A rede Uma Concertação pela Amazônia celebra cinco anos de existência em evento organizado em cinco atos, que exploram dimensões fundamentais para o futuro das Amazônias e se relacionam com temas estruturantes — do cuidado com os territórios à educação, da ciência às economias da floresta viva
Por Amália Safatle
Com participação aberta a toda e qualquer pessoa que se importa com a questão amazônica, a rede Uma Concertação pela Amazônia completa cinco anos de existência, agregando mais de 1.300 pessoas e organizações. Gestada entre os anos de 2019 e 2020, a Concertação colocou-se como um espaço plural e democrático. Era um momento em que o País enfrentava momentos importantes do ponto de vista da agenda da sustentabilidade e dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que crescia a percepção do papel da Amazônia, em suas diversas paisagens e diversidades socioculturais, como um elemento central para a proteção do clima e da natureza, no Brasil e no mundo.
“A Concertação nasce para que a gente possa aproximar mais a Amazônia do Brasil, e o Brasil da Amazônia, explorando juntos um imaginário, mas também ações muito concretas para a prosperidade da região”, afirma a secretária-executiva Lívia Pagotto, durante a 33ª plenária, realizada em 30 de junho, dedicada a celebrar a data.
O encontro, conduzido por Fernanda Rennó, responsável pela área de Cultura e Arte da rede, faz jus ao nome da Concertação, inspirado em um concerto em cinco atos que são desenvolvidos entre o “prelúdio” e a “coda” (trecho musical que encerra uma peça). Cada ato explora uma dimensão fundamental para o futuro das Amazônias e se relaciona com temas estruturantes da rede — do cuidado com os territórios à educação, da ciência às economias da floresta viva.
O prelúdio, “dedicado a abrir sentidos, escutar a floresta e observar o que pulsa”, segundo Rennó, traz a expressão de diversos artistas, como Marcela Bomfim, Hadna Abreu, Helô Rodrigues e Rafael Prado – natural do Alto Rio Madeira, em Porto Velho. Seu trabalho “Povos Amazônicos Não Morrem, Viram Semente” – que no momento “veste” os espaços de comunicação da Concertação –, remete a uma memória de infância, na qual as grandes árvores que circundavam a capela da sua região foram derrubadas.
Prado faz uma ligação entre as árvores e as pessoas – ativistas, ribeirinhos, indígenas, indigenistas e castanheiros – que de alguma forma vivem da floresta, a protegem e acabam assassinadas. “São pessoas que foram plantadas, deram frutos e deixaram legados. O papel do artista é para encantar e trazer de volta a memória dessas situações que foram silenciadas”, acredita.
Ato I: Comida, cuidado e memória
Elemento capaz de unir todos ao redor de uma mesa, o alimento é o tema escolhido para o “primeiro ato” do encontro, servindo como um elo entre todos os outros temas importantes para o desenvolvimento integrado da Amazônia. Joana Martins, chef de cozinha, sócia fundadora da empresa Manioca e diretora do Instituto Paulo Martins do Pará, enfatiza que a Amazônia é sabor, textura, saúde para o corpo e a alma. “A Amazônia, através da sociodiversidade, nos oferece tudo que o mercado contemporâneo quer, tudo que as tendências mundiais afirmam: alimento bom, gostoso, natural e saudável. Mas, para que seja melhor, só precisa que seja justo”, defende.
A grande questão, segundo ela, não é o que a Amazônia pode oferecer, mas sim como deve oferecer. “Precisamos escalar a produção, mas não com monocultura. Precisamos produzir mais, mas não com agrotóxicos. Precisamos ser mais eficientes, mas não excluindo pessoas. Precisamos de padronização, mas sem afetar a biodiversidade. Precisamos de tecnologia, mas muito mais social do que digital”, diz Martins, acrescentando a importância de pensar sobre a produção de alimentos sob uma perspectiva mais sistêmica, que pondera seus impactos no uso da terra e na conservação ambiental, na saúde humana e na agregação de valor e geração de emprego e renda.
A indígena Renata Peixe-boi, cozinheira na Cozinha Boca da Mata, empreendedora social e ativista no Amazonas, destaca o papel das escolas na formação desse pensamento: “Não é admissível que uma criança, hoje, ainda coma carne enlatada, que vem de longe, em uma escola na Amazônia. A gente não pode aceitar isso”, diz. Segundo ela, o primeiro lugar que deseduca é aquela escola onde o fruto do quintal e da riqueza da floresta não chega na merenda escolar.
Por isso, ela destaca como positiva a iniciativa da Comissão de Alimentos tradicionais dos Povos do Amazonas (Catrapoa), liderada pelo Ministério Público Federal e outras instituições voltadas a fazer chegar na merenda escolar o alimento produzido pela agricultura familiar, respeitando a produção local, a diversidade, a sazonalidade e o ritmo de produção da floresta.
Renata Peixe-boi aponta ainda a necessidade de refletir sobre os sistemas produtivos nos quais as populações amazônidas estão inseridas. Ela questiona a lógica econômica que transforma tudo em uma grande produção, sem enxergar os modos de vida associados àquela produção, e que precisam ser considerados inclusive do ponto de vista da segurança alimentar.
Um exemplo disso é a produção de açaí, que se tornou de larga escala, sem os devidos cuidados com a exploração, e hoje falta na mesa da população local ou tem preços exorbitantes. Isso mostra como é íntima a relação entre conservação do território, modos de produção e alimentação. Nutrir a floresta e nutrir as pessoas é uma relação presente também na saúde, tema do segundo ato da plenária.
Ato II: Saúde para as pessoas e para a natureza
O debate promovido sobre saúde durante o encontro considera a relação entre o corpo individual (as pessoas) e o corpo coletivo (a sociedade e o ambiente). Neste entendimento, a saúde não é simplesmente a ausência de doença, mas também o cuidado com o território, com as tradições e com os vínculos locais. Duas visões complementam-se nesse quadro, a de Altair Farias, que é enfermeiro e professor da Escola Superior de Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Amazonas, e de Márcia Castro, professora titular de Demografia, e chefe do Departamento de Saúde Global e População na Escola de Saúde Pública de Harvard.
A fala de Farias surge de um questionamento: como valorizar as práticas de saúde já existentes nos territórios para reinventar e aprimorar a oferta de saúde na Amazônia? Indígena do povo Omagwa-Kambeba, ele nasceu na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, e desde muito cedo conheceu práticas tradicionais de saúde. Nas margens dos rios, povoamentos, lagos e igarapés, onde muitas das vezes o sistema formal de saúde não chega, existem especialistas e detentores de conhecimentos que cuidam dessa população, com base em seus saberes ancestrais para a produção de saúde no território, a partir dos recursos disponíveis na natureza.
Segundo ele, nas várias Amazônias habitam grupos sociais com diferentes cosmovisões sobre doenças conhecidas, como malária, tuberculose, hipertensão e diabetes, mas também para outros tipos de doenças e agravos ligados à cultura. Grupos sociais como povos indígenas, quilombolas ribeirinhos e outras populações tradicionais reconhecem, por exemplo, o quebranto, o mau-olhado, a mãe do corpo, a doença do ar. Para tratá-los, esses grupos usam as plantas em chás e infusões, e partes de animais para fazer remédios que serão usados para tratar os curumins, as cunhantãs, os adultos e os idosos.
“São práticas que chamo de sincretismo terapêutico multicultural, que precisam ser conhecidos e considerados pelo sistema formal de saúde, a fim de aprimorar a oferta de saúde na Amazônia. A melhor forma de fazer essa integração é adotar o conceito de interculturalidade, onde nenhuma cultura deve se sobrepor à outra”, afirma Altair Farias.
“Até porque, para a população, esse sistema converge em um único sistema de tratamento, o que chamo de um hibridismo em saúde. Esse sistema requer a valorização dos saberes e práticas ancestrais durante todo o itinerário terapêutico do paciente amazônico”, acrescenta.
Ele destaca a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, que tem como uma das principais diretrizes a articulação da biomedicina com a medicina indígena; a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas; e também a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares.
Marcia Castro ressalta o ineditismo do Sistema Único de Saúde (SUS), que fez do Brasil o único país com mais de 100 milhões de habitantes a ter um sistema de saúde universal e com acesso gratuito à população. Mas, justamente em função do tamanho continental do País, ela afirma que o SUS precisa ser adaptado às muitas realidades regionais. “O SUS da Amazônia, por exemplo, precisa ser resiliente ao clima, às distâncias, às culturas e aos desafios ambientais. Precisa funcionar por terra, por água e pelo ar. E a ponte entre o SUS e a Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, precisa ter uma governança mais bem estruturada para garantir a plena atenção à saúde indígena.”
A exemplo do programa Cisternas, que foi vital para ofertar água à população do Semiárido brasileiro, estratégia semelhante poderia garantir água para consumo e para lavouras em períodos de seca na Amazônia. Além disso, o uso de drones pode viabilizar a entrega de testes, remédios, vacinas, sangue e alimentos em áreas mais distantes, que somente são acessadas por barco e que ficam completamente isoladas em períodos de estiagem severa, como se viu em 2023 e 2024. “Essa tecnologia revolucionou o sistema de saúde em Ruanda, na África, onde estive há duas semanas”, conta.
Ela lembra que essa tecnologia já é usada amplamente pelo agronegócio, que teria a oportunidade de cooperar com o setor da saúde. Castro acrescenta que o uso de drones, o atendimento de saúde remoto e a presença de agentes comunitários de saúde bem treinados compõem uma tríade de alto impacto em potencial na saúde do Amazonas. “As ambulanchas, usadas pela FAS [Fundação Amazônia Sustentável], e as unidades de saúde fluviais já são realidade, mas precisam ser expandidas e ter o financiamento adequado para garantir atendimento a populações ribeirinhas”, recomenda.
Para a especialista, a saúde na Amazônia depende também da interação com outros setores do governo. Por exemplo, com o planejamento urbano, para que a floresta não seja substituída por cidades sem árvores e sem infraestrutura. Com o meio ambiente, para que o desmatamento e o garimpo ilegal sejam coibidos e, quando aconteçam, gerem um alerta para que a saúde possa desencadear ações mitigatórias. Com a segurança pública, para que a presença das facções na Amazônia não interrompa as atividades regulares da saúde. E com a educação, para que o conhecimento sobre saúde, a importância da interação com a floresta e a noção de crise climática estejam presentes nos currículos desde cedo – o que remete ao terceiro ato da plenária, sobre ensino.
Ato III: Aprender para permanecer
Educar nas Amazônias é uma forma de resistência, de permanência e de reinvenção. É o que experimenta na prática Luísa Pereira de Souza Neto, diretora do Centro de Ensino Antônio Sirley de Arruda Lima, escola estadual em Formosa da Serra Negra (MA). Seu desafio é fazer com que os jovens se sintam pertencentes ao território amazônico, o que passa por entender e valorizar a própria cultura, a história e a origem. Nestes tempos em que o mundo é marcado por avanços digitais e pela Inteligência Artificial, os jovens são cada vez mais atraídos para outros universos e correm o risco de perder a conexão com suas raízes.
A escola integra o Programa Itinerários Amazônicos, realizado pela Concertação com os institutos iungo, Reúna e outros parceiros. A iniciativa, que promove a Amazônia nas escolas brasileiras, disponibiliza unidades curriculares baseadas em temas amazônicos e de acesso livre e gratuito para os itinerários formativos do Ensino Médio, produzidas em colaboração com jovens, educadores e redes de ensino da Amazônia Legal.
“No início da concepção desse programa, nós escutávamos muito dos jovens do território que eles não se enxergavam nos seus materiais didáticos. Foi uma informação muito importante para tentarmos construir, junto com as redes de ensino, um material e formações que conseguissem trazer as especificidades de cada rede e de cada território para dentro da sala de aula, com o intuito de reforçar essa relação dos jovens com o seu território e para que, assim, permaneçam nele”, conta Fernanda Rennó, da Concertação.
Alcielle dos Santos, diretora de educação do Instituto iungo, acredita que a chave desse processo reside em uma dupla de palavras: conhecer e reconhecer. “A primeira coisa que conhecemos, ainda no ventre, é a voz da mãe. Em seguida aprendemos a reconhecer rostos, ainda bebês. É conhecendo e reconhecendo que vamos nos tornando humanos. Isso nos ajuda a ter uma inspiração que é ancestral, que vem do passado, que nos constitui, e que será importante para a nossa construção de futuro”, diz.
“Quando falamos de Amazônias, falamos de um território que precisamos conhecer – no caso das pessoas que não são da região – e reconhecer, no caso de quem é da Amazônia, mas que ainda não reconhece todas as pluralidades do seu próprio território. Em educação, é fundamental que o conhecimento e o reconhecimento das pessoas e das histórias se dê para que haja construção”, explica.
Santos frisa que só a educação em si mesma não tem como garantir todas as respostas, mas diz não ter dúvidas de que tudo passa pela educação. “Então, que seja uma construção tão bonita como tem sido nesses últimos cinco anos e que nós possamos continuar conhecendo e reconhecendo os próximos passos a serem dados, mas vivendo no tempo presente.”
A união entre conhecimento passado e presente se mostra como chave tanto para a educação, como para a inovação científica, tema do quarto ato.
Ato IV: Inovação e ciência desde o território
A temática da inovação, debatida durante a plenária, não se resume ao avanço tecnológico, mas abarca também ancestralidade, natureza e imaginação coletiva. O trabalho de pesquisa do jovem Eli Minev, de 18 anos, estudante em Manaus, exemplifica essa síntese.
“Estou aqui para falar sobre como a gente pode integrar ciência ancestral e ciência acadêmica na construção de novos caminhos de desenvolvimento para a Amazônia”, diz.
Tudo começou quando ele decidiu estudar um alimento tradicional da floresta, o ariá, um tubérculo similar a uma batata (saiba mais nesta reportagem publicada pela Página22).
O estudante queria entender qual era o valor nutricional desse alimento e se este poderia ser uma alternativa viável no combate à insegurança alimentar na região, principalmente no contexto de crise climática e de eventos extremos sofridos com maior frequência e intensidade na Amazônia, como secas e cheias severas.
Ele analisou a composição, a presença de aminoácidos e demais dados técnicos, mas percebeu que só isso não bastava, estava faltando algo. “Para falar de verdade sobre esse tubérculo, eu precisava ouvir quem o cultiva, colhe e cozinha há gerações. Foi aí que a ciência ancestral entrou no meu projeto”, relata.
O jovem Minev passou a dialogar com lideranças indígenas e comunidades tradicionais, além de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Entendi que esses dois mundos do conhecimento, o acadêmico e o ancestral, não competem, eles se completam. A ciência do laboratório explica toda a parte nutricional, mas a ciência da floresta transmite uma sabedoria que não cabe em nenhuma tabela. E quando essas duas ciências se encontram, surgem soluções que sozinho eu jamais teria imaginado.”
O projeto cresceu, chegou a feiras de ciências em escolas, foi implementado em hortas urbanas, inspirou parcerias e virou um livro: Ariá – Um Alimento de Memória Afetiva, publicado pela Editora Inpa em coedição com a Editora Valer. Ilustrado por Hadna Abreu, foi publicado em português, inglês e na língua Tukano, de modo a alcançar povos indígenas e comunidades tradicionais.
“Quando penso no futuro da Amazônia, não penso só na parte da tecnologia, mas também na escuta e em reconectar o que nunca deveria ter sido separado desde o início”, acrescenta Eli Minev. “A gente precisa lembrar que não existe futuro sustentável sem o passado. A ciência ancestral é a raiz da ciência moderna – e são as raízes que sustentam as árvores mais altas da floresta”.
E não só as raízes, mas toda a microbiota que existe na floresta. O biólogo Arthur Silva, assessor da reitoria da Universidade Federal do Pará e diretor técnico científico da BioTec-Amazônia, cita um estudo da Sociedade Americana de Microbiologia, em que um grupo de pesquisadores coletou amostras no solo de uma área preservada (prístina) da Amazônia e identificou 60% de genes biossintéticos relacionados a novas drogas ou potenciais fármacos, incluindo novos antibióticos.
Foi descoberta uma diversidade de rotas biossintéticas de alto interesse, não somente para o Brasil, mas para a humanidade. Silva aponta que há uma carência muito grande de medicamentos, ao mesmo tempo em que sempre se falou da Floresta Amazônica como um grande repositório de moléculas que pudessem ser usadas na medicina. Mas o Brasil conseguiu que apenas uma ou duas moléculas fossem usadas na indústria farmacêutica e cosméticos.
“Isso revela que estamos perdendo esse ativo biológico, justamente o que tem maior valor agregado dentro de todas as bioeconomias. Não temos pessoas ou mesmo mecanismos para poder desenvolver uma ciência de primeiro mundo na região. Não é somente equipamento que falta, mas sim um número maior de pessoas envolvidas em prospecção ou bioprospecção”, afirma.
Ele alerta que o Brasil está perdendo um ativo muito mais importante e valioso que o gado, a soja e a madeira retirada da floresta. “Na verdade, nem sabemos o que estamos perdendo, o que é pior ainda. Precisamos utilizar a tecnologia para fazer dessa biodiversidade um ativo. Moléculas biotecnológicas são justamente o que precisamos para transformar essa Amazônia em uma sociedade tecnológica, como tão bem falou a saudosa [geógrafa] Bertha Becker [1930-2013]”, lembra Arthur Silva.
Com isso, ele lança uma visão de futuro na qual as economias baseiam-se na conservação da natureza, tema do quinto e último ato da plenária.
Ato V: Regenerar e produzir com a floresta
Como produzir sem destruir e, mais que isso, como produzir regenerando a floresta? Essas respostas, cruciais para o presente e futuro, podem ser encontradas no passado, como mostra Noanny Maia, empreendedora de impacto e CEO da Cacauaré.
Poucas pessoas sabem, mas o cacau é nativo da Amazônia, tendo surgido espontaneamente na floresta. Pesquisas em sítios arqueológicos no Peru e no Equador revelam que há 5 mil anos foi encontrada em cerâmicas a teobromina, que é o principal alcalóide do cacau.
“Isso mostra que a floresta contém um conhecimento absurdo que foi muito mal explorado ao longo dos últimos milênios. Os povos da Amazônia nunca separaram a produção da regeneração. A floresta foi criada com manejo inteligente, com sistemas sofisticados, desde a terra preta, os quintais agroflorestais e os consórcios biodiversos. Hoje, falamos disso como se fosse inovação”, diz Noanny Maia. “Então, acredito que a base da bioeconomia da Amazônia está realmente relacionada a sistemas produtivos que não destroem a floresta, porque não era assim que era feito no passado pela nossa população.”
Ela assinala o desafio arqueológico de entender como se davam esses sistemas, visto que os nossos ancestrais não deixaram pistas, como outros povos deixaram as pirâmides – os nossos povos deixaram florestas, terras e culturas.
Não se sabe exatamente quando foi encontrado o cacau da Amazônia brasileira, mas se acredita que o fruto selvagem foi se arrastando pela bacia amazônica até alcançar terras brasileiras entre 5 mil e 7 mil anos atrás. Em seguida, seu uso foi interculturalizado com as populações nativas mesoamericanas, que o utilizavam também como um medicamento e elemento de conexão espiritual com a cura. “Hoje, em 2025, oferecer a medicina do cacau é uma forma de resistência, é recontar nossa história, é regenerar”, diz Maia, referindo-se ao ritual do cacau oferecido por sua organização.
Ela entende que a regeneração da floresta começa, de fato, no reconhecimento da cadeia de valor, levando o protagonismo para as populações primordiais, as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Fazer a ponte entre passado e futuro é também uma preocupação de Marcelo Salazar, cofundador da empresa Mazô Maná. Durante o encontro da Concertação, ele fala da comunidade Rio Novo, no Rio Iriri, na região da Terra do Meio, uma região emblemática da Amazônia que se localiza na fronteira do desmatamento. Em 2005, a grilagem grassava na região, e a missionária e ativista socioambiental Dorothy Stang foi assassinada em Anapu (PA), a mando de fazendeiros.
Ele lembra que era o primeiro ano do governo Lula, tendo Marina Silva ministra do Meio Ambiente e, naquela época, formou-se uma grande força-tarefa reunindo sociedade civil e o governo federal, o que resultou na criação de uma série de Unidades de Conservação. Nos últimos 20 anos, segundo Salazar, esse movimento foi acompanhado da implementação de estruturas de saúde, educação e de um arranjo de economia da floresta chamado Rede Terra do Meio, que hoje comercializa mais de 14 produtos por meio de 40 contratos de venda, gerando aproximadamente R$ 4 milhões de faturamento anual.
Olhando para esse retrospecto, há muito a celebrar, mas a questão é: o que será de agora em diante? A geração passada, a muito custo, conquistou a conservação do território, mas a geração mais nova já nasceu no território conquistado e hoje tem outros anseios, olhando para o futuro de uma outra maneira.
As conquistas, entretanto, não são permanentes. Há uma escalada de pressões contra a agenda socioambiental, a atual conformação do Congresso Nacional é muito desafiadora, e as conferências do clima no âmbito das Nações Unidas não estão conseguindo chegar a um bom termo, principalmente em relação ao volume de financiamento necessário para o enfrentamento da crise climática.
Diante desse quadro que descreve, Marcelo Salazar vê saídas na criação de uma nova geração de negócios da floresta. “Existe aqui uma juventude preparada e querendo experimentar coisas novas”, afirma. Ele vê potencialidades ao se juntar o aprendizado de associações e cooperativas com o investimento de impacto. E visualiza empresas com investidores e a comunidade como sócia, em um modelo que una produtos e serviços socioambientais.
Mas ele ressalva que uma bioeconomia de produtos da floresta, por mais eficiente que seja, não será suficiente. É preciso agregar a economia dos produtos à economia dos serviços socioambientais, sejam eles crédito de carbono e de biodiversidade, sejam instrumentos financeiros, como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF) e outros mecanismos que ajudem a trazer uma camada extra de recursos para floresta (mais sobre TFFF nesta reportagem da Página22).
“Entendo que esses novos recursos não podem ser aterrissados em um modelo Bolsa Floresta, e sim por meio de um modelo que valorize o modo de vida e gere bem viver, agregando tecnologia aos processos, e adicionando valor a cada quilo de castanha, de babaçu, copaíba, andiroba etc.”, diz.
Como exemplo, ele mostra um centro de inovação em Rio Novo, que possui uma mini usina de processamento. Lá são processados castanha e babaçu, e está sendo desenvolvido um processo para desidratar frutas e utilizar na merenda escolar. “O futuro mistura tecnologia, políticas públicas e novos mecanismos de gestão e de financiamento”, afirma.
“É preciso compreender a Amazônia como uma nova fronteira do conhecimento. Ela é um laboratório vivo para a ciência e um campo de inovação para o desenvolvimento sustentável”, já dizia Bertha Becker, com várias de suas falas lidas durante a coda, o momento final da plenária. Todas elas tão atuais como nunca: “O saber local é tão importante quanto o saber científico. É na combinação dos dois que poderemos pensar políticas para a Amazônia. Não se pode salvar a floresta sem salvar as pessoas que vivem nela. A floresta é um território de produção. O desafio é fazê-la produzir sem destruí-la.”
Com esses e outros pensamentos inspiradores, recitados por integrantes da Concertação, a rede mostra que o primeiro passo para proteger a Amazônia – e a humanidade – é se importar com ela. Foi com esse laço que a Concertação reuniu tanta gente nos últimos cinco anos. “Prestar atenção é sempre o primeiro passo. Só depois vem o canto, o zelo e quem sabe o amor. O que a floresta pede é mais simples: a nossa atenção”, escreveu Airton Souza, poeta e professor paraense. Que venham muitos anos mais.