waack, a baixa escala de investimentos na bioeconomia – que ainda está na casa de milhares a milhões, quando deveria ser de bilhões –, é apenas um dos problemas. Há gargalos importantes relacionados à gestão dos recursos e à governança, tendo como pano de fundo um contexto desafiador nas mais diversas áreas socioeconômicas, tais como educação, saúde, segurança pública, infraestrutura e conectividade digital, o que torna crucial o olhar de uma agenda integrada de desenvolvimento.
“As iniciativas em C&T na Amazônia são pouco eficientes, há um abandono institucional na região. Não existe uma política nacional voltada para isso, a gestão do recurso existente é fragmentada e falta um modelo de governança da unidade federativa, ou seja, da relação entre os estados e a União na área de ciência e tecnologia. Não existe essa articulação”, aponta Waack.
Segundo ele, como os recursos existentes em CT&I no Brasil estão fragmentados em diversas organizações, é difícil até mesmo dizer que faltam. Tem recurso mal utilizado ou utilizado de uma maneira muito ineficiente para esse fim. Um exemplo, segundo ele, são os sistemas de incentivos e subsídios da Zona Franca de Manaus, que são importantes para criar empregos e renda na região e podem ser ainda mais direcionados para o capital natural (ver infográfico abaixo). Existe, ainda, uma barreira de ordem identitária a ser vencida.
“Tem se observado um debate sobre a pertinência de discutir ciência, tecnologia e inovação na Amazônia fora do âmbito dos atores regionais. Parece evidente que estes tenham de ter o protagonismo central, mas não exclusivo. Felizmente, a Amazônia tornou-se objeto de atenção global, portanto, é inevitável e altamente positivo que esteja no centro de iniciativas envolvendo C&TI nos âmbitos nacional e internacional”, diz Waack.
Na esfera nacional, a Amazônia constitui a maior parte do território e, na esfera geopolítica, seus recursos naturais e, especialmente, o reconhecimento da importância dos povos indígenas na agenda climática e cultural conferem à Amazônia uma importância nunca antes observada. “Uma boa articulação entres os três âmbitos – regional, nacional e internacional – é uma oportunidade única que precisa ser tratada com atenção e objetividade política”, afirma.
Há ainda outros gargalos apontados por especialistas, que vão desde a necessidade de regularidade no fluxo dos investimentos em pesquisa, passando por uma reeducação tecnológica, até um novo modelo mental que coloque o capital natural no coração do modelo de desenvolvimento a ser perseguido pelo Brasil – capital este produzido em grande parte pela Amazônia.
Sem essas mudanças, as oportunidades de trabalho e renda na Amazônia permanecerão limitadas a três situações atualmente vigentes na região, na visão de Pedro Wongtschowski. São elas: atividades industriais de baixa sofisticação tecnológica, comércio e serviços em geral, e atividades extrativas de baixo teor tecnológico, ou até criminosas, como garimpo e extração de madeira ilegais. Para criar novas oportunidades de emprego e renda que ao mesmo tempo conservem e restaurem o patrimônio ambiental, será preciso aumentar o grau de sofisticação das atividades, agregando valor, o que só ocorre por meio do investimento em ciência e tecnologia. Esse desafio deve ser integrado às realidades e expectativas locais.
Ele lembra que as pessoas costumam confundir preço unitário alto com agregação de valor. Um smartphone ou televisão de plasma podem ter alto preço unitário, mas não necessariamente agregam valor. “Se você fizer simplesmente uma montagem de peças [o que ocorre em muitas empresas da Zona Franca de Manaus], a agregação de valor é muito baixa. O mesmo em relação ao valor da terra: o preço do hectare pode ser alto, mas a agregação de valor, baixa”, exemplifica. A reportagem procurou ouvir a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), mas não obteve retorno.
Candido Bracher, acionista do Itaú Unibanco e membro da Concertação, defende o desenvolvimento de uma CT&I “com o objetivo de gerar oportunidades econômicas para região de uma maneira que a floresta em pé seja o projeto mais lucrativo de todos”. “É fundamental que a floresta em pé seja algo compensador para as pessoas que vivem na região. Evidentemente que é compensador para o mundo, mas muitas vezes não é para todas elas”.
Waack, Wongtschowski e Bracher são alguns dos integrantes do Conselho da iniciativa conjunta dos institutos Arapyaú e Agni, criada em 2023 com o intuito de mapear os gargalos e contribuir para uma agenda ambiciosa de CT&I voltada para a bioeconomia, à altura das potencialidades que a região apresenta. A estratégia procura conectar a ciência com as demandas da sociedade, para proteger o ambiente e o clima, considerando que a Amazônia é chave para o equilíbrio climático global, ao mesmo em que pode colapsar – caso o aumento da temperatura no planeta ultrapasse os limites definidos no Acordo de Paris e o desmatamento passe de 20% (saiba mais no quadro abaixo).
Uma estratégia para fortalecer CT&I em bioeconomia na Amazônia
O mundo precisa cada vez mais de soluções para a crise ambiental e climática. E o Brasil é um dos principais países – se não o mais apto – a promover uma economia verde e de baixo carbono, com geração de riqueza na Amazônia e valorização da floresta. Para destravar oportunidades e gerar impacto de longo prazo, o caminho está no desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação em bioeconomia. Esta é a visão de impacto dos institutos Agni e Arapyaú, que entendem a Amazônia como referência de soluções para a bioeconomia.
A estratégia vislumbra a Amazônia como a região capaz de posicionar o Brasil como protagonista de uma nova economia – justa, descarbonizada e inclusiva –, reunindo os melhores talentos para navegar na fronteira do conhecimento de bioeconomia e sustentabilidade, e na vanguarda da ciência, tornando o Brasil referência no saber científico e tecnológico ligado à conservação e uso sustentável da biodiversidade.
Para isso, a estratégia se norteia em três diretrizes e propõe cinco alavancas. Uma das diretrizes é o olhar integrado para CT&I, abarcando ciência local, ciência regional e internacional, conhecimento tradicional e ambiente científico nacional. A segunda propõe uma conexão entre ciência e demanda, estabelecendo uma relação entre ciência básica, tecnologia e mercado, sem olhar de forma estanque para cada uma delas. E a terceira é a inovação orientada a missões, ou seja, concentrar esforços para resolver desafios, evitando a fragmentação.
Entre as alavancas, a número zero, por ser considerada transversal e ter a capacidade de alavancar as quatro demais, trata da implementação de planos e estratégias nacionais e regionais para a coordenação de uma visão e objetivos comuns para CT&I e atividades da bioeconomia na Amazônia. Com base nisso, a alavanca 1 consiste em formar, desenvolver e valorizar o capital humano na ciência, expandindo a base de pesquisadores na região, aumentando os níveis de especialização e ampliando o impacto da ciência. A 2 prevê aumentar a conexão entre ambiente de produção científica e demandas atuais, com intensificação da interação entre os diferentes atores do sistema de CT&I.
A terceira é voltada a ampliar e qualificar os negócios da bioeconomia, por meio da indução de novos negócios e escalabilidade, com apoio à inovação e fortalecimento de condições para maior competitividade e crescimento de negócios. E a quarta pretende acelerar a inclusão produtiva na bioeconomia e atividades correlatas, preparando e especializando a mão de obra para inserção em atividades da bioeconomia.
Dinheiro é crucial, mas não é tudo
Se o Brasil foi capaz de tirar, literalmente do chão, culturas agrícolas como a soja, e pôr no ar aviões de altíssima tecnologia, é porque investimentos foram feitos na escala de bilhões, orquestrados por políticas públicas no agronegócio e na indústria aeronáutica, entre outros exemplos. A economia da floresta, que se tornou um tema na fronteira do conhecimento em todo o mundo, também pode alçar altos voos, desde que haja recursos bilionários e estes sejam bem empregados.
No Pará, estado que vai abrigar a COP 30 do Clima em 2025, a “bioeconomia da floresta viva”, que considera produtos e serviços ecossistêmicos como a captura de carbono, foi definida como prioridade pelo governo do Estado, segundo Marcel Botelho, presidente da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa).
“O governador [Helder Barbalho] já deixou claro que não vamos abrir mão das nossas potencialidades, das nossas fortalezas, como mineração e agropecuária. E temos de inserir a bioeconomia como uma matriz forte. Ela é forte, mas precisa de estudos e desenvolvimento tecnológico”, diz Botelho, da Fapespa. “A Amazônia precisa deixar de ser um projeto e ser concretizada como um investimento.”
Ele afirma que a necessidade de recursos é tão grande, em tantas áreas da bioeconomia, que se torna difícil precisar o volume ideal. O valor previsto na Lei Orçamentária Anual (LOA) para a Fapespa em 2023 foi de R$ 78 milhões, o que representa de 0,3% a 1% da receita corrente líquida do estado. Até hoje, o valor executado pela Fundação foi de R$ 63 milhões. “São valores extremamente insuficientes. Quando se tira a letra A da sigla, esse número pula para R$ 1,5 bilhão”, diz ele, em referência ao orçamento de 2022 da Fapesp, de São Paulo. (A maioria dos estados tem um dispositivo legal que vincula o orçamento das Fundações de Amparo à Pesquisa à sua receita.)
É para São Paulo, Rio de Janeiro e Alemanha que os pesquisadores paraenses precisam despachar amostras coletadas quando faltam, por exemplo, equipamentos mais sofisticados, como analisadores de gases e espectrômetros de massa. “Precisamos de laboratórios de referência. Se pretendemos avançar em biotecnologia para a bioeconomia, não basta coletar folha e semente. Precisamos processar o óleo, analisar a qualidade e certificá-la dentro da Amazônia, para agregar valor à comunidade local’, afirma.
Para isso, não basta só aportar recursos. “Não se faz ciência de alta performance sem bons pesquisadores”, diz ele, que aponta a fuga de cérebros paraenses para outras regiões do Brasil e exterior. Para reter talentos, é preciso infraestrutura de pesquisa, mas também constância e regularidade. “Você compra o equipamento hoje e amanhã ele já precisa de manutenção adequada, caso contrário estará obsoleto ou fora de uso em três anos.”
Val, do Inpa, corrobora: “Mais importante do que infraestrutura numa instituição de pesquisa é massa cinzenta. Se você não tiver pessoal, você pode ter o melhor laboratório do mundo. Não vai adiantar. Precisa de gente. E precisa de gente qualificada”. Dois anos de pandemia e um governo negacionista da ciência agravaram um quadro que já não era o ideal – o Brasil historicamente investe pouco no setor. Sem equipamentos e gente, vários projetos foram descontinuados. “Diferentemente da universidade, as instituições de pesquisa precisam de autorização para contratação de pessoal. Perdemos muita gente na pandemia, outro tanto se aposentou e não conseguimos repor o pessoal”, conta.
Pesquisas interrompidas
A quebra da regularidade atingiu em cheio projetos do Inpa como o de doenças tropicais, o inventário de peixes, a pesquisa química sobre produtos naturais e novos produtos farmacêuticos, o biotério, além das coleções botânicas, cujo prédio não conta com a segurança mínima necessária contra incêndio. Esta questão, inclusive, foi objeto de um artigo publicado em outubro passado no jornal O Globo, onde os autores – os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski – chamam atenção do governo federal para a iminência de um incêndio no herbário de Manaus, à semelhança do que ocorreu em 2018 com o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. À reportagem, Wongtschowski disse que o artigo buscou provocar o MCTI a respeito, para que alguma providência fosse tomada.
“Agora, finalmente, parece que vamos conseguir um recurso, depois do barulho que fizeram”, diz Adalberto Val. Procurado para comentar a segurança do herbário e também a falta de uma articulação nacional para o desenvolvimento da bioeconomia da Amazônia, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) não respondeu à reportagem até a data desta publicação.
Na Embrapa Acre, a falta de regularidade de recursos também afeta as pesquisas, como a da castanha-do-brasil. Apesar do nome e de o Brasil ser o maior produtor da castanha no mundo, quem lidera a exportação é a Bolívia, que encontrou uma saída tecnológica para atender aos padrões fitossanitários. “Isso porque a Bolívia tem um laboratório que o setor empresarial organizou e que faz as análises de aflatoxina aqui na Amazônia. Com isso, conseguiu ocupar o mercado, enquanto o Brasil praticamente não tem laboratórios credenciados que façam esse tipo de análise”, afirma o pesquisador Judson Valentim, presidente do Comitê Gestor do Portfólio Amazônia da Embrapa. Para vender a castanha-do-brasil com casca no mercado externo, é preciso enviar o produto para análise em outras regiões do Brasil ou até mesmo no exterior.
Diante dessa realidade da castanha, a Embrapa Acre tinha projetos em andamento buscando desenvolver métodos mais simples, rápidos e baratos para fazer a análise da contaminação de aflatoxina e também para eliminá-la, como o uso de radiação e de ozônio. Essa é uma pesquisa que foi interrompida e agora começa a ser retomada. “Este caso mostra como a interrupção da pesquisa afetando diretamente o setor privado e, mais importante, as famílias que são extrativistas na floresta, e perdem a oportunidade de agregação de valor ao produto”, diz Valentim.
O pesquisador observa que ondas de expansão e contração de recursos para as instituições de C&TI não são novas, acompanham as crises econômicas no Brasil. E afetam em cheio as pesquisas. “Entre identificar o problema, ter uma ideia, conceber um projeto com propostas e soluções, desenvolver, transferir e implementar a tecnologia, muitas vezes são mais de 10 anos. Qualquer interrupção no fluxo de recursos neste período pode pôr a perder investimentos significativos que já foram feitos”, afirma.
Como regularizar o fluxo de capital
Alguns caminhos vêm sendo debatidos para regularizar o fluxo de capital humano e financeiro. Wongtschowski, por exemplo, acredita que o nó reside principalmente na governança. A seu ver, as organizações sociais apresentam vantagens em relação à administração direta, caso do Inpa.
“As grandes instituições de ciência e tecnologia no Brasil hoje são todas organizações sociais, como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), onde fica o acelerador Sirius. Embora mantidas com recursos públicos, são instituições privadas e operam como tal”, diz Wongtschowski.
Isso significa que dispensam concurso público para contratar um pesquisador – basta um processo seletivo simplificado. “Uma instituição privada, como uma OS, tem mais agilidade e facilidade de renovar os seus quadros do que uma instituição da administração direta”, afirma o empresário.
Há exemplos também na região. A BioTec-Amazônia, instituição privada, apresenta-se como um “centro de inteligência em bioeconomia que promove o uso sustentável da biodiversidade estadual e regional, aliando as demandas empresariais e o conhecimento científico e tecnológico”. Segundo Artur Silva, pesquisador e diretor técnico-científico, a organização foi criada há seis anos a partir de uma decisão da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará. Possui um conselho administrativo composto por pesquisadores brasileiros e representantes da secretaria, além de um conselho de apoiadores formado por empresários, advogados e outras pessoas que se preocupam com as questões da Amazônia.
Genoma do açaí
Silva destaca que, por ser uma instituição privada, a BioTec conta com maior agilidade para a produção científica e autonomia na execução de contratos e convênios com diversos entes. É na BioTec que o sequenciamento genético do açaí está sendo realizado há três anos, com recursos da Fapespa. Segundo ele, o projeto já estava no radar do estado, mas foi acelerado neste ano pela resolução da Comunidade Europeia, que exige rastreabilidade de produtos de exportação que exerçam impacto sobre a floresta, povos indígenas e populações vulnerabilizadas. “O projeto entrou em fase final e agora, falta fazer as pontes com a iniciativa privada para que isso seja incorporado na rotina de produção, seja de uma indústria, seja do pequeno produtor”, diz.
O genoma do açaí não é o único projeto de rastreabilidade e certificação na mira da BioTec, há também as cadeias do cacau, do dendê, dos minérios e da pecuária – baseada também em marcadores genéticos. “Este é um projeto que estamos desenvolvendo em parceria com países e laboratórios da Europa, especificamente Alemanha e França. Criando essa network internacional, poderemos garantir que não estão sendo exportados e consumidos produtos que não sejam de áreas regulares da Amazônia”, diz.
O diálogo da BioTec se dá com o setor empresarial, com iniciativas como o Instituto Amazônia+21 (do qual é membro), a Confederação Nacional da Indústria, as confederações estaduais e o Sebrae (mais sobre o Amazônia+21 e ferramentas de financiamento híbrido neste webinar). Mas Silva vê como maior gargalo justamente o setor produtivo nacional.
“Falta o setor privado realmente abraçar essas iniciativas que visam a proteção da floresta”, afirma Silva, da BioTec-Amazônia.
Milhares de alunos para a bioeconomia
Outro caminho que vem sendo buscado é a criação de um instituto pan-amazônico, o AmIT, Amazon Institute of Technology, por meio de parcerias público-privadas. O projeto foi idealizado pelo cientista Carlos Nobre, inspirado no modelo do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde estudou e se formou doutor em meteorologia e vem sendo conduzido por Adalberto Val, do Inpa. A ideia é fundar um centro de formação de ponta em graduação e pós-graduação para a bioeconomia da floresta, reunindo pesquisadores do bioma. Com isso, tratativas têm sido feitas com Peru, Colômbia, Bolívia e Equador para criar laboratórios e polos de inovação.
Nobre, que estuda a Amazônia há 40 anos, prevê a contratação inicial de 300 professores, por meio de parcerias com as universidades amazônicas. “Queremos que pelo menos 40% desses 300 professores sejam parceiros das universidades. A ideia é construir isso muito junto, e formar milhares de alunos para essa nova bioeconomia, agregando valor social também e melhorando muito a vida da população local. Os piores IDHs do Brasil estão na Amazônia em suas áreas mais desmatadas”, diz.
Para colocar o projeto em pé, incluindo a infraestrutura e o funcionamento durante alguns anos, pagando todos os salários, foi calculado um orçamento em torno de US$ 900 milhões. A sede administrativa ainda não foi definida – dependerá do interesse dos governos envolvidos. Uma vez que tenha a aprovação dos países amazônicos e o financiamento, a construção deve começar em dois anos, quando já começariam os cursos. Nobre estima que toda essa estrutura, totalmente funcional, deve ficar pronta até 2031. O financiamento pode vir tanto de governos dos países amazônicos, quanto dos bancos de desenvolvimento – BNDES, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Latinoamericano de Desenvolvimento e BRICS – além do setor privado.
A ideia central é trabalhar com endowment (doação). Com o produto dos investimentos desse endowment, vamos transformar informações em tecnologias”, diz Val, do Inpa. A relação com as outras instituições seria na modalidade fill the gap, ou seja, para preencher lacunas. “Onde houver necessidade de informação adicional, conversaremos com os grupos de pesquisa nas universidades, nos institutos de pesquisa, e financiaremos a produção da informação que falta. Isso de maneira muito rápida, para obtermos a informação e dar o retorno para a sociedade”, diz Val, destacando que a contratação de pesquisadores seria facilitada por mecanismos mais flexíveis que os dos institutos públicos.
Ele dá um exemplo de um projeto fill the gap. Na Amazônia, a carne e o peixe continuam sendo embrulhados em folha de bananeira, enquanto o vasto conjunto de material biológico da região permite produzir embalagens fantásticas para colocar o peixe na melhor embalagem possível, tanto para o consumo local, como para fora, no Brasil e exterior. “Mas a gente continua usando o quê? Plástico e papelão, que é o convencional. Precisamos ser disruptivos para oferecer alternativas em embalagens. O mesmo para o mel que é produzido.”
Fortalecimento da rede local
A pesquisadora Tatiana Schor, vinculada à Universidade Federal do Amazonas, chefe da unidade Amazônia do BID, lamenta a falta de recursos que acomete a Rede de Recursos Humanos e Inteligência para Sustentabilidade na Amazônia (Rhisa) plataforma que une ciência, governos, indústria e sociedade civil.
“Nem eu, como BID, consegui pôr dinheiro na Rhisa. Porque esta não é uma mercadoria fácil de ser vendida, não é glamurosa, não é uma bolsa Chanel”, diz a ex-Secretária de Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação do estado do Amazonas. “Não nos vendemos como salvadores da bioeconomia.”
Conhecedora do chão da floresta como poucos pesquisadores, Schor defende que antes de criar novos laboratórios e fazer bioprospecção na Amazônia, é preciso fortalecer o que já existe. A sigla Rhisa remete aos micro rizomas, rede de fungos no solo que nutre e sustenta a floresta. Foi então que ela começou a mapear a distribuição de mestres e doutores no Amazonas. Somente no estado, a rede mapeou mais de 40 mil currículos, acadêmicos, grupos e associações indígenas e cooperativas.
“Além de colocar o perfil de cada um deles, nós queríamos que as pessoas também usassem a rede como um instrumento de trabalho. Porque muitas vezes você tem uma chamada de cooperação de pesquisa e nem conhece o sujeito da sua área. Você conhece o pesquisador da USP, mas não aquele que está trabalhando na cidade vizinha”, diz.
Para ela, é errada a visão da Amazônia como um vazio de cérebros, e até mesmo uma injustiça diante da quantidade de conhecimento tradicional acumulado. “A Rede Rhisa comprovou o contrário do vazio. Por isso, é preciso construir em cima dos alicerces que estão lá. A experiência que temos, após 25 anos fazendo pesquisas na Amazônia, mostra que as pessoas vêm e vão embora” (a seguir, o mapeamento de estruturas ligadas à inovação).
Enquanto isso, os estados buscam alguma articulação, segundo Botelho, provocada pela escassez de recursos do governo federal nos quatro anos do governo anterior. Ele cita como exemplos a iniciativa Amazônia+10 – formada pelos nove estados da Amazônia Legal mais São Paulo – e que hoje já poderia ser chamada de Amazônia+25, pois integra 25 fundações. Além disso, Rede de Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal (Bionorte) envolve mais de 30 instituições na área de biotecnologia, com mestrado, doutorado e pós-graduação. Mas encontra barreiras na legislação: por ser uma rede, não encontra espaço nos financiamentos, porque a regra diz que o financiamento deve ser para uma única instituição.
“Estamos muito aquém do que precisa, mas não posso deixar de reconhecer que há uma evolução em curso”, afirma Botelho.
Tecnologia de cérebros
Os bons exemplos existem e podem ser exponenciados. Um deles vem da própria Fapespa. O cacau de maior produtividade é cultivado no Pará, na região da Transamazônica, mas há na circunvizinhança uma doença terrível, chamada monilíase, considerada mais desastrosa que o fungo vassoura-de-bruxa. Está na Colômbia, no Equador e, se atravessar a fronteira, será um desastre. Isso requer uma tecnologia de reconhecimento genético, cujo projeto foi financiado pela Fapespa, com potencial para ser empregado no monitoramento dessa e de outras doenças.
“Isso é tecnologia aplicada à defesa agropecuária, à defesa fitossanitária. Estamos falando de um projeto que aparentemente é básico, mas com impacto importante em uma cadeia produtiva. O produtor poderá nunca ter ouvido falar desse financiamento, mas nós sabemos que a produção dele está garantida por um projeto que nós aprovamos agora”, diz Botelho.
Essa conexão entre ciência e a vida das pessoas é o que falta fortalecer, na avaliação de Denis Minev, do Gurpo Bemol. Ele observa que uma das áreas de maior corte orçamentário nos últimos anos foi na ciência e tecnologia. “E sem uma chiadeira muito grande da sociedade civil. É claro que os cientistas reclamam quando você corta recursos do CNPq, da Capes, mas o brasileiro médio não reclama”, afirma. Minev entende que a ciência brasileira falha em mostrar a capacidade da CT&I gerar riqueza e transformar a vida das pessoas. Por isso, não ganha o apoio popular.
O empresário tem procurado investir em alta ciência, que ao mesmo tempo se aproxima das demandas de mercado, fazendo a ponte entre a pesquisa e a sociedade. Hoje já são oito startups, nascidas em universidades. Por meio do Fundo Emerge, por exemplo, pode ser criado um novo produto farmacêutico com base na biodiversidade brasileira. Uma pesquisadora descobriu que o extrato da pimenta-de-macaco, quando aplicada à pele, tem potencialmente um efeito benéfico para tratamento de psoríase. “Estamos agora em tratativas de licenciar o laboratório Aché para conduzir o processo farmacêutico, que é notoriamente longo e requer investimentos na casa de dezenas de milhões”, diz.
Outro caso é de um pesquisador da Universidade Federal do Amazonas, que extraiu um óleo a partir do resíduo da castanha-do-brasil. Esse óleo contém uma combinação de proteínas muito rara de encontrar no mundo vegetal, o que atende às necessidades do consumidor vegetariano. “A BRF Foods está interessada em adicionar essas proteínas em alguns dos seus hambúrgueres [plant-based]. Primeiro investimos na ciência, e agora estamos investindo na construção de uma planta para extrair o óleo e vendê-lo para a BRF”, conta.
Estes são exemplos do que Minev chama de tecnologia dos cérebros, um fenômeno que será eminentemente urbano, mas usando a floresta como laboratório. Essa nova abordagem deveria substituir uma mentalidade à qual, segundo ele, o Brasil ainda está preso: a mentalidade militar dos anos 1970. “Os últimos que pensaram de verdade em uma estratégia para a Amazônia foram os militares, com rodovias, hidrelétricas, mineração e ocupação de território com a Zona Franca. Você pode não concordar com a estratégia deles, mas havia uma estratégia. De lá pra cá, os governos de esquerda ou de direita tentaram, no máximo, suavizar a visão militar, mas sem nunca mudar essa visão”, diz. Ou seja, continuaram presos ao paradigma desenvolvimentista.
“Nós precisamos repensar a estratégia para a Amazônia”, diz Minev. O problema, contudo, é político, antes mesmo de ser científico. “Nenhum político conseguiu imaginar e articular isso de uma forma que trouxesse votos e apoio. O Brasil não está convencido de que a prosperidade na Amazônia é um tema muito relevante. Mas a Ciência & Tecnologia é um dos raros segmentos que tem o poder de substituir e de reimaginar uma economia”.
Inovação como nunca se viu
Se os países amazônicos como o Brasil conseguirem construir uma economia de base florestal, tendo o capital natural como base do desenvolvimento, este será um feito inédito na História da civilização. O único país tropical desenvolvido no mundo é Cingapura, uma ilha da região equatorial, na transição do Oceano Índico para o Pacífico. Mas que não se desenvolveu pela floresta, observa o cientista Carlos Nobre. Segundo ele, a economia de Cingapura depende praticamente zero dos produtos da biodiversidade. O seu desenvolvimento começou nos anos 1960 e 70, com as indústrias fóssil e naval e, a partir dos anos 1990, no mundo digital, enquanto quase toda sua floresta desapareceu.
“Não há nenhum país tropical no mundo em que o potencial da sua biodiversidade tenha se tornado economicamente possível”, diz Nobre. Globalmente falando, o Homo sapiens já utilizou mais de 7 mil produtos da biodiversidade global durante sua existência de 250 mil anos. Mas hoje, com 8 bilhões de habitantes, 80% da necessidade de alimentos vêm de 13 produtos, sendo oito grãos e cinco animais, principalmente boi. Esse é um problema grave de uma evolução global, não tem nada a ver diretamente com o País”, afirma Nobre.
A questão é que o Brasil perde oportunidades ao repetir o modelo de monoculturas, importado especialmente dos países do Hemisfério Norte, no momento em que o mundo começa a reconhecer a importância do capital natural e das Soluções baseadas na Natureza para enfrentar a crise climática e de biodiversidade. “Nós miramos no modelo de desenvolvimento da América do Norte e da Europa e não prestamos atenção na cooperação entre o capital existente no País e a sua necessidade de desenvolvimento tecnológico. As poucas exceções não estão ligadas à valoração do capital natural, mas sim à conquista da terra com a substituição desse capital, por meio da agenda do agronegócio, por exemplo”, diz Roberto Waack, da Concertação.
“A tecnologia desenvolvida no campo do agronegócio representou a dominação da natureza de uma forma extrativista, no sentido de tirar e substituir. Tira a floresta e põe outra coisa no lugar. É assim que nós historicamente lidamos com a natureza. O que me incomoda é que o Brasil não conseguiu até agora prestar atenção nesse patrimônio como um ativo do País”, complementa Waack.
Para se ter ideia da subutilização do capital natural, o País tem incríveis 16 mil espécies de árvores em todos os nossos biomas, mas 98% da silvicultura brasileira é composta por eucalipto e pinus, duas espécies exóticas, exemplifica Nobre. O Brasil apresenta os maiores índices de biodiversidade do planeta em todos os seus ecossistemas, enquanto os 203 milhões de habitantes consomem míseros 0,3% do PIB em espécies da biodiversidade – 30 vezes menos do que apenas um item do cardápio: a carne bovina.
Isso dá a dimensão do desafio e do potencial transformador da ciência, da tecnologia e da inovação. Quando falamos em inovação, é de fato descortinar um novo mundo, para uma nova civilização, tendo a Amazônia como ponto de partida.