Evento marca o lançamento de estudo sobre bioeconomia indígena e procura dar visibilidade aos conhecimentos e saberes ancestrais. A ciência ocidental, eficaz em traçar diagnósticos, tem falhado nas soluções. Precisa, portanto, ouvir mais, falar menos e compreender melhor os modos de viver e produzir dos povos originários, que são profundamente relacionados ao território e à sua conservação. Embora ainda com pouco espaço no mundo acadêmico tradicional, a literatura indígena cada vez mais se mostra capaz de preencher lacunas de conhecimento
Por Magali Cabral
“A pauta sobre a Amazônia se tornou internacional, mas nunca nos perguntaram o que realmente queremos. Nesses lugares [em que se discutem soluções possíveis para o futuro sustentável da região amazônica e do planeta] é difícil ter presença indígena. Por isso, essa mesa de debate sobre bioeconomia, com dois pesquisadores indígenas e mediada por outra indígena, significa um passo importante na direção de um processo de valorização dos nossos conhecimentos.”
A fala acima é da antropóloga Braulina Baniwa, coautora do documento “Bioeconomia Indígena: saberes ancestrais e tecnologias sociais”, lançado em 22 de fevereiro, durante webinar promovido por Uma Concertação pela Amazônia e Página22. O estudo é resultado de uma colaboração entre a líder indígena, o também antropólogo Francisco Apurinã, o WRI Brasil e a Concertação.
Além dos dois antropólogos, participaram do evento de lançamento a jornalista Ariene Susui, do povo wapichana, (na mediação), o Secretário Nacional de Direitos Territoriais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Marcos Kaingang, o economista de Floresta e Clima do WRI Brasil, Rafael Barbieri, e a gestora de Cultura da Concertação, Fernanda Rennó.
Inspirado nas reflexões do escritor Daniel Munduruku – segundo as quais o indígena vê a terra não como um objeto passível de negociação, mas como parte de sua própria existência –, Francisco Apurinã procurou demonstrar em sua pesquisa que os povos originários têm uma forma própria de estar e de conhecer o mundo que precisa ser compreendida pela sociedade de cultura ocidental.
“O território é nosso bem-viver”, enfatiza ele, ao explicar que a própria existência indígena não seria possível fora de um. Sem território, os povos originários seriam apenas sobreviventes. Daí a luta incessante por uma demarcação definitiva de suas terras.
Por toda essa relevância, a temática da bioeconomia não pode ser abordada em separado do conceito de território. Até por isso, a demarcação e a homologação de terras indígenas é a principal demanda dos povos originários e uma prioridade na gestão do MPI, conforme informa Marcos Kaingang. Em sua participação no webinar, o secretário do MPI sustenta que as políticas públicas relacionadas à geração de renda devem ser pensadas em um segundo momento, pois a demarcação de territórios é um desafio histórico e a principal bandeira de luta dos povos originários.
“Para exercer o modo de vida indígena é preciso ter território. Sem a terra, ficamos muito mais vulneráveis. Quando não há território, municípios, estados e até agências federais não chegam com assistência à saúde, com educação, nem com mecanismos que possam gerar renda”, diz o secretário federal.
Na pesquisa, os autores explicam que, para os indígenas, bioeconomia é a economia contida na terra e escrevem: “Esses lugares [os territórios] recebem dos indígenas um sentimento atrelado a uma relação de pertencimento – não como donos, mas como filhos –, por isso, não são vistos por uma ótica capitalista ou consumista, ao contrário, indígenas, seus territórios e seres que neles habitam comungam de uma relação de interdependência. Seria possível dizer, inclusive, que não são os povos indígenas que estão dentro de seus territórios, mas que os territórios estão dentro deles”.
Francisco Apurinã é natural da Terra Indígena de Valparaíso, às margens do rio Purus, no sul do Amazonas, onde vive o povo Apurinã que lhe chamou Yumuniry (vento forte). É pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade de Helsinque, na Finlândia. Para ele, bioeconomia indígena nada mais é do que desenvolver atividades cotidianas de uma aldeia – plantar, colher, pescar, trançar, desenhar – por meio de manejos sustentáveis.
Mas se for pedido a um indígena para definir bioeconomia – sobretudo os que mantêm pouco contato com a sociedade nacional –, é muito provável que ele não saiba responder. Por outro lado, se for perguntado a essa mesma pessoa se ela comercializa algum produto extraído ou produzido em seu território, certamente responderá que sim.
A viagem
Para explicar o conceito de território segundo a visão indígena, Apurinã, Yumuniry convida a audiência do webinar para “embarcar em sua canoa”. Nesta “viagem”, ele explica que, para o seu povo, além do meio físico onde mora hoje, chamado de terra do meio, o território indígena abriga também a terra de cima – “que por analogia ao cristianismo é chamado de céu” – e a terra de baixo, o subterrâneo.
Escolheu-se viver aqui nesta dimensão física do meio, onde se sente dor e se morre, por causa de um encantamento gerado pelas belezas da natureza e pela organização dos seres – insetos, peixes, animais terrestres, pássaros – em ecossistemas. Assim, os indígenas juntaram-se aos que já estavam nesse ambiente e se tornaram mais um componente de toda a biodiversidade da Terra.
“Quando eu me expresso afirmando que nós, povos indígenas, somos apenas um componente na biodiversidade, quero dizer que entre a onça, a cobra, o porquinho, o igarapé, o lago, a sumaúma e nós não tem muita diferença. Quando alguém enxerga um outro ser vivo como sendo inferior a si próprio, deixa escapar o que é mais sagrado, a vida de cada um”, diz (Francisco Apurinã) Yumuniry.
Mais adiante, ele explica como os indígenas interpretam a emergência climática que atinge o planeta e também o bioma amazônico – em 2023, uma seca deixou à mostra o leito de grandes rios, lagos e igarapés para o espanto de todos. Quando a natureza sofre algum tipo de surto, como estamos vendo acontecer, as “agências espirituais, guardiãs desses espaços [territórios]”, reagem, provocando o que hoje os cientistas chamam de mudança climática, aquecimento global, Antropoceno, entre outros termos que expressam o impacto negativo causado na natureza pela humanidade.
Outra característica que distingue os povos originários é a forma holística como enxergam o mundo. O antropólogo afirma que, enquanto na cultura ocidental existem muitas dicotomias – natureza e cultura, humanos e não humanos, conhecimentos indígenas e não indígenas –, entre os povos originários há um diálogo cíclico constante que abarca todas as temáticas e envolve todos os seres, humanos e não humanos.
Com essa reflexão, Yumuniry aporta sua canoa e conclui que tudo o que diz é para mostrar que todos os programas e ações realizados dentro dos territórios sem a participação efetiva dos povos indígenas, inclusive na tomada de decisões, não darão certo.
“A bioeconomia talvez seja uma oportunidade para mostrar que tudo tem de ser construído com a nossa participação. Nesse fim de viagem, eu gostaria que cada um pensasse na possibilidade de abrirmos essa janela de oportunidade, de ouvir o que o outro tem para dizer. Na antropologia chamamos isso de alteridade”, sugere Yumuniry.
Povos que produzem
O objeto de pesquisa da antropóloga Braulina Baniwa – mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Estudos Comparados sobre as Américas da UnB – são as tecnologias sociais do povo baniwa, no Amazonas, um conhecimento milenar dominado particularmente pelas mulheres. Esse conhecimento nem sempre é reconhecido no meio acadêmico/científico e, por isso, ela acredita ser importante sempre abordar o modo de vida na aldeia antes de introduzir o tema em debate.
“Quando passamos a ocupar esse lugar, seja na academia, seja em outros lugares, precisamos demarcar os conceitos que valorizam o nosso conhecimento e a nossa presença”, diz Braulina.
O conhecimento milenar dos povos originários é um diferencial da bioeconomia indígena e precisa ser difundido. “Qualquer não indígena pode ter em sua casa um objeto com símbolos baniwa, e não saber o que aquilo representa para o nosso povo”, observa Braulina. Ela conta que suas avós são mestres em arte de cerâmica de ralo (ralador), em cestaria e em grafismos, atividades que carregam uma ciência milenar baniwa.
“Ao contrário do que muitos pesquisadores falam sobre a educação ancestral, como se fosse coisa do passado ou que ficou na história, as mulheres baniwa e mulheres indígenas de outros povos se reinventaram para manter esses conhecimentos em seus padrões gráficos”, escreveu a antropóloga em sua pesquisa.
Essa produção indígena, conforme lembra Fernanda Rennó, não chega nem a entrar nas estatísticas da economia nacional. No entanto, o trabalho desenvolvido pelos antropólogos surpreende ao mostrar a potencialidade da bioeconomia praticada em territórios indígenas. “O estudo destaca, por exemplo, importantes projetos de turismo sustentável sob a ótica da conservação; produções agrícolas – como os casos do café Três Corações produzido pelos paiter-suruí, de Rondônia, e das pimentas do povo baniwa”. Rennó destaca também as produções artísticas, como os grafismos estampados nas indumentárias dos yawanawa, do Acre, e nas cerâmicas baniwa, entre outros.
Segundo Braulina, lideranças indígenas têm tentado demarcar esse lugar na economia, trazendo outras narrativas para além do lugar comum de serem guardiões da floresta, povos resistentes etc. “Queremos afirmar que nós também temos a nossa economia, que precisa de valorização e reconhecimento. Temos que mudar a frase ‘povos indígenas participam’ para ‘povos indígenas produzem e colaboram para construir uma economia a partir de seus entendimentos”‘.
O economista Rafael Barbieri, do WRI Brasil, fala da sua surpresa durante as primeiras conversas que manteve com lideranças indígenas sobre o conceito de economia:
“O que para nós, economistas, é a ciência que estuda o valor dos preços, balizada no pressuposto de que temos recursos escassos para necessidades ilimitadas, para os indígenas é o oposto: economia é abundância, porque suas necessidades não são ilimitadas”.
Depois de quatro anos de convivência próxima, Barbieri conta que aprendeu que abundância para os indígenas é diversidade de alimentos, de recursos e de relações que trazem junto a expectativa do longo prazo, por meio da transmissão de conhecimentos entre gerações. Para ele, os povos de cultura ocidental precisam ouvir muito mais, falar muito menos e tentar compreender melhor todo esse conhecimento e essa ciência.
Nesse sentido, Braulina chama a atenção ainda para um conflito de entendimento de empresas interessadas em comercializar produtos baniwa: “Algumas delas acham que vamos nos dedicar exclusivamente à produção de um objeto ou uma arte. As mulheres indígenas precisam ser consultadas no coletivo porque, além de produzirem arte, elas também são parteiras, têm suas roças para cuidar e muitos outros afazeres. Nossa economia não poderá ser pensada como uma grande empresa”, adverte.
Outro desafio para a bioeconomia indígena, em sua opinião, é o da logística. Braulina crê que o custo de transportar uma peça, no caso do seu povo, desde o município de São Gabriel da Cachoeira (AM), no Alto Rio Negro, até um grande centro urbano, como São Paulo, deverá superar o valor da própria peça.
Contexto desafiador
Além da demarcação de territórios, Marcos Kaingang aponta outros grandes temas amazônicos que atualmente dominam a agenda do MPI. O primeiro deles diz respeito à discussão sobre crédito de carbono. “Não podemos deixar essa matéria solta. É uma demanda do movimento indígena que o poder público pense normativas nesse sentido”, diz o secretário, acrescentando que alguns povos não têm interesse nessa discussão, mas vários outros estão com as conversas bastante avançadas. “Nós, enquanto ministério, podemos fazer essa articulação com o movimento indígena, dialogando com o Congresso Nacional e com a Presidência da República”.
O governo tem se debruçado também sobre a grave questão do garimpo ilegal, principalmente nas terras yanomami, no Amazonas e em Roraima. “O garimpo ilegal gera o extermínio de comunidades indígenas e muitas vezes é encampado politicamente por grupos econômicos que têm interesses nesses territórios”, denuncia ele.
Nesse cenário, com garimpeiros, madeireiros e posseiros invadindo territórios, muitas comunidades se vêem impossibilitadas de pensar em modelos de bioeconomia. “Já conseguimos uma redução importante dos impactos negativos provocados por essas atividades ilegais, mas ainda temos muito a fazer”, admite.
O plano agora é transversalizar o tema com outros ministérios para que apoiem iniciativas nos territórios. Mas Kaingang reforça a necessidade de haver um diálogo e uma escuta qualificada com as comunidades. “É grave a realidade dos povos indígenas por falta dessa mútua troca para saber o que de fato as comunidades querem”.
Não só o que as comunidades querem, mas também as soluções que a sociedade em geral pode encontrar junto a elas. Barbieri lembra que a ciência ocidental é muito boa para traçar diagnósticos, mas tem falhado nas soluções. Principalmente naquelas que não estão relacionadas à tecnologia, mas ao comportamento. Embora a literatura indígena ainda tenha pouco espaço no mundo acadêmico tradicional, ela cada vez mais tem-se mostrado capaz de preencher lacunas de conhecimento. “Ao refletir sobre tudo o que estamos buscando na nova economia, eu concluo que nova economia é o que os povos indígenas vêm fazendo há 10 mil anos aqui no Brasil”, finaliza.